CAPÍTULO 2 - APENAS UMA SELEÇÃO NATURAL?
Svan caminhou vagarosamente pela cidade, nos minutos seguintes. Havia se esquecido de entregar o relatório à Rainha sobre o foragido prisioneiro. Andava tão destraído que nem sequer percebeu o vulto que se mexia numa sombra próxima.
O Cavaleiro era alto e robusto. Forte, como nenhum dos soldados do exército de Thais ou Carlin. O capacete real mal deixava aparecer seu longo cabelo castanho, e a barba por fazer dava a impressão de que, não fosse aquilo em seu peito um distintivo real, Svan não passaria de um simples cidadão vagando por Carlin em busca de alimento no lixo, vulgo mendigo. A armadura de escamas de dragões já fazia muito peso sobre o seu corpo, assim como a calça com filamentos de ouro. O escudo, montado a partir de um pentagrama, ia sendo arrastado pelo cavaleiro pelas ruas. Melchior estava morto, e aquilo chegou a Svan com um baque, como se fosse o pai a deixá-lo. O velho mago tinha de Svan o maior respeito possível, desde que quando o cavaleiro precisou, foi acolhido pelo mago até mesmo à sua casa, quando chegou ao continente. Aquele pseudo-pai fazia falta, e para Svan o mundo já parecia chorar.
- Melchior... por que você me deixou, seu miserável? - era Svan, falando sozinho, enquanto entrava na rua principal que ligava a loja mágica ao depósito.
Caminhou por mais alguns metros e resolveu que deixaria o relatório para o dia seguinte. Não havia paz de espírito para que pensasse em trabalhar, àquela altura. E Svan tinha certeza de que a Rainha entenderia.
- Svan, Svan! Espere!
- Oh, Liana. Me perdoe, eu não a cumprimentei quando passei em frente ao depósito. Como você está?
- Eu não estou bem, Svan. Eu não sei mais o que eu vou fazer, e para mim essa feira soa como ironia!
- Ah, Liana. Eu sinto muito, mesmo. Estou arrasado, assim como você. Mas eu acho que deixarei de trabalhar, pelo menos por hoje. Essa armadura nunca esteve tão pesada em toda a minha vida, por Crunor!
- Tudo bem, Svan. Conversamos mais tarde.
Melchior era o pai de Liana. Ela era nada além de uma cidadã, pacífica, que nunca prezou a caça ou as guerras. Era loira, grandes e lindos olhos esverdeados, contrastando com o vestido amarelo que sempre usava, como uniforme, devido ao cargo de vendedora no depósito. Seios fartos, curvas perfeitamente definidas, era uma das mulheres mais cobiçadas pelos cavaleiros e cavalheiros na cidade. Quando chegou ao continente, foi para a casa de seu pai, Melchior, e lá foi treinada para ser exatamente o que era naquele momento: uma civil vendedora, nada mais que isso. Para Liana, a vida dela não se basearia em nada mais, apenas cuidar de Melchior até o fim de sua vida. Mas agora estava sem direção. O fim da vida de Melchior já havia chegado e passado, e não sabia mais como seria sua vida a partir de então. Sabia, sim, algumas magias, porém insuficientes, e o tempo que tinha não era suficiente para entrar numa academia de magia, àquela altura de sua vida. Sentou-se na cadeira de seu balcão, escondeu o rosto entre os braços e chorou, desesperadamente, sem se preocupar com seus clientes.
* * *
- Senhor Incubo, sou eu.
- Entre, desgraçado. O que é que tu quer por aqui, me diz?
- Nada, senhor. Apenas informá-lo de que o trabalho que me foi receitado, já foi cumprido. Melchior está morto.
O demônio deixou grunhir então uma risada fantasmagórica, assustando o misterioso homem que ali estava.
- Muito bem! Tu matou o Melchior, como prometeu. Minha protegida se casará contigo, seu verme, como prometeu. E eu te recompensarei, como prometi, né? Que coisa bunita, num acha? Somos todos homens de palavra, com exceção de minha protegida, que de fato é uma mulher, correto peão?
- Sim, senhor - o homem deixou sair um sorriso amarelado, pensando "Você também não é humano, demônio miserável". A presença do Incubo o causava medo, apesar de cumprir sempre o que lhe era ordenado.
O Incubo era um demônio ressucitado pelo próprio homem que ali diante dele estava. Depois dos últimos desaforos por parte de Melchior, aquela misteriosa figura resolveu ressucitar o que foi por Melchior trancado: um demônio que, com a ajuda indireta da humanidade, teria totais condições de em dez segundos destruir completamente o continente. O Incubo vivia nas profundezas de uma gruta, muito bem escondida no Porto Norte, alimentando-se de cada mau sentimento, de cada mágoa, de cada tristeza. Quando foi pelo homem ressucitado, o Incubo era um bebê. Mas aquela criatura já tomava as proporções de um homem normal, em questão de sete dias. Se assemelhava a um homem, era magro, alto, e tinha dois braços, duas mãos, com seis dedos em cada uma delas. Os dois olhos amarelos eram letais, assim como o terceiro olho, localizado na testa, que o dava a possibilidade de também enxergar o que acontecia em suas costas. O modo de sobreviver do Incubo era simples: o misterioso homem o trazia uma alma, e ele a devorava com a ferocidade de um real demônio. E a de Melchior era a ser alimentada naquele momento. Apesar da vasta inteligência daquela besta, ainda não dominava bem a língua dos humanos.
- Muito obrigado, hôme. Você vai sê recompensado, se preocupa com isso não. Me deixa quieto agora, que eu quero dormí.
- Como quiser, senhor.
O homem se retirou, e o Incubo bateu violentamente com o corpo no chão e pôs-se a dormir. Para o homem, isso já não era mais tão assustador, não era a primeira vez que vira.
* * *
Não eram nem duas da madrugada, quando Svan levantou-se, com dificuldades para dormir. O barulho e a algazarra de Carlin, até mesmo nas madrugadas, nunca o incomodou, mas naquela noite o barulho nunca tinha sido tão intenso, mesmo que em igualdade ao de outros dias. A lembrança do corpo de Melchior sendo carregado pelas mulheres-soldados da Armada o deixava completamente deprimido, e sem sono. Svan não tinha mais aquele companheiro que com ele caçava, nas horas vagas, e com ele se divertia, na hora de descerem ao bueiro vendo alguns inexperientes cavaleiros com dificuldades para se livrarem das pragas. Melchior era membro honorário da Academia de Carlin, com cadeira vitalícia. O termo "vitalícia", enfim, tinha o seu motivo. Svan debruçou-se sobre a janela de sua casa, e ficou observando a cidade por algum tempo. Alguns dos cavaleiros e magos que já eram antigos ao grande continente travavam bonitas batalhas mágicas fictícias na varanda do depósito, logo acima do banco central da cidade. Um deles, de costa, chamou a atenção de Svan: estatura média, poucos músculos, mas o poder mágico que detinha aquele feiticeiro não era páreo para nenhum dos magos envolvidos na disputa. A cada animal invocado pelo mago, um feixe de luz roxo vinha dos céus até a localização daquele misterioso homem. Aquela armadura brilhava como a que Melchior sempre usou, por baixo do sobretudo azul.
Svan chorou. Como uma criança. Entre soluços, o cavaleiro resolveu que iria até a varanda, para observar mais de perto aquele mago o qual o chamara a atenção. Vestido e recomposto, depois de um banho, caminhou lentamente pela rua que ligava a entrada oeste diretamente ao depósito. Entrou, fez um sinal de cabeça a Liana, e subiu as escadas. Em poucos minutos, estava ocupando uma das urnas, observando o feiticeiro. Sentiu um aperto no coração e sentiu-se também alarmado, quando reconheceu no lado esquerdo do peito do mago as iniciais
AIT,
Armada Inversa em Thais. Pensou rapidamente, e resolveu ir até a varanda, entrando também na disputa. Vencia com tranquilidade os fraquíssimos monstros que eram pelo soldado thaisiano invocados, até que o mago resolveu sair da disputa e pôs-se a conversar com o cavaleiro.
- Svan, Svan. Boa noite, meu velho. Noite agradável, não é?
- O que faz por aqui, Hardek?
- Hoje estou feliz, como se estivesse em um arco-íris colorido, plantando margaridas e colhendo felicidade. - dizia o vice-comandante do exército de Thais, em meio a risos.
- Creio que isso não responda a minha pergunta, Hardek. O que você faz em Carlin? A Rainha Eloise determinou que é terminantemente proibida a presença de soldados de outra armada em Carlin. Você conhece as regras. Espero um propósito bem convincente para esse tipo de comportamento, Capitão.
- Nada, nada, Svan. Nada faço aqui. Apenas uma seleção natural.
- Apenas uma seleção natural?
* * *
Hardek saiu correndo do depósito em meio a magias. Svan não o seguiu. Hardek conseguiu o que queria: desestabilizou e deixou na cabeça de Svan uma dúvida, sobre o que realmente desejava em Carlin. Thais e Carlin nunca cerraram seus exércitos, Eloise sempre prezou o fato de ser independente totalmente das províncias de Tibianus III, e não admitia que os soldados de qualquer exército ou sub-exército provenientes de Thais ou Venore se encontrassem em Carlin ou nas proximidades. Svan observou o mago sair da cidade, sem nenhuma reação. O sinal de alerta do capitão da Armada de Eloise estava aceso, e ele tinha a quase certeza de que Hardek estava envolvido no assassinato de Melchior. Lembrava-se muito bem da disputa entre os dois, na última ocasião: Hardek teve de ser tratado por Alia, no Primeiro Pronto Socorro em Carlin, para evitar sua morte. Tibianus III não sabia sobre o ocorrido, e Hardek tinha plena consciência de que caso soubesse, seria condenado à morte, o princípio de "cumprir o que deseja para si próprio" era condenado pelo Rei Tibianus III.
Svan saiu da varanda do depósito e desceu o bueiro. O ambiente era hostil, e o cheiro não era nada bom. As paredes emboloradas e o cheiro de bolor davam ao Capitão um certo enjôo, ainda mais com os insetos e outras criaturas de pequeno porte que insistiam em o atacar. Algumas pontes de madeira, que estavam sobre a água para mais facilidade no acesso e na caminhada por dentro do bueiro, já estavam podres, e desgastadas pelo tempo. Felizmente, Svan conseguia trafegar sem as usar. Caminhou sentido sul, após descer, e entrou numa viela à sua direita. Aquele era chamado o
Quartel General da Resistência. O QGR foi criado pelos homens que não aceitavam o controle total das mulheres em Carlin, antes de que Svan e Eloise entrassem num acordo igualitário. Era ali que Svan e Melchior se reuniam, quando precisavam falar de coisas importantes que não competiam ao exército, ou para simplesmente beber uma cerva. Eram dois os atendentes: Josh Bonecrusher, um dos soldados da Nova Armada, e Mercy, o primeiro espião da Resistência. Josh ainda era novo, tinha por volta de vinte anos, e era um dos soldados da menor armada da cidade. Magro, estatura média, mas tinha músculos que faziam em jovens de sua idade certa inveja. Andava sempre com sua espada embainhada na cintura, e não se lembra de uma situação em que tivera de a usar. Cabelos longos, porém mais curtos que os de Svan, avermelhados, repartidos ao meio. Josh era um dos soldados mais considerados por Svan, que já pensava em o subir de profissão.
Quanto a Mercy, tinha quarenta anos exatos. Quando a Resistência foi criada, tinha por volta dos dezessete. Se expôs em grande perigo, dentro das cidades mais nobres como Edron e Cormaya, em busca de informações que o fizessem ter algo a usar contra a Rainha, no embate pela igualdade. Já no tempo em que viviam naquele instante, Mercy era um dos homens de confiança da Rainha Eloise.
- Capitão! Seja bem vindo à Taverna da Resistência novamente! Quanto tempo!
- Por favor, Senhor Mercy. Pelo menos por esta noite, não gostaria de ser chamado de Capitão. Já sabe sobre Melchior?
- Sim, Svan. Eu e Josh. Todos nós sabemos, o continente já sabe.
- Que bom que sabe. Tenho coisas a decidir junto a ambos, meus homens de confiança - dizia Svan, pegando um copo de cerveja -. Hardek esteve aqui hoje, dizendo que estava fazendo uma "seleção natural". Creio que esteja envolvido na morte de Melchior. Mas não sei o que quis dizer com "seleção natural".
Mercy, em silêncio, tentava fazer-se não perceber entre a conversa, que ficou mais desviada entre Josh e Svan. Conversaram por mais ou menos uma hora, até que Svan resolveu levantar-se. Josh estava cansado e parecia ter sono, o dia de trabalho foi dobrado para que os preparativos para a Feira de Décadas, que naquele ano seria em Carlin, corressem na maior perfeição possível. E essa sensibilidade, Svan sempre teve: perceber qual dos seus soldados precisava de descanso. Ordenou a Josh para que deixasse o balcão da Resistência e outro soldado, que alguns anos atrás tinha o mesmo propósito, tomar seu posto. Mercy deslocou-se sorrateiramente para a saída, mas não foi percebido. Svan só sentiu a falta do ex-espião, quando saiu da Taverna. Mercy entrou no barco para Thais.