Capítulo 9 – Os Dizeres de Tothdral (Parte 1 de 2)
Dia em que Ireas Keras viu no astrólogo de Ankrahmun um guia em sua jornada.
Retornei a Ankrahmun com excelentes novas a Arito. Quando contei a ele que havia sido perdoado por Muhad e que seus compatriotas não mais o procurariam (a não ser para negócios e suprimentos, essa foi a condição implementada por Muhad), ele pulou de alegria em seu balcão, e ofereceu-me a quantidade de bebidas que eu quisesse – e de graça.
— O que vai querer? — Indagou Arito, empolgado — Cerveja, vinho, leite...
— Uma bolsa cheia de limonada apenas — Respondi educadamente — Não quero questionar a qualidade de seus produtos, mas álcool não me agrada... O cheiro é muito forte, se é que me entende.
— Entendo. É um druida bem radical em sua doutrina, não? — Comentou Arito, com um leve sorriso melindroso — É raro ver um druida que não tenha se esquecido de sua missão. Talvez sua decadente guilda ainda tenha esperanças...
Dei de ombros quanto àquele comentário, e bebi a limonada com muito prazer; após tanto tempo no deserto tendo que viver à custa do gelo que conjurava, era bom sorver um líquido diferente para variar. Sem falar que Arito era um exímio coqueteleiro...
Despedi-me do comerciante com um aperto de mão vigoroso, e recebi dele cinquenta moedas de platina – o equivalente a cinco mil peças de ouro. Agora, tinha que cumprir os desígnios de Muhad e recuperar o conjunto de joias de sua falecida esposa.
Passei rapidamente pela banqueira Tesha a fim de deixar meus ganhos a salvo – queria evitar algum infortúnio que me fizesse perder a recompensa. Após um rápido bate-papo com a elegante ruiva dos olhos turquesa e bochechas rosadas, segui meu caminho em busca do estranho pilar mencionado por Muhad.
Enquanto isso fiquei pensando em algumas coisas: o amor que Muhad mantinha por sua esposa, mesmo depois de falecida... Acho que nunca senti algo assim por alguém; acostumei-me a uma vida sem muito apego, sem muita afeição... Acho que nem mesmo por Annika senti-me assim. Ela foi apenas uma boa amiga, e nada mais.
Minha distração era tamanha que nem percebi que havia me aproximado do pilar; simplesmente bati minha testa com tudo no construto de arenito. Para o meu azar, lá estavam Brand e Wind. Quando os dois me viram no chão, e concluíram por A mais B o que ocorrera, não conseguiram conter a risada. E eu não consegui conter a vermelhidão que tomou conta de meu rosto
— Que desastre, garoto! — Disse Brand, rindo incontrolavelmente — A cabeça estava lá perto de Nurmor, não? — Ele apontou para os céus com a mão esquerda e apoiou seu braço direito sobre o ombro esquerdo de Wind, que ria tão incontrolavelmente quanto o paladino.
— O nome dele é Ireas — Pontuou Wind, rindo um pouco menos — O que você está fazendo por aqui?
Minha vergonha era tanta que não consegui proferir uma palavra sequer. A sensação de desconforto aumentou com o olhar de Wind... Eu não sabia o que estava sentindo, mas de uma coisa eu tinha plena certeza: tinha que dar o fora dali; entrei pela passagem secreta do pilar e não disse mais nada.
— Eu, hein! — Exclamou Brand com um sorriso triste — Por que ele ficou tão transtornado assim?
— Vai saber... — Disse Wind, com um sorriso sereno — ele deve ser um pouco tímido, só isso. Vamos; Jack está nos chamando. Ele disse que há um certo serviço para nós...
***
A passagem do pilar levou-me ao depósito dos ladrões. Havia muita coisa lá: vários artigos de vestuário, armas, escudos e outras preciosidades, todas destinadas ao mercado negro. Eu sabia que havia muitos ladrões lá dentro, e que deveria ter cautela.
Eu me conhecia bem o bastante para saber que era um desajeito de pessoa. Portanto, tive que me assegurar que não faria barulho algum. Havia caixas vazias perto de mim, e pus algumas delas a minha frente a fim de usá-las em um pequeno ataque de engenhosidade que tive.
Como havia cacos de vidro e algumas poças em meu caminho, coloquei as caixas por cima do jeito mais delicado que pude, e passei por entre elas. Repeti o procedimento até chegar perto da cela de um tigre. Com algumas caixas em minha mochila, pensei em como atrair o bichano para sua jaula. Uma ideia me veio à mente; joguei um pedaço de presunto na jaula do animal, que correu desenfreadamente a ele, de tão faminto que estava. Rapidamente, puxei a alavanca e prendi o animal. Consegui passar por ele com tranquilidade, e repeti o procedimento de cobrir poças de água e outros objetos com as caixas.
Tudo o que fiz foi com o intuito de encobrir meus rastros – coloquei caixas perto de janelas para impedir a entrada de luz, reergui cortinas e sequei poças de água, tudo para manter o local em silêncio – e obter o objeto requisitado por Muhad. Cheguei ao local onde mantinham a caixa de joias sem dificuldades, e saí de lá rapidamente, pronto para voltar ao covil de Muhad.
***
— Obrigado, rapaz! — Disse Muhad ao receber a caixinha — Que o Deserto lhe abençoe e guarde, e que a vida te traga muita felicidade! Você não resgatou apenas um objeto da senhora dos nômades – mas sim da senhora de meu coração, e essa lembrança equivale a uma vida. Até algum dia, Keras, e aqui está sua recompensa — ele entregou-me um conjunto de cinquenta peças de platina e um ankh com uma reza a Nurmor.
Despedi-me dele com um aperto de mão e segui meu caminho de volta à cidade. Tinha uma carta para ler...
***
Como estava envergonhado demais para pedir a Brand ou Wind para que ficassem por perto enquanto lia a carta, decidi refugiar-me no único local onde meu coração conseguia a paz – na Guilda dos Druidas, junto a Rahkem. Aquele bondoso e prestativo sacerdote, tal como Cipfried, seria a companhia mais adequada para aquele momento.
Adentrei no Templo de Ankrahmun, e lá estava ele – sereno e sorridente, como sempre.
— Meu garotinho Ireas — Ele disse, referindo-se a mim de um modo carinhoso, como o fazia com todos os druidas que por ali passavam — Posso te ajudar em algo?
— De certa forma, sim... — Comecei, tentando controlar meus nervos — Preciso da sua serenidade, Rahkem, pois estou passando por momentos difíceis... — Peguei a carta e a abri, mas não iniciei a leitura — É de minha mãe... Muhad disse conhecê-la, mas não me falou seu nome. Por acaso o senhor reconhece a letra? Se reconhecer, talvez saiba o nome dela...
— Dê-me essa carta depois, meu jovem — Pediu o ancião, com um sorriso — Quero que você a leia primeiro. Assim, não estarei invadindo sua privacidade...
Eu assenti e, com minhas mãos trêmulas, comecei minha silenciosa, contudo atenta leitura.
“Ireas Keras, Ankrahmun.
Chegou até meus ouvidos a notícia de que você falou com Muhad... Não confie muito naquele sujeito... É certo que antes eu convivi bem com ele, contudo peço que tenha cautela... E não acredite em tudo o que venha a ouvir.
Vejo que você começou a encontrar em Ankrahmun um lar... Lembro-me bem de quando vivi nesse local... Quantas lembranças. Doces e ao mesmo tempo tristes...
Acredito, filho, que você esteja traçando o caminho certo em sua vida – ajudando àqueles que necessitam de você. Porém, não se esqueça de que, para poder continuar ajudando, é necessário um ingrediente a mais: poder. Nunca deixe de buscar mais, de aprender mais...
Você já deve estar bem grande, não? Suponho que tenha perto de seus vinte anos... E que já tenha feito amigos também. Aliados, Ireas, aliados; são peças fundamentais para manter-se bem nesse mundo em que vivemos. Contudo, se não os fez, não se sinta mal; nem sempre estaremos destinados às grandes multidões.
Muitos de nós, com o dom da magia, preferimos a solidão de nossos refúgios, buscando conhecimento...”.
Aquele discurso me trouxe animação e lágrimas de emoção – minha mãe também tinha dons mágicos, ou seja, havia a possibilidade dela ser uma Druidesa! Porém, seu discurso sobre poder... Soava-me contraditório à vocação que escolhi... Talvez ela fosse uma druidesa que havia perdido sua missão primária, faltando com os ensinamentos de Crunor... Fosse esse o caso, cabia a mim trazê-la de volta à gloria perdida dos Druidas.
— Vejo que há algo bom nessa carta, garotinho — Disse Rahkem, com um sorriso sereno — Queria que eu fizesse o quê, mesmo?
— Queria que você tentasse identificar a letra... — Pedi com certa introspecção — Quem sabe assim me aproximo de minha mãe...
Rahkem assentiu e pegou minha carta. Ele observou com atenção os detalhes. Não se importando tanto com o conteúdo da carta. Ele soltou um suspiro de frustração – ele não conhecia minha mãe.
— Eu tentei, garotinho... — Disse o ancião, frustrado — Eu não reconheço essa letra... Veja com Tothdral — Ele disse, indicando a Guilda dos Feiticeiros — Ele tem uma excelente memória, e acho que será capaz de te dizer quem é sua mãe...
Eu olhei para a Torre Serpentina com repulsa – feiticeiros são seres desprezíveis, sempre pensei assim. No entanto, Tothdral era o único ali que poderia dar-me pistas sobre minha misteriosa mãe. Logo, teria que engolir minhas desavenças com essa vocação... E tentar encontrar as peças desse quebra-cabeça que era minha vida.
Pus-me a andar em direção àquela torre. Só me mantive a caminhar graças à minha vontade de saber mais sobre minha mãe... Senão, teria dado meia-volta, tamanho era meu nojo por aquele local. Tudo o que levava ‘feiticeiro’ em seu nome era o bastante para dar-me náuseas. Seres destrutivos, doentes por poder e ganância. Podres por dentro... E por fora.
Resmungando, silenciei-me ao entrar nos aposentos de Tothdral. Ele era não só o líder da Guilda dos Feiticeiros como também era Astrólogo e o segundo Grão-Vizir do faraó Arkhotep, (quando Ishebad não estava disponível) senhor meu e de toda a gente que residia em Ankrahmun. Ele estava entretido lendo pergaminhos de magias antigas que sequer notou minha presença — até que, em meu desajeito típico, esbarrei em uma pequena ânfora de topázio, que se espatifou no chão.
— Boa tarde, Keras... Ou já seria noite? — Cumprimentou-me Tothdral, fechando o pergaminho lentamente, como de costume — O que te traz aqui?
— Preciso de um favor teu... — Declarei no tom mais respeitoso que pude, entregando-lhe a carta — Por algum acaso você reconhece essa letra? Rahkem disse-me que você possui excelente memória, e que meu pedido seria tarefa fácil para você...
A múmia virou seu rosto cheio de ataduras em minha direção. Seu único olho descoberto – o direito – fitava-me com curiosidade científica. Aquele brilho dourado causava-me certo desconforto. Ele observou a carta com calma, e percebi uma leve alteração em seu semblante. Naturalmente, ele conhecia minha mãe. A questão é se ele fornecer-me-ia a resposta que tanto queria...
— E então? — Indaguei impaciente — Sabe quem é ela, não sabe?
— Eu sei, Keras — Disse-me Tothdral em um tom misterioso.
— O que ela é, ou era? — Estava ávido por informações — Digo, a que vocação ela pertencia? Aos Cavaleiros, Paladinos, Druidas ou... Feiticeiros? — Essa última possibilidade passou rasgando minha mente. E nada de Tothdral responder.
— Não posso te fornecer essa informação, caro Keras. — Ele declarou solene — Você ainda não está preparado.
Eu confesso que devia estar bem sentimental, pois senti uma onda de ir subir meu rosto. Meus olhos semicerraram-se em expressão de raiva, e senti meus punhos fecharem-se firmemente.
— Eu e todos os membros da Guilda dos Feiticeiros e dos Druidas juramos jamais pronunciar seu nome novamente — Ele declarou, fitando-me com seu olho dourado descoberto — E digo que não está preparado considerando o domínio que tem sobre sua magia... É necessário que você se fortaleça mais, que se conheça melhor. É necessário que se prepare para o que virá.
Eu respirei fundo e cerrei meus olhos. Por mais que odiasse admitir, Tothdral era um homem sábio e, se me estava dizendo o que dizia, então estava certo. Eu ainda não estava preparado, mas ele estava me oferecendo a preparação. E deveria aceitá-la, se quisesse ter o direito de conhecer minha mãe.
— Que tenho que fazer? — Indaguei, controlando minhas emoções.
— Primeiramente, mude seus armamentos — Declarou o grão-vizir de Ankrahmun, solene, sem piscar o olho dourado — Veja bem, não é de bom tom que você continue a andar com um Cajado da Luz da Lua se já tem condições de usar algo mais forte: um Cajado Necrótico. Ainda que usar maldições e energias negras não seja algo de gente de sua laia, convém que você tenha o domínio dela para entender como funciona a fonte primária de poder do tipo principal de inimigo enfrentado por você, aventureiro: os mortos-vivos. Além disso, seu Livro de Magias não mais te servirá como um escudo, já não é mais apropriado. Em vez dele, procure por um escudo leve e de defesa decente.
Eu anotei tudo que Tothdral falara em um bloquinho de papel, e já estava ensaiando minha retirada quando a múmia me impediu.
— Alto lá! — Ele bradou sério — Mais uma coisa: traga consigo, amanhã, duas Peças de Cristal para mim...
Ao ouvir tamanha quantia, arregalei meus olhos em sinal de incredibilidade. Que faria aquele monte de ataduras com tanto dinheiro?
— Trata-se de algo necessário a você, Keras: uma promoção de vocação. É a sua chance de provar a mim, a Arkhotep e a Ankrahmun o quanto você vale, ainda que seja Ishebad o que normalmente exerce essa função de promotor de vocações. Amanhã mesmo, após essa série de formalidades, fale com Rahkem e pergunte a ele quantas magias novas ele poderá te ensinar e quantas poderá pagar no momento. Por ora, é só. Tenha uma boa noite, Ireas Keras.
Eu assenti com um aceno e saí da torre daquela múmia, deixando-o sozinho com seus pergaminhos de papiro e suas fórmulas mirabolantes. Por mais que a irritação tenha tomado conta de mim por alguns instantes, o grão-vizir estava certo: eu tinha que me atualizar. Ainda que poder não fosse meu objetivo primário, eu teria que me desenvolver mais como um Druida se quisesse achar minha mãe. Ela poderia estar em qualquer lugar, e somente Crunor e os demais deuses sabem o que há mundo afora. Nem todas as cidades são seguras como Ankrahmun...
Eu vagueei um pouco pela cidade, pensativo; como conseguiria um novo escudo? Que escudo seria mais adequado? Eram tantas opções, mas muitos eram caros, ou pesados. Às vezes, eram os dois, tornando minha tarefa de escolher impossível.
— Psh! Ei, você aí! — chamou-me uma voz masculina na escuridão — A que Guilda de Vocação pertence?
Eu virei-me na direção do som com certa desconfiança. O homem tinha uma voz rouca e mantinha-se oculto nas sombras. Ele então saiu da escuridão, revelando seu rosto da cor da canela, com olhos castanhos e cabelos da mesma cor. Ele carregava consigo um Cajado que mais parecia o da Luz da Lua atualizado e um livro de magias bem interessante. Sua armadura era Elemental – um conjunto de temas da terra -, bem característico de um Druida. Ele sorriu para mim com ares de vendedor.
— Desculpe por essa pergunta — respondeu-me irreverente —, mas notei que você ainda usa esse surrado livro de feitiços como defesa. Sem ofensas, mas posso te oferecer algo melhor: e de graça! — Ele declarou, mostrando-me um lindo escudo feito de casco de jabuti — Então, que me diz?
— Aceito sua oferta — Respondi guardando meu livro na mochila e ajeitando o escudo em meu braço direito — Você perguntou minha vocação... Pois bem, sou um druida como você — Disse orgulhoso — Qual seu nome?
— Meu nome há muito esqueci — Confessou-me o moreno, coçando a cabeça — Mas chamam-me de Pinga ou Pingagua. Gozado, não? Essa alcunha deveu-se ao fato de eu ter sido um beberrão há tempos atrás. Hoje, não bebo mais como antes, mas o apelido permaneceu. Bom, se precisar de um druida experiente que te ajude em sal jornada por esse mundo louco, basta me contatar que te ajudarei sem problemas. Até!
Ele sumiu tão rápido quanto tinha desaparecido. A questão é que eu realmente tinha achado aquele Druida uma figura singular, e esperava encontrá-lo de novo nas ruas de minha amada cidade...
Novamente aluguei um quarto para ficar pela noite. Não conseguia dormir; fiquei olhando para a lua, buscando respostas. Porque Tothdral não me dissera o nome de minha mãe, e porque as duas guildas mágicas decidiram que o nome dela jamais deveria ser pronunciado? O que teria minha mãe feito de tão terrível nesses tempos para merecer tal tratamento?
Continua...
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Nota da Autoras: Pinga/ Pingagua é um tibiano real:
Name: Pingagua
Sex: Male
Vocation: Druid
Level: 104
Achievement Points: 91
World: Unitera
Residence: Thais
Além disso, tive que mudar um pouco a história de Tothdral... A fim de que ele possa servir à minha história, tive que alterar suas funções primárias, dando-lhe o cargo de segundo grão-vizir além de seus títulos iniciais =)
Amantes da história tibiana, não me odeiem por favor =X