CAPÍTULO 1 – JASON WALKER
Aquele espetáculo não tinha nada de raro, mas ele se julgou abençoado por poder assisti-lo, mesmo assim.
Jason Walker é um jovem de aparência comum, nada marcante. Olhos castanhos, pele branca, mas queimada de sol, cabelos lisos jogados para o lado e corpo magro, mas atlético. Poderia malhá-lo, se quisesse, mas sempre acreditou que sua habilidade no manejo de uma espada seria mais determinante em um combate do que a beleza de eventuais feixes musculares salientes.
Sentado no cais de Carlin, Jason balançava livremente os pés sobre o oceano estranhamente calmo. Na linha do horizonte, o sol ia se pondo, exatamente no ponto onde céu e mar se encontravam e criavam a delimitação um do outro.
Existem alguns aspectos interessantes a respeito do povoado de Carlin que podem ser do seu interesse. Em primeiro lugar, todo o comércio local é exercido por mulheres, mais por uma questão eminentemente tradicional do que mandamental. No ponto que tangencia nossa história, a Rainha Heloise é a monarca em exercício, descendente de uma longa linhagem de reis e rainhas famosos, sendo que o irmão, Arthur, é o comandante da potência ao sul, chamada Thais. Toda a paisagem é muito vibrante, com vários pontos de preservação ambiental e paredes feitas de blocos de argila cuidadosamente cortados e encaixados um ao outro com capricho, assim como os telhados que revestem todas as construções, feitos do mesmo barro vermelho.
O cais fica na porção sudeste da cidade, que é inteira cercada por muros, exceto com relação à parte sul, que é banhada pelo oceano. Existem torres e torrinhas no castelo, ao norte, uma construção imponente que enche os olhos até mesmo dos moradores de Yalahar, a futurística cidade-modelo do continente. São três os portões de saída, um em cada ponto cardeal, com exceção do sul.
Agora, no antigo continente, quem não é comerciante, é guerreiro. Cada uma das cidades possui centros avançados de ensino de magia, arquearia ou cavalaria, e Carlin é a referência dos cavaleiros, embora as outras vocações também sejam bastante notórias.
A distância, um peixe rompeu a superfície do mar e saltou no ar, descrevendo um gracioso arco e retornando para seu habitat. Jason sentiu-se hipnotizado por um instante pela visão, mas logo foi trazido ao presente novamente por uma voz masculina que o chamou ao fundo.
Sorridente vinha Leonard Saint, o melhor amigo de Jason. O corpo dele era ligeiramente maior e muito mais desengonçado que o do jovem cavaleiro, e o braço direito era visivelmente maior do que o esquerdo. Trazia um arco pendurado no tronco – era um arqueiro –, na transversal, tinha a pele morena e cabelos finos sobre os olhos perspicazes.
Leonard era um forasteiro que chegara ao portão leste de Carlin num estado de quase morte, dez anos antes. A Rainha o acolhera e, desde então, Jason e ele se tornaram grandes amigos, sendo os maiores expedicionários da cidade na era moderna. Entretanto, os estrangeiros não costumavam ser vistos com bons olhos pelos moradores locais, e não tardou para que Leonard recebesse o apelido de “cabeça-oca”, em razão das coisas que falava e que faziam pouco sentido para os residentes. Jason vivia repreendendo a todos por isso, e o amigo vivia lhe dizendo para que deixasse isso para lá.
O arqueiro exibiu algo volumoso que trazia na mão direita. Parecia a metade de baixo de um porco.
- Jantar – disse, sorrindo feliz.
Jason levantou-se de um salto e acompanhou o amigo pelo cais, descendo pela escada de mão ao final.
Os dois dividiam um pequeno apartamento em um cortiço ao sul do cais, mantido pela Rainha e pela Coroa. O condomínio era muito pobre, mas ao mesmo tempo muito limpo e muito organizado. Tinha três andares, sendo que o primeiro continha um pedaço de floresta nativa junto à encosta do morro, onde as pessoas costumavam fazer seus grandes assados. Foi direto para lá que o arqueiro rumou, sendo seguido de perto pelo cavaleiro, que andava distraído.
- Boa oportunidade – disse Leonard, jogando a bolsa no chão de grama. Ela tilintou, parecendo estar cheia de ouro. – Aranhas gigantes e esqueletos no sudeste. São muito generosos.
- E de onde vem o porco?
- Venore.
Leonard fixou duas hastes de madeira no chão, cego aos olhares de protesto de Jason, que sabia que Venore era uma cidade pantanosa que ficava no extremo sudeste do continente, onde não era exatamente higiênico obter um porco para o jantar. Espetando o pedaço imenso de carne de fora a fora, o arqueiro começou a trabalhar no fogo, que logo estava aceso e contemplava, sobre si, o meio pedaço de porco que ia sendo girado aos poucos.
- Passou um bom dia? – perguntou ele, furando a carne com uma faca aqui e ali para checar seu cozimento por dentro.
Jason deu de ombros.
- Dois meses desde a última caçada – disse, um pouco encabulado. – Sinto-me um vagabundo completo.
Leonard espelhou o movimento do amigo, jogando os ombros para cima. Jason revirou os olhos.
- Sei que prometi a Heloise que auxiliaria o exército local, mas a verdade é que não sirvo para isso. Rapaz, isso é muito mais algo vocacional do que qualquer coisa que eu escolheria por livre e espontânea vontade. Vou morrer se passar mais uma semana andando nas ruas desta cidade.
- Anime-se – o arqueiro cortou um pedaço da carne e ofereceu ao amigo. – Algo pode aparecer em breve.
Jason mastigou sem vontade, embora a carne estivesse muito boa.
- Terei que pedir dispensa a Heloise.
Leonard levantou um dedo indicador, os olhos fixos em algo à sua esquerda. Jason parou no meio de uma mastigada, olhando para o amigo.
De repente, o arqueiro levantou a perna direita e soltou um peido particularmente alto. Não longe dali, dentro de uma das casas do cortiço, duas garotinhas com não mais do que cinco anos e que os vinham espionando pela janela soltaram gritinhos de susto, caindo das cadeiras onde estiveram empoleiradas.
- Fofoqueiras – murmurou, irritado.
Alguns minutos depois, a carne já estava pronta e, por um bom tempo, o único ruído que se ouviu foi o de mastigação e o de carne sendo arrancada dos ossos. Aos poucos, como numa espécie de ritual particular, Jason ia recolhendo os ossos do chão e os jogando dentro de um saco preto, e Leonard simplesmente comia com a maior voracidade que seu organismo permitia.
Pouco tempo depois, Leonard desceu para se lavar e Jason viu-se solitário, contemplando o vermelho das brasas da fogueira que ainda permanecia acesa. Foi com certo atraso que percebeu uma outra presença na clareira do pequeno bosque.
Jason levantou-se de um salto, procurando pela espada que havia deixado em casa – tinha o péssimo costume de andar desarmado quando não fazia rondas para o exército local. A poucos passos dali, semioculto pelas sombras, havia um homem de estatura mediana, totalmente careca e inteiramente vestido com uma túnica verde que recobria seu corpo do pescoço aos pés. Somente a cabeça e as mãos, inteiramente cobertas por tatuagens cinzentas que continham símbolos indiscerníveis, eram visíveis.
- O tempo urge, jovem Jason Walker – sentenciou o homem, a voz distante como se fosse dita através de um túnel, fazendo os cabelos da nuca de Jason se ouriçarem.
O homem deu um passo calculado adiante, saindo da proteção das sombras. Seu rosto era jovem, mas torturado, cheio de cicatrizes, e os olhos eram azuis da cor do céu.
- O herdeiro do Criador está pronto para enfrentar as mazelas que a vida lhe proporciona, mas deve preparar-se ainda mais para aquilo que seu futuro lhe reserva – continuou ele, a voz etérea. – O Messias precisa de treinamento, mas quando a hora chegar, deterá um poder que as criaturas do inferno desconhecem.
Jason piscou duas vezes, paralisado, sem saber o que dizer.
- O ponto mais profundo da interligação do calor e do frio guarda a recompensa final, que somente poderá ser alcançada por aqueles que desafiam os mais poderosos soldados de Zathroth.
- Quem é você, maluco? – conseguiu perguntar Jason por fim, liberto de seu transe.
O homem lhe deu um meio sorriso, revelando uma dentição surpreendentemente perfeita.
- O tempo urge, Jason Walker – repetiu o homem. – Apresse-se, ou sua chance passará. E seu continente não mais poderá ser salvo.
Repentinamente, o homem disparou até o parapeito do cortiço e, sem pensar duas vezes, saltou por ele, indo de encontro ao mar.
Jason soltou um grito estrangulado e correu até a borda, identificando somente as ondas que o mar, àquela hora calmo, criavam pelo corte que o corpo do homem causou à superfície da água. Desesperado, o jovem cavaleiro correu até as escadas do cortiço e atropelou Leonard, que vinha retornando bastante pouco atento e totalmente alheio ao que estava acontecendo.
À beira do oceano, Jason começou a tirar as peças de roupa e logo estava seminu, preparando-se para saltar no oceano e salvar a vida do homem.
De repente, seu corpo tornou-se duro como pedra e ele tombou de lado, totalmente inerte, o corpo retesado num ângulo estranho, mas consciente.
- Por Crunor, o que é que você acha que está fazendo?
Leonard aproximou-se dele segurando uma pedra roxa nas mãos. Jason amaldiçoou o amigo até sua décima oitava geração.
Runa de paralisação, pensou, frustrado.
- Liberte-me – exigiu Jason, com a mandíbula travada.
O arqueiro cruzou os braços.
- Você será libertado se me prometer que não vai saltar no mar igual a um retardado mental.
Jason manteve-se em silêncio, e Leonard entendeu que era em sinal de concordância e o libertou. O cavaleiro se levantou e começou a se vestir novamente; começara a fazer um frio incomum.
- Um cara careca apareceu lá em cima e falou uma porção de abobrinhas, feio que só a porra, cheio de tatuagens bisonhas – disse, enquanto passava a camisa de linho de qualquer jeito pela cabeça. – Falou alguma coisa sobre um tal de Misael e depois simplesmente saiu correndo e pulou na água.
Leonard fez cara de compreensão.
- Ah, então foi isso que caiu no oceano? Pensei que você tivesse jogado o que sobrou do porco.
Jason piscou duas vezes, achando o amigo bastante obtuso.
- Eu não jogo os restos de comida no mar.
- Isso seria mais estranho do que se aparecesse um careca esquisito falando sobre Misael.
O cavaleiro assentiu enfaticamente, de olhos arregalados.
Leonard respirou profundamente.
- Jason, acho que está na hora de irmos dormir, cara. Vá se lavar e eu te encontro lá em cima. E nada de pular no mar.
O arqueiro subiu devagar as escadas do condomínio, prestando muita atenção no amigo. Quando Leonard desapareceu, Jason relanceou um olhar para o mar muito calmo, imaginando que o homem que o visitou, talvez, estivesse morto pela queda – havia uma formação rochosa muito perigosa na encosta da parte sul da cidade, que poderia ter tornado o salto fatal.
Sacudindo a cabeça, Jason se lavou e subiu para seu apartamento, que era extremamente ajeitado e limpo, mesmo para os padrões da cidade. Havia uma sala central, onde os amigos acumulavam os prêmios que obtinham nas missões que empreendiam; Leonard ficara com o quarto a leste e Jason, a oeste. Seu quarto continha um armário de armaduras, um guarda-roupas sólido e uma cama puída e gasta.
Ele se deitou e, durante alguns minutos, permaneceu raciocinando sobre a ideia de ter sido visitado por aquele homem misterioso e bizarro. O salto do homem para a morte pareceu-lhe um péssimo augúrio, como um presságio de que coisas ruins estavam para acontecer, e aquilo espiralou pela mente do cavaleiro por um bom tempo até que, finalmente, vencido pelo cansaço, o sono o dominou.
*
O homem careca emergiu já a muitos metros de distância do oceano, somente os olhos e o nariz postos para fora do mar. A distância, ele identificou o apartamento de Jason tendo seu archote apagado, o que significava que, provavelmente, os dois amigos tinham finalmente ido dormir.
Vamos, Jason Walker, pensou, preocupado.
Capte a mensagem e aceite seu destino.