O Ogro-Rei
Um vento soprava fortemente ao norte da cidade de Carlin, expulsando os cheiros de sangue e morte que empesteavam o local. O barulho do ar em deslocamento abafou um novo zunido, que rapidamente cresceu até extinguir-se subitamente com uma pancada surda no solo, momentaneamente rubro. Uma pedra gigante fora lançada de uma das catapultas, acertando cinco ogros na queda e ferindo outros sete com o estilhaço.
— Recuem! Estamos sob ataque!
A voz do general Charkahn ecoava em meio às tropas. O comando, dado em gurgulês, era ouvido por todos, e logo uma onda verde punha-se em movimento tático organizado, recuando vários passos, mas sem perda da ordem.
— Argh, não!
Em meio ao ruído incessante do vento e ao crepitar das chamas, propagadas rapidamente em meio à planície, o grito de um dos capitães da horda ogra era ouvido. Repentinamente raízes emergiram do solo, entrelaçando-se em seus pés e subindo até transformá-lo em árvore. Situação semelhante ocorreu com vários outros ogros ao redor, formando uma floresta nova na região. Incrédulos, alguns ogros mais fracos debandaram, correndo para longe, e encontrando-se diretamente com as tropas élficas, que vinham fechando a rota de retirada que o comandante traçara.
— General, senhor! O comandante Markhtian deve ter sido derrotado! Os elfos vêm vindo!
Anunciava um dos coronéis, braço-direito de Charkahn. Os ogros estavam ali reunidos em duas frentes, sendo cada uma comandada por um dos generais. Seu objetivo era tomar a cidade de Carlin e a de Ab’Dendriel, tornando-as dois entrepostos ogros. A tática, apesar de ousada, parecia surtir resultado, pois as amazonas já estavam bastante enfraquecidas e os elfos estavam muito ocupados controlando vários incêndios, causados pelo grupo de Markhtian, em suas florestas.
Mas a situação mudara agora, com a possível derrota de seu companheiro ogro e Charkahn, analisando tudo isso, deu o comando em alto brado:
— Debandar para os Montes Femor, ala leste! Agora!
Odiava ter que sair assim. Não era desse modo que um dos mais brilhantes servos de Zathroth deveria agir. Ele não ganhara o título de Charkahn, o Assassino, fugindo de suas lutas. Pelo contrário. Era o responsável por uma mortandade sem número de caras-pálidas. Só nesse último assalto, fora o responsável pela morte de Bambi Bonecrusher, uma das amazonas mais notáveis de Carlin, além de matar, sozinho, toda a Guarda Real de Eloise. E só não a matara porque ela escapara enquanto seus soldados lutavam com ele.
Nos últimos anos, a guerra entre os servos de Uman e os de Zathroth havia tornado-se mais dura e cruel. Dezenas de milhares de homens e de ogros morreram durante esses confrontos, mas a raça humana conseguira obter vantagem cada vez maior, especialmente depois da construção de suas cidades. Apesar da raça ogra ser uma raça bélica, a construção de verdadeiras fortalezas era algo acima de suas capacidades e, aos poucos, foram derrotados pelos muros gigantes que protegiam cidades como Carlin e Thais. Dos dez generais que formavam o Conselho Gúrgule, apenas ele e Markhtian haviam sobrevivido, e, agora, era seguro supor que estava só.
— Tropas! Reunir e sentar acampamento! Agora!
Exclamava o Assassino, já na ala leste dos Montes Femor, ao sul de Ab’Dendriel. Tão logo estivessem com a horda reorganizada, pediria a seus capitães que fizessem a contabilidade das tropas, para rever a situação. O ataque fracassara e, agora, provavelmente sua espécie pereceria. A ideia era usar das construções humanas em favor de sua raça e, com isso, conseguirem expandir suas forças. Assim como eles não conseguiam tomar uma cidade, os humanos tampouco conseguiriam reavê-la, uma vez dominada. Mas falhara e não sabia como proceder.
Ainda refletindo sobre as motivações que levaram àquela derrota, bem como as implicações dela, não percebeu que um de seus batedores aproximava-se. O Lobo de Guerra sobre o qual estava montado possuía vários ferimentos e, tão logo aproximou-se do objetivo final, virou de lado e caiu morto. O Ogro Guerreiro que nele estava montado escapou de ter a perna esmagada por pouco e, ofegante, disse:
— General! Os humanos e os elfos estão vindo! Querem nos expulsar totalmente!
Soltando um palavrão, Charkahn imediatamente deu a ordem de segui-lo. Havia levado-os à derrota, mas não suportaria ser o responsável por sua extinção. Seguindo à frente, começou a trotar para leste. Sempre para leste. Uma leve chuva começara, fato esse apreciado pelo Assassino, que sabia que a água diminuiria seu cheiro e apagaria algumas pistas. Com uma prece mental, agradeceu a Zathroth, pedindo, ainda, para que ela se tornasse mais forte.
Após um dia de caminhada, viram-se presos por um rio, cortando toda a planície à sua frente. Os instintos do General diziam que ainda não estavam seguros, apesar de não terem mais notícias de outros batedores. Resolvendo arriscar-se, ordenou às tropas que atravessassem a água corrente e refizessem formação do outro lado do rio. A maior parte de seus subordinados conseguiu realizar a travessia, ainda que indo parar longe do local começado, dada a força da correnteza. Mas vários, já exaustos pelas batalhas e pelas fugas, não tiveram forças suficiente para continuar e foram arrastados.
— Soldados, descansar!
Ordenou o comando e, enfim, todos os ogros desabaram no chão úmido praticamente ao mesmo tempo. Apesar de uma raça forte, mesmo os temíveis peles-verde não eram imunes ao cansaço e ao esgotamento físico. Muitos dos que caíram jamais se levantariam novamente, com suas forças minadas até o último instante. Charkahn sabia disso e amaldiçoava a cada instante daquela empreitada. Continuava rezando para seu pai, Brog, e pedindo a ele que os auxiliasse de algum modo, nem que fosse apenas para escapar.
Naquela noite, sonhou com um descampado enorme e deserto,ou quase, pois, no centro dessa planície, estava um ciclope. Mas ele não era qualquer ciclope, o General logo percebeu. Era seu pai.
— Saudações, filho. Me pediu ajuda e cá estou. Ao acordar, ponha suas tropas em movimento de novo e ande sempre para o leste. Os humanos até agora não colonizaram essa região, e vocês encontrarão abrigo aqui. Vou enviar alguns de meus filhos ciclopes para auxiliarem nessa tarefa. Descansem, recomponham-se e preparem para lutar mais uma vez. É o meu desejo e o de seu avô também, Zathroth.
Sua voz parecia retumbar a cada som emitido, como se o próprio céu estivesse falando, sob a forma de trovões. Tão logo despertou, recordou-se de seu sonho e recomeçou a marcha forçada dos ogros, em um ritmo muito forte. A chuva continuava a cair e atrasava os perseguidores, para a sorte do Assassino.
Ao fim de uma longa semana, em que a tropa só parou por seis horas ao dia, somente para dormir, caçar e comer, a terra prometida foi encontrada. Isolada por várias enseadas, que adentravam o continente, a planície era praticamente uma ilha e, durante a maré cheia, a água terminava de cercar a terra. Ainda não havia sinal dos ciclopes, mas, afinal, a distância que os grandões teriam que percorrer era ainda maior.
Com bom humor pela primeira vez após a debandada, Charkahn ordenou:
— Sargentos e soldados, limpem a área e preparem a refeição. Hoje teremos um banquete! Tenentes e capitães, organizem os acampamentos! Ruzad, comigo agora!
Ruzad era o coronel de maior prestígio com o Assassino. Não só era um dos Líderes de Guerra mais capazes, como também era um amigo íntimo de Charkahn. Ou pelo menos até onde isso é possível na espécie ogra.
— Algum problema, General?
— Nenhum, velho amigo. Ou melhor, nenhum novo. Apenas os de sempre. Te chamei aqui porque quero discutir sobre essa última batalha. Precisamos de pensar em um modo de tomar uma cidade, ou será impossível para nossa espécie perpetuar.
— Tem razão. Mas é impossível conseguirmos destruir os caras-pálida dentro de suas fortalezas, e não sabemos como construir uma. Se ao menos conseguíssemos escravizar os anões para fazer o trabalho por nós…
Durante várias outras horas, o assunto foi sendo discutido, cada hora um traçando uma ideia e depois ela sendo rejeitada pelo companheiro. A raça ogra não era uma raça muito inteligente, limitando-se a apenas guerrear. Alguns poucos eram dotados de verdadeiro raciocínio de guerra e estratégico, tornando-se rapidamente os líderes de hordas, como era o caso de Charkahn, Markhtian e Ruzad.
Outros três dias se passaram, dias esses em que os ogros dormiram, beberam e comeram, além de começarem a organizar o acampamento. Charkahn permitiu que descansassem bem, pois sabia que precisava elevar a moral de seus comandados. Nesse meio-tempo, a chuva, que caía incessantemente, finalmente dera trégua, deixando para trás os seus perseguidores, que, finalmente, haviam perdido o rastro. Por mais que homens e elfos caminhassem rápido, os ogros conseguiam manter uma marcha forçada por um tempo bem maior, o que lhes permitiu escapar.
Totalmente recuperado, o Assassino começara a realizar seu trabalho, andando entre as tropas e conversando com seus homens. Recebeu notícias de várias baixas e perdas, e sabia que os próximos dias seriam dedicados à contabilizar os mortos. Mas o momento era de elevar a moral dos vivos. E, caminhando entre seus subordinados, que ocorreu algo inesperado.
Tropeçando em um pedaço de metal fincado no chão, o General caiu no solo enlameado e afundou quase que instantaneamente, ficando apenas com um dos braços visíveis justamente ao agarrar-se no objeto que lhe causara a queda. Dois sargentos rapidamente ajudaram a puxá-lo para cima e, no momento em que saiu, trouxe consigo uma lâmpada, totalmente coberta por barro. Ainda ofegante pelo susto, limpou o artefato e, de dentro, saiu um gênio, ficando parcialmente preso ao item místico.
— Finalmente! Achei que fosse ficar éons preso aqui dentro! Por ter me libertado, você tem direito a três pedidos!
Era Malor, um antigo general dos Djinns, raça mística pertencente a Mal’ouquah. A planície onde os ogros agora encontravam-se havia sido palco de uma batalha antiga entre as duas facções Djinn, e, com o fim daquele conflito, o local fora abandonado. Apesar de estar atordoado, Charkahn rapidamente se recompôs e, entendendo o significado daquelas palavras, olhou para o gênio e retorquiu:
— Terei três desejos concedidos? Independente de quais sejam?
— Sim, ogro. É exatamente isso que eu disse. Agora faça-os logo, para que eu possa, enfim, sair por inteiro dessa prisão.
— Então vejamos… Eu quero que uma fortaleza seja construída aqui, nesse espaço, de tal modo que seja impossível tomá-la de nós.
Charkahn era um líder nato e, entendendo a natureza dos pedidos a que conquistara, rapidamente percebeu que poderia, enfim, conseguir o que buscara quando atacou Carlin e fracassou. O ogro não confiava nas palavras do gênio e simplesmente queria testá-lo. Foi surpreendido, portanto, quando toda aquela lama começou a se mover, erguendo-se e solidificando no formato de muralhas e pequenos casebres. Modificações como essa foram sendo feitas durante todo o dia e também à noite e, com o fim desta, um paredão inexpugnável, contando com vários entrepostos de alarme antes, bem como com salas subterrâneas dentro do local haviam sido criadas. Surpreso, o Assassino esperou até que suas tropas estivessem todas ali para dizer:
— Meus comandados! Finalmente conseguimos o que tanto desejávamos. Possuímos, agora, um local para nos defender, assim como aqueles caras-pálida! Aqui descansaremos e aqui procriaremos. E, quando estivermos fortes o bastante, novamente atacaremos os humanos nojentos! A raça preferida de Uman será exterminada!
E, com esse discurso, os ogros responderam com um berro gutural, que pôde ser ouvido até mesmo em Venore, bem ao sul dali. Malor, que ainda aguardava, começava a irritar-se com a demora do General e logo cobrou dele:
— Diga logo os outros dois desejos, mortal!
Como se fosse essa a deixa esperada, Charkahn aproveitou-se das palavras do próprio gênio, para proclamar, em voz alta:
— Mortal até o presente momento! Pois meu segundo desejo é tornar-me imortal e, com isso, poder comandar as minhas hordas para sempre, tornando-me o primeiro Rei Ogro da história!
Os ogros, novamente, foram à loucura com aquele pedido. Malor transformou o Assassino em um imortal e, para confirmar isso, pegou uma espada e perfurou o coração do líder ogro. Indiferente ao golpe, o General simplesmente retirou a arma, mostrando que o ferimento fora regenerado no mesmo instante em que sofrera.
— Nada nem ninguém poderá nos derrotar, meu povo! Malor, pode voltar para a lâmpada, porque não tenho mais nenhum desejo por enquanto. Quando tiver, te chamarei.
O gênio havia ficado irritado com a fala de Charkahn, mas nada podia fazer, preso àquela lâmpada mística. Enquanto estivesse lá dentro, era subordinado à forças maiores que as suas. Com calma, planejou sua vingança, esperando pelo momento certo. Até que ele finalmente veio.
Um mês havia se passado desde então e a raça ogra prosperou em suas novas habitações. Alguns ciclopes chegaram cinco dias depois de sua construção, reforçando a segurança e fornecendo novas armas e criando catapultas para a horda, que tornava-se ameaçadora novamente. Parecia que o Rei agora não precisaria de mais nada, mas logo mudou de ideia.
Chamando Malor novamente, o Rei Ogro pediu ao gênio:
— Meu último pedido é o seguinte, gênio: Quero tornar-me o ogro mais fértil já existente, produzindo os melhores descendentes para a batalha! Meus filhos tornar-se-ão os guerreiros mais temidos, assim como o pai é hoje!
Malor viu nisso a chance pela qual esperava. Escondendo um sorriso, perguntou, sério, ao líder da Pedra de Ulderek, conforme ficou batizada a fortaleza:
— Então você quer produzir descendentes rapidamente, procriando como nunca antes visto?
— Isso mesmo!
— Pois que assim seja, tolo!
E, dizendo isso, soltou uma risada demoníaca ao mesmo tempo em que transformava Charkahn em uma poça de lodo. Com a aparência de uma criatura conhecida como “Profanador”, o Rei-Ogro ficou totalmente aturdido e, nesse instante, o Djinn aproveitou para escapar. Não sem antes dizer:
— Você não queria multiplicar-se rapidamente? Nada consegue proliferar tanto como o Lodo. Boa sorte comandando suas tropas dessa forma!!
E, finalmente, o gênio estava livre, retornando para o continente de Darama. Charkahn, totalmente perplexo, pela primeira vez não foi capaz de reagir rapidamente. Sua guarda pessoal, horrorizada, logo espalhou a notícia, minando a moral dos ogros. Mesmo hoje, cinco anos depois, os ogros de Ulderek recusam-se a sair para o ataque, envergonhados pelo modo como seu líder foi enganado. O Assassino, sedento de vingança, espera pelo momento certo, em que aprisionará novamente Malor, restaurando sua honra, perdida de forma vexatória.