Capítulo 5 - Em todos os lugares
Janor Benson - Venore
O recorte dela contra o crepúsculo venoriano era a coisa mais bela que Jan havia visto naquela semana. Quando pequeno, ele sempre achava que sua mãe, com suas maçãs do rosto rosadas, lábios delicados e cabelos da cor do ouro, era a mulher mais bela que podia existir no mundo. Agora, não tinha mais tanta certeza.
– Lenore – disse Jan sorrindo, se aproximando.
Lenore estava parada no meio da estrada. Seu vestido comprido e ajustado à sua silhueta era alvo como leite fresco, e contrastava espetacularmente com os tons escuros e sombrios das pedras que compunham a cidade. Os cabelos compridos e cacheados caíam até a altura de seu busto, negros e lustrosos como o céu na última hora antes do amanhecer. Aquele tom era ecoado nos olhos, compridos, afiados e inteligentes, que sempre olhavam para ele com um brilho que parecia em partes iguais sedutor e irônico.
Ela também sorria; um sorriso radiante que deixava transparecer os dentes por trás de seus lábios volumosos e sempre tingidos de vermelho. A visão fez o estômago de Jan despencar.
– Querido – disse Lenore, alegre. Então, os dois se aproximaram e se cumprimentaram com um beijo.
– Está pronto? – Ela perguntou, depois que se afastaram e recobraram o fôlego.
– Eu estou sempre pronto – respondeu Janor. Ele estava em partes entusiasmado, em partes um pouco reticente em relação ao que iam fazer, mas não poderia ter dito outra coisa.
Lenore tocou sua mão, e Jan percebeu que ela havia pintado as unhas de um tom de azul-escuro que o agradou. Ela sorria um sorriso irônico enquanto olhava para ele.
– Ah é? – Ela disse, estreitando os olhos. – Então quer dizer que o grande Janor Benson, que só faz o que quer, vai finalmente me dar ouvidos e se juntar a nós?
Jan deu de ombros.
– Eu não disse isso. Mas não faz mal ir dar uma olhada.
Os dois puseram-se a caminhar pela rua em um ritmo de passeio, de braços dados, como se não tivessem pressa. E realmente não tinham. O evento estava marcado para acontecer só às oito da noite. Até lá, podiam curtir a companhia um do outro. Ou pelo menos, era isso que Jan esperava. Lenore sorria radiante, e cumprimentava várias pessoas conforme iam avançando pela cidade.
– Claro, dar uma olhada – disse ela, com um risinho. – Como se você não tivesse ficado morrendo de curiosidade. Nosso grupo parece exatamente o tipo de coisa da qual alguém como você adoraria participar.
Jan assentiu. Inconscientemente, colocou-se atrás de Lenore para dar passagem a dois sujeitos com capas marrons que vinham na direção contrária.
– Parece empolgante. Mas eu não sei se posso crer que vocês realmente têm a influência que dizem ter, ao mesmo tempo em que permanecem tão escondidos – falou Jan. Então, decidiu provocá-la: – Também não pense que acredito em cada palavra que você diz, só porque você é bonita.
Lenore riu. Um riso delicioso. Levou a mão direita à boca enquanto ria, e Jan notou a joia presente em seu dedo indicador longo e esbelto: um anel de prata que parecia perfeitamente ordinario. Jan intuía, no entanto, que não era, mas tinha resistência em perguntar. Havia várias coisas sobre Lenore que ele desconhecia, mas sentia-se estranhamente acanhado na presença dela, e portanto, não questionava.
– Mas você não precisa acreditar na minha palavra – ela disse. Então, levantou o anel e deixou-o bem à vista. Os dois homens de capas marrons estavam agora quase emparelhados com eles. Ao verem a joia, ambos acenaram e ergueram as mãos direitas, nas quais brilhavam anéis semelhantes.
Jan ergueu uma sobrancelha.
– Então vocês se mostram um anel qualquer, e se reconhecem? – Ele questionou. – Qualquer um poderia ter um anel como esse. Não parece muito seguro.
Lenore revirou os olhos.
– Oh, você pode fazer melhor. Deve saber que essa pergunta não faz sentido, e que é mais do que isso.
– Eu achei que o que vocês queriam eram pessoas questionadoras – disse Jan, rindo.
– Sim, mas você tem que fazer perguntas inteligentes – ela rebateu, sorrindo maldosamente de volta.
– Vocês tiveram algo a ver com o incidente de Darashia? – Perguntou Jan, na esperança de que aquela seria uma pergunta melhor.
Lenore encarou-o, o rosto vazio.
– Agora você está só sendo atrevido. Sabe que não irei te dizer nada, a menos que você decida se juntar.
– Eu decidi, estou dentro. Agora me conte – ele disse, com um esgar.
Lenore o empurrou-o de leve: – Eu vou pegar minha varinha e te lançar um feitiço que vai te mandar lá para baixo, no pântano.
Os dois continuaram caminhando, enquanto as luzes noturnas da cidade iam se acendendo, e as pessoas entravam no clima da noite venoriana. Em outras partes do reino, o pôr dos sóis poderia significar o cessar, ou ao menos, reduzir, das atividades. Mas não em Venore. Ali, a noite só significava que mais e mais cidadãos dos quatro cantos de Tibia perambulavam pelas ruas, absortos em seus diversos afazeres, fossem estes de lazer ou negócios. Em outro momento, Jan teria se juntado aos inúmeros tipos que se dirigiam a alguma taverna, cassino, bordel, ou taverna que também era cassino e bordel. Mas não naquela vez.
Os dois se dirigiram a uma praça, mais ou menos no centro da cidade, onde se sentaram para esperar o tempo passar. Jan refletiu que havia conhecido Lenore numa noite como aquela. O céu estava limpo, e a cidade, apinhada. Ele olhou para frente, do outro lado de uma praça, e lá estava ela, olhando-o de volta. Naquele momento, ele havia imaginado que havia sido só um acaso. Agora, não tinha tanta certeza.
– Aquela vez em que nos encontramos pela primeira vez, foi totalmente sem querer? – Ele perguntou.
– O que quer dizer? – Retorquiu Lenore, com uma sobrancelha erguida.
– Não sei – Disse Jan, buscando organizar seus pensamentos e palavras. – Cada vez que penso em como as coisas se desenrolaram entre nós, menos parece que tudo aconteceu simplesmente por acaso.
Lenore riu.
– O que você está insinuando? Que eu havia andado te perseguindo?
– Não, não é isso – Jan respondeu depressa, balançando a cabeça. Então, praguejou. – É difícil pra mim articular os pensamentos, ainda mais com você me olhando com esses olhos.
– Estes olhos? – Lenore provocou-o, arregalando os olhos e chegando mais próximo do rosto de Jan.
– Sim – respondeu o rapaz, afastando-se com relutância. – Não sei… Eu não costumava acreditar em destino ou nada dessas baboseiras. Minha irmã Sara sempre foi fascinada por isso, mas eu não. Eu acreditava, e ainda acredito, em fazer minha própria sorte e meu próprio caminho. Meu pai nunca gostou muito dessa ideia – ele terminou, com um sorriso melancólico.
Lenore levou sua mão ao rosto de Jan, e tocou-o. Um toque de seda quente.
– E isso importa? – Ela perguntou. – Estamos aqui. Juntos. E hoje, podemos ajudar alguém que realmente necessita.
– É, verdade. O Aldo – Jan disse, lembrando-se dos - poucos - detalhes que Lenore havia lhe dado sobre o que fariam naquela noite. Ele refletiu que talvez confiasse demais em alguém que conhecia tão pouco, e há tão pouco tempo. Afinal, fora apenas no último mês que haviam se encontrado pela primeira vez.
– Você ainda não acredita em mim inteiramente, né? – Perguntou a moça.
– Como você lê meus pensamentos dessa forma? – Jan devolveu, carrancudo. – Juro que às vezes você parece um tipo de bruxa.
– Querido, eu
sou uma feiticeira – Lenore respondeu, sorrindo.
– Eu sei. Essa é uma das poucas coisas que sei sobre você, mas não é disso que eu estou falando. Feitiços, certo, todo mundo faz. Você mais parece uma leitora de mentes.
– Eu não preciso de poderes mágicos para desvendar alguém tão transparente – disse a moça, dessa vez rindo com vontade.
– Que seja – Jan retrucou, de cara fechada. – Me conte mais sobre Aldo.
Aldo era o nome de um sapateiro e tecelão que trabalhava em um grande armazém na área central da cidade, chamado Vista-se para o Sucesso*. Seu mestre, Hugo, era um dos inúmeros plebeus que haviam adquirido um status relativamente elevado sob o ambiente próspero e livre de Venore, através do comércio honesto. Embora durante anos os comerciantes e artesãos de Venore tenham gozado de relativa liberdade em relação ao resto do reino, parecia que agora as coisas estavam começando a mudar.
Lenore assentiu.
– Pois bem. Ele nos conta que os nobres estão começando a xeretar onde não deviam. Aumentaram a carga de impostos sobre todos os comerciantes, e estão cobrando semanalmente. O pobre Aldo já não tem o melhor dos humores. Agora então, está espumando. Ele também diz que seu mestre Hugo é covarde demais para fazer algo a respeito, então pediu nossa ajuda.
– Aumentar os impostos? – Indagou Jan com os olhos arregalados, como se tivesse ouvido o maior absurdo. – Esses patifes já não acham que têm poder e dinheiro o suficiente?
– E desde quando
suficiente faz parte do vocabulário deles? – Retrucou Lenore, séria. – O império thaiano nunca vai parar de tentar abraçar o mundo todo com seus tentáculos.
Jan assentiu.
– O reino não tinha nada de ter se intrometido em Darashia. O que aconteceu lá foi merecido. Agora, querem meter o bedelho aqui também?
– Provavelmente uma coisa é consequência da outra. O fracasso de Thais em dominar Darashia deve ter levado Tibianus a querer reforçar seu controle nas outras cidades. A começar pelo elo mais fraco, que no julgamento do rei, deve ser aqui.
– A cidade vai virar um antro de pomposos andando como se tivessem vassouras enfiadas no rabo – Jan disse, horrorizado. Uma vez, quando criança, visitara a capital Thais com seu pai e seu irmão Wil. Wil voltara da viagem maravilhado, e com sonhos de se tornar um cavaleiro thaiano. A mesma viagem havia dado a Jan a certeza de que nunca mais pisaria ali.
– Não se pudermos fazer algo a respeito – Lenore disse, rindo. – E já estamos fazendo.
– Como vocês podem competir em poder com Thais? – Perguntou Jan, cético.
– Em segredo. Com inteligência. Lentamente – Lenore respondeu. – Sem mais detalhes. Você ainda não é membro – ela terminou, sorrindo.
– Então, o que vamos fazer hoje, é uma parte dessa… resistência?
Lenore assentiu.
– Uma parte muito pequena.
– Como você pode deixar alguém de fora participar disso?
– Como disse, é uma parte muito pequena. Se uma célula do corpo deixar de funcionar, ou não funcionar adequadamente, não é um grande problema. Além do mais – completou Lenore, abrindo um grande e caloroso sorriso – eu confio em você.
O coração de Jan parou por um instante.
– E o que é, exatamente, que nós vamos fazer? – Ele perguntou rapidamente, a fim de esconder seu embaraço.
Lenore sorriu maliciosamente.
– Um pouco de ladroagem sincera e honesta.
– Só eu e você? – Perguntou Jan, esperançoso.
Lenore riu, e então, ergueu a mão de seu anel. Imediatamente, duas pessoas, que até então pareciam perfeitamente inconspícuas, pararam de perambular pela cidade e se aproximaram. Jan percebeu, estupefato, que não eram os dois homens nos quais haviam esbarrado mais cedo. Na verdade, um dos membros daquela nova dupla era uma mulher. E ambos ostentavam um anel de prata ordinário na mão direita, similar ao de Lenore.
– Exatamente quantos vocês são, afinal? – Jan questionou, sentindo-se traído. – Eu achei que estivéssemos sozinhos!
– Desculpe-me, querido – Lenore respondeu, rindo e corando. – Isso é inevitável quando você se torna membro dos libertadores. Nós estamos em todos os lugares.
* Aldo, Hugo, e sua loja Dress for Success realmente existem no jogo.