Capítulo 4 – Gente Estranha em Terra Estranha
O dia em que Ireas Keras desenvolveu hábitos peculiares... E salvou a vida de muitos.
Após ter retornado à cidade, fui afligido por uma estranha doença, como meu amigo Khaftos também foi. Nossos corpos foram atacados por um tipo de fungo que deixava cicatrizes profundas e dolorosas por onde se alastravam, as quais eram difíceis de serem tratadas.
Como Khaftos retornara à cidade muito ferido do combate com os homens-touro, ele não durou muito — a doença o levou dessa existência em menos de 3 noites, deixando-me solitário em Rookgaard. Outra vez.
Eu sobrevivi àqueles dias de dor e sofrimento de uma forma que nem sei explicar. Lily e Hyacinth tiveram muito trabalho, pois os remédios que faziam não conseguiam eliminar completamente as colônias de fungos em meu corpo. Felizmente, no quarto dia de luta, vi-me curado. Ou perto da cura completa...
Eu fiquei com sequelas; alguns fungos alojaram-se por baixo de minhas unhas, e a consequência disso foram rachaduras e, em seguida, queda de cada unha que tinha em minhas mãos.
— Como me livrarei disso? — Indaguei furioso e receoso acerca de meu futuro.
— Paciência, Keras — Disse Lily, sentando-se ao meu lado. — Felizmente, há cura... Mas o tratamento será demorado...
— O que terei que fazer? — Indaguei impaciente e claramente agoniado.
Notei que ela havia sorrido de um modo forçado, como se estivesse impedindo um riso de sair. Comecei a me intrigar... E a me irritar.
— Diga, por favor! — Implorei frustrado — Eu não quero perder minhas mãos!
— Bem... — Ela começou, retirando da manga direita de seu vestido um pequeno frasco com um líquido azul — Isso é Resina de Mirtilo; esse é o remédio que você deverá passar em suas unhas, todos os dias, com esse pincel aqui — ela abriu a tampinha do recipiente, revelando um fino pincel embebido na resina — eu te ensinarei a fabricá-la, pois ninguém sabe fazê-la além de mim e Hyacinth, e você não pode ficar refém de enormes estoques, pode?
Ela tinha razão. Eu não poderia simplesmente gastar todo o meu dinheiro naquele composto; eu teria que aprender a fabricá-lo, ou poderia correr o risco de perder minhas mãos. Ela anotou as instruções em uma lista de forma detalhada, a fim de que eu não me esquecesse de nada.
— Guarde essa lista com a sua vida — Ela me disse, solene, ao me entregar o papel — Um frasco desse tamanho tem resina o suficiente para um mês, se você não exagerar na aplicação. Como você sempre teve o costume de coletar mirtilos, não terá dificuldades em fazer essa resina...
— Obrigado — Eu disse, pegando o frasco — Como faço para aplicar?
— Deixe-me mostrar... — disse a farmacêutica, abrindo o frasco e retirando o pequeno pincel — Empreste-me sua mão esquerda — Obedeci, e observei a dama pintar minhas unhas como se fosse uma artista — Agora, a direita. Não se preocupe seca rápido... — Ela fez um trabalho tão primoroso nessa mão quanto fizera na outra. — Pronto — Ela disse, tampando o frasco e guardando-o em minha mochila. — Você está livre para ir... Há mais alguma missão para fazer antes de partir?
— Na verdade... — Comecei pensativo — Vascalir pediu-me para cuidar de certo ogro xamã... Bem, depois de ter arriscado meu pescoço para derrubar o túnel criado pelos trasgos, pegar um livro de linguagem ogra da biblioteca, encontrar veneno de vespa, pegar um osso com carne de uma cripta, recolher a teia de uma aranha para lá de asquerosa... Acho que devo fazer valer meu esforço. Estou de saída, e obrigado pelo medicamento... — Na saída, murmurei para mim mesmo — Ainda que seja um tanto humilhante...
As atividades a que me referi haviam sido feitas de forma solitária, pouco antes de ir ao Inferno dos Homens-Touro. Segundo Vascalir, o tal ogro escondia-se nas profundezas de uma fortificação ogra não muito distante do local onde encontrei as vespas.
Antes de chegar à ponte de Dallhein, verifiquei se em minha mochila havia tudo o que precisava.
— Comida, corda, pá... Os itens que Vascalir me deu — Disse a mim mesmo — Estão aqui. Seguindo viagem...
Subi as escadarias e cumprimentei Dallhein como de costume. Segui viagem rapidamente — quis evitar distrações, pois queria sair de Rookgaard o quanto antes. Eu tinha muito a fazer... Muitas perguntas para responder.
***
Cheguei sem dificuldades à fortificação. Entrar é que foi um pouco mais complicado, pois tive que procurar por algo que pudesse facilitar minha entrada. Felizmente, um ogro distraído foi minha saída, e usei suas roupas e couro para me disfarçar.
Fui-me valendo dos itens dados por Vascalir na medida em que avancei pela fortificação; o osso foi perfeito para atrair uma multidão de cães famintos para perto do guarda da escadaria; o veneno foi colocado na sopa do ogro xamã, o outro guarda foi imobilizado pela teia da aranha rainha... Tudo estava certo. Não haveria erro algum. Desta vez, seria apenas eu contra esse ogro, e seria perfeito.
Comecei a mexer nas alavancas. Uma a uma, fui trilhando o caminho em direção à sala daquele nefasto ser. Até então, eu nunca havia sido ameaçado por ele; contudo, ouvi histórias sobre seus atos e como os sobreviventes conseguiam chegar a Rookgaard — a maioria chegava com enormes ferimentos, fossem eles cortes ou queimaduras, arrastando-se pelo chão e implorando a Asralius que salvasse suas vidas. Os tempos em Rookgaard mudaram; essa ilha não é mais pacífica como costumava ser, e tudo graças a esse ogro...
Depois de encontrar o Aprendiz Sheng, aprendi a não subestimar um adversário. Não sabia se os métodos de Vascalir conduzir-me-iam à vitória, mas dei uma chance a eles. Respirei bem fundo e observei a chama violeta à minha frente. Era chegada a hora... Hora de combater meu último adversário em Rookgaard. Por mim, por Khaftos e por todos os habitantes dessa amável ilha que sofreram nas mãos dessa criatura hedionda.
— Vamos lá... — Respirei bem fundo, e fui de encontro às chamas.
Assim que cheguei ao recinto, empunhei minha maça e preparei-me para o combate. Aquele ogro — Kraknaknork era seu nome — me encarou com escárnio e desprezo. Ele empunhou seu cajado e veio de encontro a mim.
Procurei quebrar suas costelas; estava com tanta raiva que nem sentia o que fazia; cada golpe, cada movimento... Não me lembro de quase nada daquela luta, apenas de imagens soltas — o rosto de Kraknarknok sendo esmagado, demônios enfraquecidos caindo pelas mãos do próprio mestre, minhas feridas reabrindo... Sangue por toda a parte e uma náusea infernal.
Quando o ogro dera seu último suspiro, corri para sua sala de tesouros, e deparei-me com alguns outros habitantes daquela ilha que, como eu, haviam tentado combater o ogro — mas falharam, e foram feitos prisioneiros.
Falei muito pouco com eles — procurei não me apegar para que as mortes deles não viessem a partir meu coração como as de Annika e Khaftos. Eram cinco no total, que resgatei após ter pegado minhas recompensas. Eles começaram a se recuperar aos poucos, e foi o bastante para que chegássemos à cidade — inteiros e ouvindo o clamor de uma multidão de rookgaardianos exultantes e agradecidos.
Muitos me chamaram de ‘salvador’, ‘senhor conquistador’, ‘grande guerreiro’, e assim se sucederam os apelidos. Cada um dos habitantes de Rookgaard que fizera parte do processo de meu crescimento me cumprimentou. Vascalir não conseguiu ocultar sua alegria diante da situação. Achei até engraçado — ele, que sempre prezou por ser tão frio e calculista... Talvez eu jamais entenda aquele sujeito.
Após ter entregado a Amber os feridos, fui até o templo a pedido de Asralius e Cipfried – ao que parecia, eles tinham algo para mim.
— Venha, meu jovem — Pediu Cipfried — É chegada a hora do adeus.
— Nem me fale — Respondi, tentando conter as lágrimas que teimavam em descer pelo meu rosto – O que quer me dizer?
— Há muitas coisas que ocultei de você, jovem Ireas... — Ele começou misterioso – As circunstâncias de seu nascimento... As suas origens... Antes que você saia para conhecer o mundo, é necessário que você saiba de algo...
Antes que eu pudesse fazer mais perguntas, o velho monge entregou-me uma rosa azul e uma carta selada, destinada a mim. Minhas mãos tremiam visivelmente quando peguei os objetos. Finalmente eu teria respostas...
— Agora vá, meu filho — Disse Cipfried tristemente — Vá viver sua vida; só te peço uma coisa: nunca me esqueça... E nunca se esqueça de todos os que fizeram parte dessa fase de sua vida.
Assenti afirmativamente e segui meu caminho em direção ao prédio da Academia. Primeiro, vendi meus itens, depois fui conversar com a Oráculo...
(Encerrada a narrativa de Keras)
O monge observou o rapaz até a chegada dele à velha estátua da Academia. Asralius não pode deixar de notar a apreensão de seu superior.
— O que te aflige? — Quis Asralius saber, apreensivo.
— Ah, meu amigo... — Disse o monge, suspirando — Se você soubesse... Se você ao menos tivesse visto a mãe desse rapaz... Você entenderia.
— Refere-se àquela tempestade? — Indagou o jovem cultista.
— Não... — Respondeu o monge sério — Aquele ato não reflete nem um centésimo da capacidade daquela mulher... O que me assusta mais, contudo, não é o que ela é hoje, mas o que ela outrora foi... E o que temo que Ireas venha a ser...
— Como assim? — Indagou Asralius, fascinado.
— Sabe essa devoção toda que Ireas tem com a natureza? — Indagou o monge de forma retórica — A mãe desse menino tinha essa mesma paixão... Essa devoção... Que chegava a ser tão furiosa que a fazia cometer atos hediondos e impensados...
— Pela natureza? — Asralius continuou seu jogo de perguntas, buscando mais informação.
— Não... — Respondeu o monge com um sorriso triste, para a surpresa do jovem cultista — E acho que essa será uma das maiores decepções da vida desse rapaz se ele conseguir encontrá-la. Dizem as lendas que ela se tornou uma feiticeira formidável, inigualável em seu poder... Uma verdadeira força da natureza destrutiva dos humanos... Um dia, Keras a encontrará... E por Crunor espero que esse garoto não termine como ela...
Continua...
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Nota da Autora: hoje eu coloquei uma imagem do Ireas no tópico do concurso PVP... Bem, como estou sem o link agora, basta procurarem por lá. Farei uma versão dele com o Terra Set completo para ficar bem druídico – a versão que está lá é a do Glacier Set (incompleto, pois não desenhei a Glacier Mask...)