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CAPÍTULO 11 – CONTRATEMPOS


Jason acordou do que lhe pareceu um longo sono. Leonard e John estavam sobre ele, curiosamente sujos de cal, mas parecendo inteiros. O rosto do arqueiro se iluminou com um sorriso tão logo o cavaleiro se colocou sentado, meio confuso, meio nervoso. Por algum motivo, a Santa’s Home, em Vega, estava parcialmente destruída, móveis revirados por todos os lados, árvores tombadas no chão… uma bagunça inexplicável.

No caminho até o barco, enquanto um Jason trêmulo era conduzido por John como se fosse uma boneca de pano, Leonard tagarelou incessantemente sobre uma espécie de ogro de gelo que continha a energia canalizada de Sirius, e como ele descobriu que havia somente um ponto de fraqueza naquela fera enorme. Nos intervalos, Jason balbuciou uma coisa ou outra sobre as transformações de Sirius e as dificuldades enfrentadas no mundo espiritual.

O incandescente parecia bastante surpreso e um pouco admirado. Sirius era sanguinário, e costumava fazer com que suas vítimas ou enlouquecessem, ou entrassem em pânico completo, antes de as matar. Embora ele não gostasse de se divertir com a caça, e certamente não fosse o Senhor da Agonia, como Bellatrix, era um demônio de primeira classe na ordem de Zathroth. Torturar e matar eram suas especialidades.

O jovem Jason, por outro lado, parecia ter se virado bastante bem sem o auxílio dos amigos. Embora talvez ele não conseguisse derrotar Sirius na outra dimensão se Leonard não tivesse destruído a fonte de seu poder, em condições favoráveis, um ritual de exorcismo poderia ter funcionado.

Por alguma razão, Jason estava mais quieto do que de costume e mal reagiu quando subiu a bordo e foi beijado na boca por Melany, que parecia muito aflita com a demora. Na altura em que o navio foi recolocado em sua rota para o destino final, o garoto adormeceu em sua cabine, fartamente envolto em vários cobertores.

Melany aproximou-se de Leonard, que comandava o timão naquele momento. Ela sorriu para ele, meio pálida, e se sentou ao seu lado, envolta em um sobretudo grande demais para ser dela.

— Você tem alguma habilidade especial? – perguntou, puxando conversa.
— Não – Leonard respondeu prontamente, muito sério, os olhos no mar e uma cigarrilha presa aos lábios. – Mas, uma vez, conheci um cara que conseguia tirar a língua pelo nariz. Qualquer que seja a sua habilidade, nunca será como a dele.

Ela riu, surpreendentemente não o chamando de cabeça-oca. Leonard olhou para ela como se a tivesse visto pela primeira vez na vida.

— Não acha isso idiota?
— Para falar a verdade, acho muito engraçado.
— Isso porque você não viu a língua do cara saindo pelo nariz.

Ela riu de novo, e Leonard se sentiu momentaneamente feliz porque uma garota legal parecia apaixonada por Jason. Ele arrastava multidões, é claro, embora sempre negasse veementemente o fato, e parecia ter o coração absolutamente selado. Talvez a arqueira – ou druida, como preferir – pudesse romper as barreiras do cavaleiro e fazê-lo feliz. Em silêncio, Leonard torcia muito para que aquilo acontecesse. Amava o amigo como se amasse um irmão.

John se aproximou um pouco depois e também se juntou a eles. Embora fosse aparentemente muito experiente, estava tão impressionado quanto eles com o desenlace dos fatos envolvendo aquela missão.

— És um homem de fibra, Saint – disse ele, de repente.

Leonard, sem jeito, manejou o timão, olhando sem ver.

— Conheço um cara que tira a língua pelo nariz.
— És muito engraçado também – o incandescente sorriu. Leonard se sentiu novamente feliz.

De repente, Joshua gritou, de cima do cesto do mastro.

— Navio! A todo pano! No nosso rastro!

John desceu correndo as escadas da proa e se dirigiu à popa rapidamente, seguido de perto por Melany. Sacando a própria luneta, ele olhou para o rastro do navio deles, e identificou uma embarcação não muito distante dali. Parecia estranhamente acelerada para alguém que fizesse uma travessia comum e, a julgar pelo modo como cortava as águas, os estava perseguindo.

— Mercenários. Leonard, eles são mais rápidos que nós. O navio é profissional. Precisamos de Jason e também do restante da tripulação. Vamos deixá-los emparelhar e, aí, podemos combatê-los.

O arqueiro assentiu, deixando o timão sob o comando de Cotton e correndo quarto adentro. Melany tratou de trazer os outros marujos e Catarina também subiu, de cajado em punho. A garota empunhou seu arco e Leonard voltou na sequência, branco feito um fantasma.

— Jason não acorda – disse, tenso, sacando o próprio arco. – Teremos que combater sem ele.

O outro navio ia os alcançando em uma velocidade extraordinária. Os homens foram tomando suas posições e observando a embarcação chegar.
Logo, Leonard conseguiu distinguir uma criatura conhecida no comando do timão. Mirrado, pequeno, cabelos ruivos, vestes de forasteiro. Alistair. O mercenário que o atacara para saber do paradeiro de John, o incandescente. As outras figuras ao seu lado pareciam as mesmas daquele dia: um gordo enorme chamado Howard e um magrelo comprido chamado Louis.

Leonard quase desmaiou de alívio.

— Boas novas, John. Conheço os panacas. Está no papo.

John olhou para ele, tenso.

— Se chegaram até aqui, Leonard, duvido muito que sejam panacas completos. Seja quem for que você conheceu no passado, prepare-se para enfrentar uma batalha dura e não os subestime.

Algo muito grande passou voando pelo navio, errando-o por muito pouco. John relanceou um olhar para o ponto do oceano onde a coisa caíra.

— Balas de canhão. Eles não estão para brincadeira. Querem nos afundar.

Logo o navio dos mercenários estava muito próximo, quase o suficiente para que sua proa tocasse a popa. Alistair, sorrindo medonhamente, gritou:

— Eu prometi a Lancaster que, se vocês passassem por Sirius, eu os pegaria! E vou cumprir minha promessa.

Leonard olhou para John.

— Quem é Lancaster?

John fez uma careta, irritado.

— É o líder da guilda dos Gatunos da Meia-Noite. Caçadores de recompensa, sem escrúpulos e sem princípios.
— Então o paspalho faz parte dos Gatunos no final de contas – Leonard pareceu admirado.

Outra bala de canhão foi disparada e errou por centímetros a vela mais alta do navio. Algo precisava ser feito depressa, ou virariam comida de quaras no fundo do oceano.

— Acho que tive uma ideia, John – disse Leonard, mensurando a distância. – Comande a tripulação por aqui, tudo bem? Quero revides instantâneos, nenhum golpe que sofrermos poderá ficar sem resposta.
— Está bem, mas o quê…

Leonard não esperou. Ele sacou uma flecha da aljava e tateou em volta no mastro do timão, buscando uma corda entrelaçada ali. Prendendo-a firmemente ao rabo do projétil, ele o equipou no arco e mirou com cuidado, disparando na sequência.

A flecha voou pelos ares e se alojou no mastro da proa do outro navio. O arqueiro gostaria de ter comemorado, mas achava que a situação exigiria um pouco mais de seriedade. Rapidamente, ele embainhou o arco nos entornos do corpo e puxou um mancal de ferro vazado caído por ali, que fazia parte da manutenção do navio, e o prendeu firmemente à corda, segurando em suas ambas extremidades.

Nem o mais fantasioso dos marujos esperava pelo que veio na sequência.

Aproveitando-se da inclinação ligeira da corda disparada, Leonard tirou os pés do chão e deu um impulso no ar. Logo o mancal começou a deslizar pela corda na direção do navio dos mercenários, e, em questão de segundos, Leonard estava em território inimigo.

Ali, ele teria que pensar depressa.

Ele sacou dois punhais emergenciais que carregava consigo e combateu o primeiro dos marujos oponentes, desarmando-o com uma facilidade impressionante. Com um chute bem dado, ele o atirou no oceano.

Leonard desceu correndo pela escadaria da proa do navio, ingressando no convés. Vários mercenários o atacaram, mas seus instintos estavam aguçados: ele gingou para o lado e desviou um golpe de espada, cravando um punhal no estômago de um deles e puxando-o de volta. Com outro movimento ágil, ele acertou um bom soco no rosto de outro, que caiu desacordado.

Seu quarto adversário foi o gordo imenso chamado Howard. Leonard não teve problemas para não cometer o mesmo erro de Jason e deixá-lo vivo: seu punhal atravessou a mandíbula do mercenário e saiu pelo seu olho direito.

Um projétil foi disparado no ar e se alojou nas costas de um homem que estava prestes a atacar o arqueiro, derrubando-o. Leonard levantou a cabeça a tempo de ver o polegar de Melany ser erguido no navio deles, em sinal positivo.

Aqui e ali, o arqueiro ia dançando e se aproveitando de seu pouco peso e de sua grande agilidade para atirar mercenários no mar. Porém, quanto mais baixas ele causava, mais deles pareciam surgir de todos os lados: da cabine do convés, do subsolo do navio, dos cestos dos mastros…

Por falar em mastro, logo um deles rangeu e se partiu ao meio, fruto de uma magia disparada por Catarina. O movimento parabólico desenvolvido pelo mastro partido arrastou consigo inúmeros homens, atirando-os ao mar. Leonard aproveitou a deixa e sacou seu arco, disparando flechas numa velocidade que tornava a defesa de seus adversários praticamente impossível.

Inacreditavelmente, Gibbs, o marujo, se juntara ao combate. Ele parecia ter se aproveitado da corda atirada por Leonard e ingressou no navio adversário, de lança em punho. Apesar do tamanho e da pouca inteligência aparente, lutava com eficácia; sua lança fora a responsável por tombar outros quatro ou cinco homens.

Não demorou para que Joshua também aparecesse, gritando algo como “ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte” e acertando sua bíblia na cara dos oponentes. Logo na sequência, Cotton também apareceu, gritando “malditos” e distribuindo socos por todos os lados.

De um modo geral, Leonard estava satisfeito com seu trabalho e com o trabalho da tripulação de Jason.

Contudo, algo parecia estranhamente fora do lugar.

Onde está Alistair?

*

Alistair aterrissou suavemente na popa do navio de Jason Walker, aproveitando-se da balbúrdia. Importava cumprir as ordens de Lancaster, ainda que, para isso, precisasse perder toda a tripulação que lhe fora designada. A frieza do mercenário surpreendera até a ele mesmo, que não sentira sequer um quê de remorso quando vira aquele punhal atravessar a cabeça do amigo Howard.

O incandescente seria procurado depois. Outro homem a bordo tinha ainda mais relevância do que ele. O homem para quem fora designada sua missão.

Jason Walker.

Alistair passou pela arqueira de cabelos vermelhos, que ria abertamente disparando suas flechas aqui e ali e, incompreensivelmente, vez ou outra alguma magia. Ele desceu as escadas da popa rapidamente e não encontrou ninguém no convés. Supunha que Walker tinha ficado com o quarto da proa. Seria o primeiro lugar que visitaria.

Ele empurrou as portas duplas de madeira de qualquer jeito, ingressando no aposento. Uma mesa com alguns mapas e alguns planos estava empurrada a um canto, e, presas aos mastros, duas redes jaziam vazias. Jason Walker não estava ali.

Alistair respirou fundo e se preparou para descer as escadas de volta para o convés, ligeiramente frustrado. Contudo, quando ele se virou, algo o atingiu na altura da coluna, perfurando seus pulmões e saindo pelo seu estômago. Ele olhou para baixo e se deparou com uma lâmina brilhosa, com as letras “J”, “S” e “W” gravadas.

A lâmina foi sacada e Alistair caiu no chão, prestes a mergulhar na inconsciência eterna.

— Sabia que havia cometido um erro – disse a voz de Jason, carregada de intolerância, cansaço e um certo arrependimento. – Devia tê-lo matado antes. Apodreça nas colinas de Zathroth, maldito.

O mercenário respirou profundamente pela última vez e não se moveu mais.