Esse é o relato das histórias de Don e Skar, heróis entre os seus, que foram cantados pelo bardo cego nos muitos anos de guerra e mesmo depois.
A neve apenas ameaçava cair, tingindo o céu de cinza e tristeza.
Nós estávamos na planície sul, e era inverno a cinco dias; ninguém queria arriscar se aventurar longe da cidade desde que um pequeno comerciante tinha sido encontrado morto há dois dias atrás. Eramos 3, eu, Don e um garoto que carregava um arco maior que suas pernas. Nosso mentor tinha nos dado uma semana de folga, desde que tinha viajado a negócios e nós tínhamos tido a idéia de ter uma autentica aventura.
Na teoria iríamos passear um pouco fora do perímetro, tentar alcançar o posto de vigia, trocar algumas mercadorias e voltar antes que dessem por nossa falta no alojamento. Então Don teve a brilhante idéia de chamar um guia local para nós ajudar, foi assim que paramos aqui.
O vale que nós cercava era cheio de árvores, um dos poucos lugares aonde a guerra ainda não tinha chegado com força total, à encruzilhada natural entre a floresta e as planícies. Só tinha duas entradas, o posto e a cidade de modo que se qualquer grupo de salteadores teria atravessar uma das duas guarnições e se preocupar com tropas vindas dos dois lados: era um maldito bolsão de fogo que podia ser defendido por cinco anões aleijados bêbados. Ao leste, dentro do campo de visão, estava o nosso posto de vigia de onde deveríamos chegar, se nosso guia não tivesse insistido em tentar obter algum lucro com essa viajem.
A planície estava vazia, a alcatéia tinha se dividido para caçar, um lobos ia atacar pelo vale e o resto do bando emboscaria os cervos na saída estreita. Lobos voando pela direita e pela esquerda enquanto mais lobos mordiam seus calcanhares, ia ser um massacre.
Enquanto isso nós olhávamos tudo a distância, vendo nossa grande aventura se transformar em uma tediosa espera. Passamos quase um dia apenas olhando para o vazio e comendo.
O garoto checou seu arco mais uma vez, ele tinha que caçar um lobo ou não haveria comida na sua mesa no próximo mês. Talvez por isso ele tivesse aceitado nós guiar até ali, quase dois dias de viagem de Thais. Ele era o único que tinha ficado quando a guerra chamou o último que podia alimentar a sua avó e peles de lobo valiam um bom dinheiro, ele tinha insistido muito para que matássemos o lobo antes de prosseguir.
Ele era um caçador, caçava pela necessidade tanto quanto nós pela aventura.
Ele era paciente, muito mais do que nós éramos, e teria que ser preciso, pois uma flecha em qualquer lugar que não fosse o olho e a pele estaria estragada tornando todo o nosso esforço inútil. Mas se ele acertasse... Então haveria comida. Imagino se o lobo pensava a mesma coisa dos cervos que ele estava emboscando.
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Mas o lobo não pensava, não sentia ou se mexia. Ele esperava a dois dias no canto mais escuro do bosque, sem comer ou dormir, e esperaria mais dois se fosse necessário.
Ele sacudiu seu pêlo branco, ele estava ali desde que o grande rei branco havia planejado a emboscada. Era uma emboscada ruim, ele sabia, havia uma chance que os cervos fugissem dele antes que o resto do bando atacasse. Mas os tempos estavam difíceis e em muitos lugares de caçar os homens faziam sons altos.
O grande rei branco tinha mandado dois lobos seguirem o rastro dos homens e eles tinham cheirado muitos caçadores. Isso não era bom. Os bandos estavam agitados, de muitos lugares na planície vinham notícias de caçadores indo de um lugar para o outro, mas não estavam caçando cervos nem coelhos; e um dia um bando simplesmente desapareceu. O grande rei branco achava que os homens estavam caçando os lobos, era a única explicação.
Quem mais eles poderiam caçar?
Ele sentiu o cheiro do mundo ao seu redor, ia nevar muito amanhã. Os cervos estavam comendo e bebendo, estavam prontos para correr agora. Eles iriam dormir de prontidão com sentinelas a postos. Quando fosse de manhã e eles estivessem com as bexigas cheias e prontos para se esvaziar ele atacaria e se tivessem sorte à neve iria congelar alguns deles garantindo comida por todo o inverno. O gosto da carne semi-apodrecida deu água em sua boca.
Se o lobo fosse um homem ele caçaria por muitas razões: dever para com a alcatéia, vingança pelos irmãos que haviam caído nas últimas caçadas, lealdade ao grande rei branco, glória por matar um cervo, prazer de sentir o vento em seu pêlo, fome e pela necessidade de se provar.
Mas o lobo não era um homem, ele caçava por uma razão muito mais simples:
Ele caçava porque era um caçador.
O lobo observava a planície sem pressa, o vento batia no seu pêlo, a neve começou a cair, os cervos se moveram. O mundo se transformou em um borrão quando ele se lançou a frente. Ele não fez nenhum barulho desnecessário, nenhum movimento em falso, nem sequer uma respiração fora do ritmo. Os cervos reagiram com igual rapidez, sem hesitação ou medo, fugindo pelo melhor caminho possível, em direção a emboscada. Onde mais lobos, tão silenciosos como ele, estariam esperando para lhes dar uma morte igualmente silenciosa. Somente os homens caçavam com barulho.
De repente o mundo se tornou vermelho e uma dor lacerante tomou conta do seu corpo. Ele caiu rolando pelo penhasco e observou o mundo ao seu redor, tudo estava tão bonito... Os cervos fugiram assustados na direção da armadilha... A neve caia lentamente... O vento batendo em seu pêlo acalmava-o e ele viu dois homens vindo em sua direção; caçadores.
Caçadores.
E essa palavra abriu as portas da sua mente de novo. Havia algo que nada poderia apagar, nem mesmo a fúria, nem mesmo a dor, algo que era parte fundamental do seu ser: a caçada. Ele se levantou lentamente e sentiu seus ferimentos: seu corpo gritava por descanso depois de tantos dias sem dormir, a dor era grande demais para ser suportada, ele tinha se ferido na queda, estava com fome e sua pata estava ferida de modo irreparável.
Teria que prosseguir sem ela.
Ele mordeu com força, a dor aumentando a cada segundo; e então a dor diminuiu. Ele não tinha mais forças para sentir. Olhou para o fim do vale: teria que correr para sair de vista dos caçadores e alcançar os outros antes que eles fossem embora. Levantou-se e saiu mancando, sem uma das patas.
“Não faz mal” ele pensou “ainda posso caçar.”
E fugiu para a imensidão.
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- Maldição! – Don rugiu – ele está tentando fugir.
- Isso certa... mente é impossível... meu caro, ele foi atingido.
Paramos na parte de baixo dos penhascos, não era possível ver o posto de guarda dali. O caçador que nos acompanhava era só um garoto, mas segurou a arma com firmeza, parou e apontou.
- Não tenho mira.
Paramos para descansar.
- Como não tem mira? É perfeitamente visível. Como você espera que tenhamos algum lucro?
- Danificaria o pêlo e não me dariam nenhum dinheiro. Preciso acertar um olho ou duas patas.
- Mas você feriu-o gravemente – eu argumentei – a besta terá que parar mais cedo ou mais tarde.
- Ele arrancaria a perna e continuaria correndo, já vi um deles fazer isso.
- Isso é um disparate. Que tipo de criatura arranca a própria perna ferida e continuaria correndo sem descanso?
- Um caçador. – Havia algo nos olhos daquele garoto, não era compaixão ou mesmo admiração, era um respeito sem limites. – Nenhum lobo vai parar a léguas desse vale nas próximas duas noites, não precisamos ficar aqui.
Don parou por um momento: - Como ele poderia fugir sem uma das patas? Como ele irá caçar?
- Fazendo tocaias e se ele não conseguir outros vão caçar por ele. A alcatéia cuida dos seus.
Fez-se um silêncio por um momento. Até que Don sorriu e brincou:
- Vamos esperar que os Trolls sejam mais fáceis. – e riu da própria piada.
Começamos a voltar sem pressa, indo para o posto de vigia, e eu lhe digo que depois de um dia inteiro sentado no chão duro esperando que aquele lobo saísse de sua toca aquela pocilga de posto me parecia bem aconchegante.
Foi quando nós viramos e demos de cara com cinco das mais horrendas criaturas que eu já tinha visto.
Seus rostos eram completamente deformados, com formas obcenas e eles estavam todos armados com espadas e lanças. Vestiam peles curtidas, simples, quase como as nossas roupas de viajem e pareciam mais que dispostos.
Orcs.
Mau dia.
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O lobo olhou seu bando se afastar.
Ele estava ferido demais para continuar por hoje, mas viveria para caçar outro dia se cuidasse da perna. O alfa tinha dito a ele para ficar escondido e esperar o sangramento parar antes de se juntar ao bando enquanto ele iria até o grande rei branco para contar o que ele tinha visto.
Homens caçando homens.
A aversão tomou conta do lobo, aquilo era... contra a natureza. Ele sabia que no passado os homens tinham caçado outros homens, mas não imaginava que isso pudesse acontecer.
Como é possível caçar alguém da sua família?
Todos os lobos de uma região são parentes, é difícil imaginar um bando caçando o outro. Um bando nada mais é que uma família e um alfa é um pai, quando um lobo saia de seu bando para procurar uma companheira ele não corta completamente os laços com seu bando.
É meio difícil sumir do mapa quando se corre 200 quilômetros em um dia.
Além do mais os bandos se ajudam, organizando caçadas que nenhum bando sozinho poderia fazer e cuidando dos feridos uns dos outros. Como? Como eles podiam?
Ele enfiou o que restou da perna na neve com mais força.
“Tomara que neve bastante.”
Sem a neve as carcaças deixadas para trás apodreceriam completamente e alguma raposa comeria tudo; fora o fato que seu pedaço de perna sangraria sem parar e ele morreria.
Ele pensou de novo na batalha que tinha cheirado. A dor da sua perna devia ser insuportável para ele cheirar aquilo. Ele ouvira histórias de lobos que ficavam feridos a tal ponto que cheiravam coisas que não estavam lá e nas histórias esses lobos morriam. Ele duvidava das histórias até hoje.
Porque era impossível ele ter cheirado aquilo, era um cheiro de dois machos jovens e uma criança, de alguns orcs e algo mais: Era um cheiro de um lagarto voador. Mesmo que ele nunca tivesse sentido o cheiro de um ele sabia. Entendeu assim que sentiu pela primeira vez: do mesmo modo que sabia que o sol sempre nascia do mesmo lado e que sabia quais plantas não devia comer. Ele sabia.
Os lobos pensavam no futuro como sendo para trás, porque não podiam vê-lo, e no passado como sendo para frente. E as histórias de lagartos voadores caminhando na superfície eram um pontinho no horizonte. Era impossível.
“Tem que nevar.”
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