Nota da Autora: meu blog anda meio carente e preciso terminar de programar algumas postagens. Logo, pode ser que meu ritmo de escrita diminua; vamos torcer para que não diminua muito...
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Capítulo 12 – Os Ventos do Norte: Teste dos Bárbaros
Dia em que Ireas Keras pisou em Svargrond pela primeira vez.
— Mas já, garotinho? Tem certeza?
Eu mordi o canto de meu lábio, hesitante; Rahkem era como Cipfried — um pai para mim. Ele e Tothdral cuidaram de mim durante minha estada em Ankrahmun, e agora eu sairia de lá por tempo indeterminado. Era um adeus, e os olhos do velhinho estavam marejados. E os meus também.
— Tenho, meu mentor — Disse a ele, soltando um largo suspiro de pesar — É preciso. Tenho muitas questões mal resolvidas em minha vida, e acho que obterei mais peças desse quebra-cabeça louco em Svargrond. Muito obrigado por tudo.
— Não agradeça apenas a mim, garotinho — Disse o ancião, dando-me um forte abraço — Agradeça a Tothdral também. Apesar de parecer assustadora, aquela múmia tem um coração que vale ouro. Vá lá vê-lo antes de ir.
Assenti afirmativamente e fui à Torre Serpentina. A múmia estava entretida lendo uma coletânea sobre feitiços de transfiguração. Dessa vez, não esbarrei em nada, e cheguei perto o bastante para cutucar-lhe o ombro esquerdo.
— Keras? — Indagou-me Tothdral, surpreso com meu silêncio — Que te traz aqui?
— Vim me despedir — Anunciei com um sorriso triste — Estou saindo de Ankrahmun por tempo indeterminado... Viverei em Svargrond por um tempo. Vim agradecer a você por tudo o que fez por mim.
A múmia fechou o pergaminho lentamente, e fitou-me com seu olho dourado sem dizer uma só palavra. Ele pôs a fita dourada em volta do papiro e fechou seu olho. Ao fazer isso, soltou um largo suspiro.
— Se é isso que deseja... Vá em frente — Disse a múmia sem abrir os olhos, com um tom triste — Estaremos torcendo por você... Tenha a minha bênção, garoto...
Eu não aguentei e corri para abraçar aquela múmia. Apesar da dor que ele me infligira e de tudo o que me fizera passar, Tothdral ajudou-me a evoluir, e por isso sou-lhe eternamente grato. O astrólogo retribuiu o abraço, e senti uma triste energia emanar dele para mim. Tothdral sentiria — e muito — minha falta.
Voltei ao depósito e peguei o que necessitaria para a jornada – víveres, três garrafas de limonada, os equipamentos que sempre tinha à mão — corda, pá e o insetinho que cuspia fogo que me fora dado por Wind — e meu alaúde. A viagem seria longa, e não queria ficar muito tempo no ócio.
Fui até a banqueira retirar o dinheiro de que necessitaria para seguir em frente, e ela apertou firmemente minha mão esquerda entre suas delicadas mãos, e vi lágrimas saírem de seus olhos. Eu sentiria falta dessa personalidade também. Jezzara deu-me um beijo na testa e cinco pães por conta da casa. Memech deu-me suas bênçãos, e pediu que eu desse um olá para um bárbaro chamado Eirik, se tivesse oportunidade. Ahmet, por fim, deu-me um rápido abraço, ainda que a contragosto e ferindo seu orgulho de frio e não amistoso comerciante.
Segui meu caminho para o cais, e Rahlkora deu-me um forte abraço antes de deixar-me ir ao barco. Eu adorava a companhia daquela guia quando passava por lá, e deixá-la foi um ato doloroso para mim. Contudo, eu precisava partir.
O Capitão Sinbeard olhou-me com atenção e logo lançou a pergunta:
— Para onde deseja navegar hoje?
— Para Svargrond — Eu disse, entregando-lhe uma pequena sacola com as peças de ouro necessárias.
— Bem, não costumo fazer essa rota de modo direto — Explicou-me Sinbeard, desconcertado — Contudo, posso deixá-lo em Carlin, e de lá você poderá seguir diretamente a Svargrond.
— Nada mais justo. — Respondi com polidez — Deixo tudo em suas mãos. O senhor conhece os mares mais que eu.
— Içar velas! — Ordenou Sinbeard, com um sorriso no rosto.
O navio de Sinbeard era mais veloz do que os demais em que estive, e a suave mudança de clima durante a viagem tornava o trajeto mais agradável. Observei o navio afastar-se rapidamente de Ankrahmun com um sorriso melancólico, e logo as pirâmides desapareceram de meu campo visual; voltei a olhar para o mar, e logo visualizei o porto de Thais, que rapidamente sumiu de minhas vistas, pois Carlin era o objetivo.
***
Logo que cheguei à cidade das Amazonas, despedi-me de Sinbeard e já falei com o capitão Seahorse, que aceitou levar-me a Svargrond sem hesitação. Ele pegou o restante das moedas e preparou o navio. Sua embarcação não era tão rápida, mas certamente era mais estável, e não dançava ao sabor das ondas ao ponto de deixar-me enjoado...
Não demorou muito para que eu finalmente avistasse o porto de Svargrond. Certamente foi uma viagem mais agradável que aquela feita na humilde embarcação de Nielson. Assim que cheguei, fui recepcionado pela capitã Breezelda, um encanto de pessoa – para os padrões bárbaros.
Aquela cidade era bem diferente das demais em que estive – as casa eram feitas de madeira e reforçadas com grossas peles de animais em seu interior a fim de aquecer o ambiente. As estradas eram parcialmente cobertas pela neve, e havia lindos cães de pelagem cinza e branca vagando pela cidade. Guerreiros em ostensivos casacos de pele patrulhavam a cidade, e bárbaros de torsos e coxas desnudas riam e trocavam insultos na taverna da cidade.
Um pouco acanhado e ligeiramente intimidado, entrei no recinto. Os bárbaros sequer me notaram, mas fui interpelado pela autoridade máxima do local, o jarl Sven, o Mais Jovem. Ele era um homem louro dos olhos verdes e branco tanto quanto eu o era. A pintura em sua face era de cor azul e seus trajes evocavam a cor da pelagem dos mamutes que por ali espreitavam. A primeira coisa que fez foi encarar-me com desconfiança, e tal olhar vindo de um bárbaro um palmo mais alto que eu e bem mais musculoso certamente deixou-me desconfortável.
— Ora essa, um forasteiro! — Disse o jarl em um tom de desprezo — A julgar pelo bronzeado, deve ser um daqueles moradores do Deserto, onde a neve não tem vez...
— Ankrahmun — Eu pontuei em um tom discreto, buscando não ter problemas com aquele homem — Eu vim aqui para reclamar algo que é meu de direito: minha cidadania.
A taverna tornou-se um sepulcro, tamanho era o espanto dos ali presentes. O silêncio foi unânime e súbito. E o jarl encarou-me com surpresa e um pouco de desdém.
— Eu nasci aqui... — Eu anunciei, ainda que um pouco incrédulo acerca da verdade — Contudo, não tive a oportunidade de ser criado como um de vocês. Voltar no tempo não é possível, mas correr atrás do prejuízo, se é que me entendem, é algo que sei fazer bem. Quero ter a chance de ser visto como um bárbaro perante teus olhos... Senhor — Finalizei, curvando-me ao jarl.
Ele me observou por um tempo em uma atitude reflexiva, intrigado com minha atitude. Eu não me parecia muito com os demais bárbaros, ainda que tivesse pele e olhos claros. Um sorriso malicioso surgiu nas faces daquele sujeito, e eis que ele se pronunciou:
— Está bem, está bem; dar-lhe-ei uma chance — Ele entrelaçou os dedos e pôs as mãos à frente do rosto, de modo que apenas seus olhos ficassem descobertos em uma expressão bem sinistra. — Bom, o teste de Bárbaro Honorário consiste em três tarefas que você tem que realizar para provar a Svargrond que você sabe viver como um bárbaro. Você vem do mesmo continente da cidade de Darashia, certo? Corrija-me se estiver errado, mas é de lá que vem o melhor favo de mel dessas bandas. Preciso que me traga pelo menos um, e poderemos começar.
Tentei disfarçar minha surpresa; não sabia que seria forçado a voltar de onde viera tão cedo, e ter que fazer o trajeto duas vezes! Já estava me virando para sair da taverna quando senti uma mão segurar-me o braço esquerdo. Uma mão bem forte.
Virei-me para olhar o rosto do desconhecido, e identifiquei ninguém menos que Liive. Ele sorriu para mim e entregou-me um favo de mel; em seguida, aproximou-se de meu rosto e sussurrou em meu ouvido:
— É bom te ver por aqui. Boa sorte, e bem-vindo a Svargrond.
Meu rosto ficou levemente avermelhado, e tentei disfarçar o sentimento perante Sven, a quem entreguei o favo sem dizer uma palavra sequer.
— Então, já está com o favo... — Comentou o jarl, com um leve desdém — Excelente. Dankwart! — Bradou Sven, virando-se para o taberneiro local — Prepare o Hidromel de Iniciação!
Hidromel? Álcool? Essa não... Outra vez teria que enfrentar meu calcanhar de Aquiles. Que Crunor me perdoe, mas teria que romper com as tradições dos druidas outra vez... E forçar meu organismo a tolerar aquele sabor horrível novamente. Liive soltou uma discreta risada. Maldito, por que não me contou antes? Lancei um olhar raivoso, e logo tornei sério, a olhar para Sven.
— Esteja pronto para beber até cair, se é que me entende! — Disse-me o jarl, sério — Todo bárbaro que se preze entende de bebida, e consegue aguentar até o mais forte hidromel. Beba oito doses sem cair, e me impressionará. Se falhar...
— Não falharei — Repliquei com confiança — Observe-me.
Liive sentou-se em um banco de madeira próximo a onde eu estava, visivelmente preocupado comigo. O cheiro do líquido dourado era muito forte e senti que iria desmaiar, e vi um sorriso maléfico brotar no rosto do jarl. Sacudi minha cabeça, buscando manter o foco, peguei o balde de hidromel... E bebi as oito doses sem cambalear. Ouvi urros alegres de meus conterrâneos, e fitei Sven de modo desafiador enquanto limpava algumas gotas de hidromel de meus lábios com o indicador de minha mão esquerda. O jarl rosnou em resposta, mas logo voltou à postura séria e desafiadora.
— Meus parabéns — Disse-me com clara ironia, batendo vagarosas palmas — Pensa que acabou? Não! — Ele rugiu como um leão ao pronunciar o advérbio de negação — Já que você está com o pique, pegue esse item — Ele entregou-me um recipiente para hidromel esculpido em marfim, que chamavam de Chifre de Hidromel — e encha-o com hidromel. Em seguida, vá até a caverna do urso adormecido, nas cercanias da cidade e... Dê um abraço nele. Procure voltar... Vivo. — ele soltou uma risada maléfica e grave, que fez gelar minha espinha.
Não havia percebido, mas Liive seguiu-me até a saída norte de Svargrond, que se tratava de uma escadaria ao sopé de uma montanha. O bárbaro alcançou-me rapidamente, e quase me fez tropeçar de propósito, só para ver minhas faces avermelharem muito e me irritar. Eu estava sentindo os efeitos do álcool de forma bem negativa. Maldita bebida...
— Tenha cuidado, Ireas — Disse-me o bárbaro, com um sorriso — Não se trata de um urso qualquer: ele tem o dobro do tamanho e da força de um urso normal... Uma dica! Use com sabedoria o Chifre de Hidromel... Acredite, será muito útil. — Ele deu um tapinha em minhas costas e deixou-me ao pé da escadaria. Eu estava ainda muito zonzo da bebida.
Respirei fundo e subi dos dois andares de escadarias até chegar ao final da saída sul de Svargrond. Havia lebres e cervos andando pela planície gelada, bem como ursos polares e lobos glaciais vagavam pela alva paisagem. Dei mais passos adiante, e procurei evitar matanças desnecessárias. Tinha que encontrar o tal urso que Sven queria que eu abraçasse.
O efeito do álcool já estava começando a diminuir, e eu senti meu rosto abrir um discreto sorriso. Aqueles ventos frios faziam-me um bem danado, e eu sentia que toda aquela maresia e cambaleio iam-se com eles. Poucos passos ao norte escutei um grunhido assustador. O urso não estava muito longe.
Respirei fundo e segui em direção à gruta. Realmente, Liive não exagerara quanto à descrição do animal. Ele era de fato enorme; muito maior que um urso comum. Suas patas eram maiores e mais musculosas, e as garras, mais grossas e afiadas. Ele estava deitado no chão de neve, com a cabeça descoberta... E os olhos vermelhos fitando-me como se eu fosse sua próxima refeição.
O urso preparou para avançar, e eu me vi acuado entre as paredes da pequena caverna, que mal tinha espaço para o ursão. Lembrei-me do Chifre que Sven me dera, e pensei rapidamente em algo.
A besta se aproximou rapidamente, disposta a quebrar-me o corpo com sua enorme pata. Joguei o conteúdo do objeto no rosto do animal que, inebriado com o cheiro e impossibilitado de enxergar temporariamente, foi ao chão em um estado de torpor que eu sabia que não duraria muito. Aproximei-me do animal e passei meus braços ao redor de seu pescoço, abraçando-o. Fiz um afago em sua cabeça e voltei a Svargrond.
***
— Cadê o novato? — Grunhiu Sven, com tom de triunfo — Na certa, fugiu...
— Pois eu estou bem aqui. Inteiro e mais vivo impossível! — Repliquei a ele do mesmo modo que fazia com Ahmet.
O jarl virou-se em minha direção, surpreso e contrariado. Eu voltara quase do mesmo modo que saíra — Exceto por uma cicatriz na minha bochecha direita, que fora causada pela patada do urso.
— Bem, parece que essas terras já te deram as boas-vindas — Ele disse, apontando para minha ferida recente — Você provou que merece o último teste... Vamos ver como se sai. — Ele sorriu maleficamente, e sua expressão assustava-me mais que a Tothdral quando me olhava e dizia suas sábias palavras — Naquela mesma montanha onde você foi há, mais ao nordeste, um mamute. Derrube-o sem matá-lo, e provará para mim e para esses homens que você merece o título de bárbaro honorário.
Eu aceitei o desafio, mas perguntei a mim mesmo: como? Então, vi um homem comprar mais hidromel com Dankwart e tive outra ideia — usaria o hidromel a meu favor. Comprei três doses e saí do local, sendo observado por Sven até desaparecer de suas vistas.
***
No caminho, fui surpreendido por alguns mamutes, que queriam meu sangue. A história desses seres em Svargrond é complicada: é dito que eles foram revividos magicamente e, graças ao clima propício, prosperaram aqui. Contudo, tornaram-se seres extremamente violentos e temidos, o que fez com que os moradores de Hrodmir estabelecessem uma cidade ao sopé da montanha que levava aos mamutes. Quando os oficiais de Carlin chegaram, colonizaram a área e fizeram da parte selvagem de Hrodmir um local a ser muito temido e proibido. E os bárbaros que se recusaram a seguir a rainha Eloise continuaram em seus conjuntos habitacionais, ameaçados pelo frio e pelos mamutes.
Os mamutes vieram até mim, e quase fui esmagado um conjunto de vezes. Eu não queria feri-los, por isso, usei uma de minhas magias de terra, visando prender os animais em meus vimes e não deixar que avançassem.
— “Exori Tera” — pronunciei, estalando o dedo médio de minha mão direita em meu polegar, fazendo surgir cipós, raízes e vimes da neve imaculada, prendendo os três mamutes. Eu só os soltaria quando terminasse meus afazeres por lá. — “Utani Hur” — Aproveitei o pique para dar-me mais velocidade. Queria terminar logo aquela sessão de tortura...
Fui me aproximando do local que Sven mencionara, e vi o mamute estático lá, só me esperando. Usei mais um Exori Tera para paralisar o último mamute e fui cumprir com minha missão.
Por Crunor, que bicho enorme! Ele dava dois e mim e mais um palmo em comprimento e, no mínimo, um cinco de mim em largura! Diferentemente de seus companheiros de espécie, ele não pareceu importar-se com a minha presença ali. Seus olhos vermelhos fitavam-me com indiferença, e aproximei-me cuidadosamente do animal.
Olhei para as doses de hidromel que estavam em minhas mãos. Havia um ditado que dizia que a bebida faz as pessoas fazerem o que elas já queriam fazer, porém não o fizeram antes por falta de coragem. Sempre achei ridícula a ideia de que o álcool pudesse trazer coragem a alguém. Bom, segundo os bárbaros é isso o que o hidromel faz. Então, contra a minha vontade, ingeri as três doses, uma a uma, e preparei-me para derrubar o animal. Meu estômago revirava, e eu sentia uma vontade enorme de vomitar. Respirei fundo, e pulei na cabeça do mamute, derrubando-o de uma vez só.
Ainda cambaleante, verifiquei se não havia matado o animal. Felizmente, ele ainda estava respirando, e estava bem, apesar do que eu lhe causara. Totalmente embriagado, segui meu caminho de volta a Svargrond. Eu não havia me esquecido dos mamutes presos, e soltei-os com o estalar de dedos de minha mão direita quando estava a uma distância segura deles.
***
Decerto tropecei nas escadarias, pois, ao chegar à taverna, havia um corte em minha testa, que sangrava. E eu, de tão anestesiado, nem percebi.
— Então... — Disse o jarl, engolindo seu orgulho — Você conseguiu. Fez tudo o que lhe pedi, e voltou inteiro... E bêbado como um de nós. — A taverna inteira rugiu de alegria ao ouvir essa última frase de Sven — Então, é com muita honra que te dou o título de Bárbaro Honorário de Svargrond. Seja bem-vindo ao seu lar, Keras.
Os bárbaros ali presentes interromperam sua bebedeira para me saudar do modo mais cordial que conheciam. Uns tapinhas nas costas ali, uns esfregões de punhos em minha cabeça acolá, e saí completamente desorientado da taverna. O rebuliço em meu estômago continuava e, ao isolar-me em um canto da cidade, desmaiei.
Continua...