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Capítulo I - Versão II
I
O delicado som do trovão ecoava nas ruas vazias de Carlin naquela noite, a chuva naquela época do ano era corriqueira e limitava os moradores da cidade à monotonia de suas residências. O refúgio das almas secas de diversão, promiscuidade e álcool acabava sendo a antiga taverna de Karl, estranhamente situada nas alamedas subterrâneas da cidade, nos túneis do esgoto os gritos e berros dos boêmios se misturava ao fedor e o movimento dos ratos.
A taverna já passava dos duzentos anos de existência e ainda resistia às investidas do governo Carliniano, que na falta de outras preocupações gastava seu tempo e as sobras dos tributos em condenação aos hábitos dos frequentadores.
Karl, o fundador havia falecido há mais de um século e meio, sua vida foi curta e nem um pouco próspera, mas o seu legado e seu negocio atravessaram gerações; naquela noite em especial o movimento era além do acostumado. Devido à ancoragem do navio que trazia grãos e cereais de Thais, muitos foragidos, párias da sociedade e aventureiros se esgueiravam em meio ao trigo e a aveia, seu refúgio: a taverna.
Ao lado da pilastra central um jovem bardo, não deveria ter mais de vinte anos. Podia-se notar duas coisas a seu respeito: o jovem atrapalhava com as cordas do alaúde que dedilhava ao longo da noite, já sua voz bem afinada compensava a falta de destreza com o instrumento. Cantarolava cantigas sobre heróis, batalhas, amor e aventuras, declamava poesias e bebia como um bardo qualquer que tenta ser o centro das atenções mas acaba sendo apenas o plano de fundo das discussões e diálogos dos clientes.
Logo após terminar de declamar uma poesia sobre um velho homem que se apaixona por uma jovem mulher o bardo pede a atenção da multidão, e anuncia uma nova peça musical; ele começa com uma introdução em sol maior, ecoando e passando para um fá seguido de um dó menor, uma harmonia estranha e desafinada que curiosamente atraiu a atenção de alguns ouvintes; em seguida ele inicia os versos:
“Orcs! Escutem essa canção!
Anões! Escutem essa canção!
Elfos e ladrões!
Creio que disso nunca se esquecerão!
Em um dia de festa
cerveja de sobra
pouca conversa
um pega a harpa e começa a trova.
Em meio à festa
não existe pressa.
Um grito se escuta,
o povo se assusta.”
A cantiga cessa por um momento, o som abafado de mais um trovão ecoa nas galerias úmidas, e os cochichos e risadas se tornam audíveis mais uma vez; a canção retorna, desta vez sem acorde nenhum, em vez disso o bardo adotou de batidas percussivas no corpo de madeira do alaúde, uma tentativa inteligente de simular tambores de batalha, sua voz retorna, dessa vez gutural, dando um tom obscuro e quase amedrontador à canção.
“Ciclopes atacando!
Não há escapatória!
A derrota é evidente,
sem chance para a vitória!
A guarda bêbada
não presta para nada,
e facilmente
Kazordoon será tomada!”
Eis que acontece a interrupção.
O bardo não notou, mas enquanto iniciava aquela cantiga, um anão encontrava-se sentado ao lado de um velho de vestes sujas, outrora brancas, de chapéu pontudo.
— Mas que diabos, Mirzig. — Esbravejou o anão. — Não suporto mais, não posso beber em paz, que um desgraçado, mal parido, resolve importunar a minha paz com essa farsa.
O anão voltou sua face pra encarar o bardo, que encontrava-se de costas para a mesa onde ele estava. Uma veia começou a pulsar na sua testa. A feição do anão era, no mínimo, cômica para quem o via de longe; sentado à mesa parecia uma criança super desenvolvida, já que seus pés não alcançavam o chão e ao mesmo tempo seu semblante indicava uma pessoa de certa idade, com historias e cicatrizes do passado. Mais o curioso era o seu cabelo, muito liso e comprido, porém inexistente no topo de sua cabeça, não se podia afirmar se era devido à queda ou por opção. De uma das largas narinas ele deu uma fungada, trazendo de volta a si um pouco do ranho que começava a escorrer por entre o espesso bigode.
O velho que se fazia presente junto ao anão se reservou a tomar um gole de seu caneco e sugerir ao anão não fazer nenhuma besteira.
Mas o conselho foi em vão.
“A guarda bêbada
não presta para nada,
e facilmente
Kazordoon será tomada!”
Foi ao fim deste verso que o anão desceu de sua cadeira com um pulo, e em fúria correu ao bardo e o derrubou, jogando-se às suas costas.
Sem saber do que se tratava, o bardo apenas tratou de proteger seu alaúde e clamar por ajuda enquanto era golpeado pelo anão que resmungava coisas como “mentira”, “ciclopes” e “Kazordoon”.
A cena atraiu o olhar de algumas pessoas, mas nenhuma intervenção, era mais alguma razão para beberem e rirem; se não fosse o velho interferir, o incidente continuaria por um bom tempo.
Como todo velho, aquele também tinha um cajado de apoio, uma velha madeira cinzenta e retorcida, tinha o aspecto mais frágil que a pobre alma que a empunhava. Foi esse cajado que separou os dois brigões no chão, com golpes constantes e bem aplicados à barriga do anão, que por sua vez rolou para o lado e cuspiu o início de um vômito ali mesmo.
— Por Durin! Isso não é necessário Mirzig. — Disse o anão de joelhos, entre um cuspe e outro.
— Os dois, me acompanhem, antes que isso vire um escândalo maior ainda.
O velho se dirigiu à saída da taverna, fazendo o máximo ao seu alcance para não derrubar a bebida de ninguém.
Lá fora era escuro, úmido e fedido, era o de se esperar de um esgoto. Outrora lampiões eram pendurados a cada três metros ao longo das paredes, mas com o aumento do preço do óleo devido a escassez do mesmo os donos da taverna retiraram os lampiões, sobrando apenas os suportes dos mesmos, que agora se encontravam misturados às teias de aranhas e musgos nas paredes.
Para garantir o mínimo de luminosidade, Mirzig, o tal velho, deu um batida rápida e seca com seu cajado no chão, que começou a reluzir em um leve tom de azul, iluminando ao redor dos pés dos três ali presentes.
— Primeiramente, Nevrok, seu anão desgraçado, se ainda tiver alguma coisa dentro dessa sua cabeça, já está passando da hora de usá-la. Em segundo lugar, o que diz o resto dessa canção?
— Nevrok? Você é o mesmo Nevrok da.. — Em meio a sentença, Mirzig interrompeu o rapaz.
— Primeiro as minhas perguntas, depois as suas, e nem se dê ao trabalho de começar a falar, anão. — Disse o velho, notando que Nevrok preparava-se para pronunciar alguma coisa.
O bardo iniciou:
— Está bem, suas perguntas primeiro. A canção conta da tomada de Kazordoon pelos ciclopes, que invadiram a cidade e mataram todos enquanto acontecia uma festa ou algo do tipo, já que estavam todos bêbados, mas apenas um do povo de Durin sobreviveu, com o nome de Nevrok, e com ele levou o Martelo do Trovão.
Ao pronunciar o nome do sobrevivente, o bardo dirigiu seu olhar para o anão ao seu lado, e por fim para o velho. Neste momento um rapaz encapuzado deixava a taverna e passou por entre os três, pedindo educadamente por licença.
— Certo, existem algumas falhas nessa sua história, algumas inverdades. Faça o favor de narrar a ele Nevrok.
— Com todo respeito Mirzig, mas eu não acho que eu devo contar esses segredos para esse bardo imundo, olhe só para ele, com esse cabelo dourado e esse queixo fino, ele parece um maldito Elfo.
— Ora, não era você que há pouco minutos se jogou de peito aberto contra esse coitado, proferindo palavras de mentira e falsidade, me parecia que você estava louco para esclarecer algumas coisas, por que não o faz agora que tem a chance?
O bardo apenas escutava e olhava para os dois em meio a discussão.
— Veja bem, Mirzig, eu sou um anão, e você sabe como nós anões somos, cometemos loucuras impensáveis quando estamos bêbados. Olhe só, já estou sóbrio de novo, eu juro, e conheço a besteira que fiz. Pare de me olhar desse jeito! Está bem, está bem, eu conto ao bardo a historia, pelos Deuses!
— Ouça bem, pois esta é a verdade, bardo, espero que ao conhecê-la pare de contar mentiras por aí. Sim, eu sou Nevrok, o anão que sobreviveu à invasão dos ciclopes e fugi levando comigo o Martelo do Trovão, a maior relíquia dos anões. Mas aquele massacre não aconteceu da forma que você narra. Nós não estávamos em festa, e muito menos bêbados. Só por que somos anãos vocês humanos acreditam que vivemos embriagados, mas não é assim que as coisas funcionam. Os ciclopes tiveram sucesso por que estavam juntos do Basilisco, sim, não se espante, eu vi os meus amigos petrificados, imóveis, para sempre na mesma posição, com o desespero para sempre estampado em suas faces, Durin! eu nunca vou esquecer do ferreiro que morreu abraçado a sua filha. Eu tive sorte de conseguir escapar, mas há um prêmio pela minha cabeça e o perigo é constante. Por isso pare de mentiras!
Nevrok, apesar de empenhar grande emoção em seu discurso não esboçou nenhuma alteração em seu semblante, parecia mais envergonhado devido à cena que acabou de causar do que comovido pela própria história.
— Tendo as coisas se esclarecido, eu tenho um pedido a você jovem bardo, mas antes disso me diga seu nome. Você conhece a nossa identidade mas não conhecemos a sua, por isso me digas, quem és tu? – Questionou Mirzig.
Fazendo uma saudação aos dois o bardo pronunciou seu nome — Karmin, Jonas Karmin eu sou, mas antes que me faça algum pedido, eu farei um eu mesmo. Por favor, me permida participar de sua comitiva, a história do anão me comoveu, e é uma ótima oportunidade para um bardo. Imagine os poemas e as canções que poderiam surgir, seria a minha consagração como trovador!
— Mas que inferno de pedido é esse? É claro que a resposta para o seu pedido é uma negação, não é possível que..
— Cale-se Nevrok, não estamos em posição de recusar ajuda, além do mais, ele já está envolvido nisso, se nós não o temos ao nosso lado o inimigo o terá. E esse era o mesmo pedido que eu iria fazer a ele; portanto Nevrok, guarde se orgulho por ora, e considere-se um amigo Jonas, pois você irá nos ajudar a retomar Kazordoon.