Aeee! Finalmente tive tempo para ler a história de Batráquio! Caralho, fiquei pensando porquê não tinha lido antes, como Iridium disse tu escreve extremamente bem realmente, eu tô amando! Tá sendo bem legal acompanhar e entender um pouco mais sobre o Bonelord!
Continuaaaa, não pare e mate nossas curiosidades!
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Ao observar a grandiosa torre incandescente, o homem de verde não podia deixar de sentir um profundo incômodo em suas estranhas. É quase como da última vez que eu estive aqui...
"Ó... ó... estão roubando a filha de minhas estranhas. Ó".
Haha, essa referência é mais nebulosa.
Que fofo que o nome dele é Eliseu. Gosto. Melhor que Miroel... não, pera. Ei!
Gosto também de quem escreve "àquele". Acho ortograficamente elegante, não sei dizer por quê, haha.
Curioso a respeito do túmulo. Tenho palpites, mas enfim, vou esperar.
"Madamemente" vou continuar acompanhando as desventuras do não-humano de vestes verde-garrafa. Obrigado pela leitura, menino Manteiga.
Obrigado a todos que leram e comentaram até agora! É um prazer tê-los aqui. Como de praxe, primeiro os comentários:
Spoiler: Comentários
Postado originalmente por Iridium
Saudações!
Eeeeeee Batráquio HAEHUHUHAUEHUEHUAEHU
Coitado, falhou miseravelmente HAUEHAUAUEHUEHUEH
Cara, adorei o capítulo. Você escreve MARAVILHOSAMENTE bem, sério mesmo. É denso, é imersivo, é tenso... É excelente. Continue assim.
P.S.: Finalmente o nome 1208 faz um cameo aí xD ansiosa pra ver o restante.
P.S.2: olosco a bruxa foi obliterada AHUEHUEHUAHUH
Abraço,
Iridium.
CÊS PAREM COM ESSA MANIA DE VER A BRUXA EM TUDO JEOVÁ NEM TODO MUNDO É ELA NÃO HEIN *respira fundo* Muito muito obrigado pelas tuas palavras; estou quase acreditando nelas x) Espero que este capítulo aqui também te agrade. E o 1208 ainda fará muitos cameos, mas só cameos, porque né..............
Postado originalmente por ninakunta
Aeee! Finalmente tive tempo para ler a história de Batráquio! Caralho, fiquei pensando porquê não tinha lido antes, como Iridium disse tu escreve extremamente bem realmente, eu tô amando! Tá sendo bem legal acompanhar e entender um pouco mais sobre o Bonelord!
Continuaaaa, não pare e mate nossas curiosidades!
Eeei colega, que bom te ver aqui <3 Don't worry, não vou abandonar pelo menos não agora Muito tenqueiu pelo comentário <33 Espero que ao final dessa viagem toda vocês entendam melhor (e gostem mais n) o nosso querido miguxo dos cinco olhinhos.
Postado originalmente por Gillex Koehan
"Ó... ó... estão roubando a filha de minhas estranhas. Ó".
Haha, essa referência é mais nebulosa.
Que fofo que o nome dele é Eliseu. Gosto. Melhor que Miroel... não, pera. Ei!
Gosto também de quem escreve "àquele". Acho ortograficamente elegante, não sei dizer por quê, haha.
Curioso a respeito do túmulo. Tenho palpites, mas enfim, vou esperar.
"Madamemente" vou continuar acompanhando as desventuras do não-humano de vestes verde-garrafa. Obrigado pela leitura, menino Manteiga.
Vish, valeu por apontar essa entranheza aí, vou arrumar lá. E eu adoraria saber os teus palpites RS. Obrigado pelas palavras, que bom que está gostando. Espero que continue a aparecer por aqui e jogar referências obscuras e aleatórias no post x)
Bom, antes do capítulo terceiro propriamente dito, um leve disclaimer: eu peço infinitos perdões pelo tamanho dele. Sim, ficou grande. Sim, ficou maçante. Não creio que haverá outro tão grande nem quero que tenha sem or quase morri pra escrever. Mas é que, dentre todos os, este é o que contém aquele que, na minha singela opinião, é o flashback mais importante e determinante para a construção do personagem como ele foi e como ele (e, por que não, como ele será quando isso tudo terminar). Quis apresentá-lo da melhor e mais completa forma possível, e espero não ter pecado pelo excesso.
Spoiler: Música do capítulo
*segurando um risinho de travessura* Esse capítulo baseia-se em uma música chamada "Icarus". Isso certamente explica algumas coisas... Ah, vocês vão ver.
And this is how it feels to take a fall
Icarus is flying towards an early grave
III
Portões do Inferno!
Área restrita!
Mantenha a porta fechada, a menos que esteja jogando algum criminoso aqui dentro!
Batráquio leu aquelas palavras uma porção de vezes seguidas, sentindo seu estômago formigar cada vez que seus olhos passavam pelos dizeres “Portões do Inferno”. Diante dele havia uma simples porta de madeira limitada em ambos os lados por paredes de tijolos encravadas no meio das paredes daquela caverna, alguns andares abaixo da superfície de Ab’Dendriel. Ao lado da porta, em um quadro negro, aquele aviso estava escrito com letras garrafais já um tanto apagas, indicando que ele estivera afixado ali por muito, muito tempo. Entretanto, qualquer um que passasse por aquele local e não se detivesse em ler o quadrinho jamais suspeitaria do que jazia escondido atrás daquela porta, muito, muito distante do local onde ele e Eliseu agora estavam.
Eu já estou quase em casa, ele se pegou pensando enquanto vagarosamente se aproximava da porta. Era verdade que a distância entre aquela porta e a grandiosa Necrópole erguida pelos Bonelords no coração da terra era quase imensurável, mas, de certa, ele podia sentir a pútrida atmosfera da cidade dos mortos enquanto admirava a irregularidade das ripas que constituíam aquele tosco portal. Basta girar a maçaneta, empurrar a porta e começar minha longa jornada de volta para casa. A ideia de efetivamente começar sua jornada de volta gelava-lhe as vísceras, provocando um desconforto no ventre que ele há muito não sentia. É uma sensação parecida com a que eu tinha quando era jovem e 1593 me mandava para a superfície, ele lembrou-se, abrindo um leve sorriso ao pensar na ironia da situação. Quando ele morava na Necrópole, tudo que ele mais queria era ir embora de lá e ganhar o mundo; agora, no entanto, tudo que ele mais queria e precisava era colocar seus pés novamente na areia preta e encardida que contaminava o chão da cidade.
Respirando fundo, Batráquio levou sua mão descoberta à maçaneta enferrujada e a girou, pressionando levemente o corpo contra a porta para empurrá-la para dentro. A maçaneta rangeu alto ao ser movida, e as ripas de madeira estralaram algumas vezes. Entretanto, a porta não se moveu.
Às suas costas, Eliseu soltou um zurrinho de impaciência.
- Paciência, Eliseu. – Ele disse baixinho enquanto analisava o portal, confuso. Por que esta porcaria não abre? – Eu, na verdade, nunca acessei a Necrópole por este caminho... Isto aqui é como se fosse uma entrada para visitantes, suponho eu. Eu não saberia realmente. Veja bem, a minha raça tem outros meios muitíssimo mais simples e rápidos para entrar e sair deste lugar. Mas como eu não acho que seja capaz de executá-los nesta condição, temo que o caminho longo seja nossa melhor saída. Digo, entrada.
Batráquio tentou forçar a abertura da porta algumas vezes, mas a mesma permaneceu emperrada no mesmo local, produzindo apenas ruídos altos quando era empurrada. Que ela está trancada eu já percebi. Me pergunto se ela é protegida por algum tipo de feitiço avançado... Ele então passou a tatear pela superfície da madeira com a mão descoberta, enquanto fechava os olhos e se concentrava, tentando detectar algum resquício de magia que denunciasse qualquer feitiço de proteção que pudesse ter sido usado naquela porta. Magia pode ser facilmente detectada e rastreada por aqueles que sabem como fazer, dissera-lhe certa vez, naquela mesmíssima cidade, a pessoa que ele mais profundamente odiava naquele mundo. Quem sabe algum dia você aprenda a fazer isso. Isto é, considerando que eu não te mate aqui e agora!
O feiticeiro subitamente abriu seus olhos e afastou-se da porta com um pulo, sobressaltando seu burrinho, que, aparentemente muito entediado com aquela função toda, estivera farejando o ar em busca de algo para comer.
- Não está protegida. – Ele disse enquanto abria um largo sorriso. A ansiedade voltava a crescer em seu peito, tais quais as batidas do seu coração. – Ah, a lendária presunção dos elfos! Vivem em um mundo de nobreza excessiva! Jamais considerariam que alguém tentaria burlar as regras e colocar essa porcaria de porta abaixo!
Batráquio então estalou as juntas dos dedos da mão direita e lentamente retirou a luva que cobria a outra, revelando a pele escura e com aparência de queimada que cobria toda a sua superfície, consequência da terrível tentaculite que, um dia, lhe atacara o segundo tentáculo esquerdo.
- Para trás, Eliseu. – Ele disse enquanto estendia as palmas de ambas as mãos na direção da porta e as sentia formigar. – Eu vou colocar essa porcaria abaixo e então...
- EI, VOCÊ! – Rugiu uma voz desconhecida à sua direita, forçando-o a interromper seu feitiço e a virar o rosto na direção de onde viera a voz. Um elfo alto e esguio vinha correndo apressadamente pela caverna, carregando um grande arco dourado diante do corpo, no qual ele já encaixara não uma, mas duas flechas longas e pontiagudas. – Se afaste desta porta imediatamente!
O elfo parou apenas a alguns metros dele e de Eliseu, e então estendeu o arco diante do seu corpo, alinhando-o com o rosto e apontando as duas flechas que preparara diretamente para seu rosto. Sua expressão era severa, e Batráquio teve a leve impressão de que comprar briga com aquele elfo em particular era uma idéia pouquíssimo inteligente. Lentamente, ele baixou as mãos, sentindo a energia mágica que acumulara nas mãos se esvair enquanto ele calculava os riscos de iniciar um duelo com o arqueiro.
- Você não sabe ler? O acesso a este lugar é restrito! Restrito! – Repetiu o elfo com veemência. – Significa que você não pode passar de jeito nenhum!
- Eu sei o que significa. – Ele debochou enquanto imaginava se teria tempo de desviar das flechas antes de atacar. – E você, quem é mesmo?
- Eu sou Elathriel, o delegado desta cidade e responsável pela vigia dos Portões do Inferno. – O elfo disse teatralmente enquanto estufava o peito, aparentemente muito satisfeito em ocupar aquele cargo. Quando ele respondeu, acabou perdendo a mira das flechas por uma fração de segundo, quase impelindo o outro homem para o ataque. Quase. – E você, forasteiro, quem é e o que pretende com esta porta?
O feiticeiro cruzou os braços e virou o corpo completamente para melhor encarar o delegado. É preciso calcular cuidadosamente os riscos dessa empreitada. Não preciso chamar mais atenção do que já chamei. Ele pensou em Eroth e revirou os olhos.
- Quem eu sou não te diz respeito e o que eu pretendo me parece bastante óbvio, não? Eu tenciono atravessar essa porta e ir até o Inferno.
Elathriel pareceu levemente desconcertado ao ouvir aquilo.
- Você só pode ser louco! Ninguém se atreve a acessar este lugar, é insanidade!
- Bom, você mesmo acabou de dizer que eu devo ser louco, então...
- Além do mais, você precisaria de uma chave para atravessar o portal. – Disse o delegado, aparentemente ignorando o fato de que ele acabara de flagrar Batráquio preparando um ataque para obliterar a barreira e eliminar a necessidade da chave. – E apenas eu tenho acesso a ela.
- Ora essa, mas vejam só! Que interessante! – Exclamou Batráquio. Talvez eu não precisa causar uma comoção desnecessária, afinal... O Bonelord decidiu então aceitar aquela chance de o destino estava lhe dando de resolver as coisas de uma forma mais limpa. Enquanto isso, Elathriel encarava-o com uma expressão estranha no rosto, como se realmente achasse que ele era um lunático qualquer. Logo atrás dele, Eliseu soltou um grunhido triste, como se pedisse que seu mestre parasse de arranjar encrenca e o tirasse logo dali. – Ah, não se preocupe, Eliseu. Eu e o Sr. Elathriel vamos apenas conversar...
Ele então abriu um largo sorriso enquanto observava o delegado lentamente processar o que ele acabara de dizer e dar uns dois passinhos para trás, preparado para o ataque.
***
- 1208! – Ele gritou a com toda sua força quando o estrondoso rugido vindo do andar debaixo sacudiu a torre inteira. Não fazia mais sentido tentar comunicar-se através de 469; 1208 não podia vê-lo dali, e, sendo a linguagem muda que era, ele sequer poderia ouvi-lo. Outro rugido ensurdecedor seguiu-se ao primeiro, indicando que o dragão retornada de seu voo matinal. Isso não estava dentro do planejado! Ele não deveria ter voltado tão cedo! Um baque surdo foi ouvido no andar debaixo, e novamente a torre inteira sacudiu. Poeira e restos de madeira velha começaram a cair do teto. – Karina, mantenha-os ocupados! Eu vou ajudar o 1208!
O esqueleto reanimado do que um dia fora uma guerreira elfa virou sua caveira avermelhada para seu mestre, suas órbitas vazias parecendo emanar uma energia doentia. Ela assentiu com um leve movimento de seu crânio, como se tivesse efetivamente entendido a ordem verbal de seu mestre, e continuou a socar repetidas vezes o que era agora apenas um montinho sangrento e retorcido – no passado, um minotauro.
O desespero tomou conta de 4669 enquanto ele velozmente atravessava o recinto, flutuando sobre um amontoado de móveis destruídos e alguns cadáveres de serpentes. Enquanto passava, disparou distraidamente um míssil de energia no orc que as conjurara, sem realmente parar para ver se havia atingido alguma coisa. Sua mente estava focada em uma coisa apenas: resgatar 1208 das furiosas garras do dragão que normalmente habitava o andar debaixo daquela torre. Eles haviam passado meses estudando o local e os hábitos da fera, e finalmente haviam conseguido uma brecha durante uma das saídas do réptil alado. Eu não devia tê-lo deixado vigiando lá embaixo! Eu deveria saber que isso não tinha como dar certo!
- Mestre! Ajudar eu! – Gritou a juvenil voz de 1208 em algum lugar lá embaixo, em uma relativamente eficaz tentativa de reproduzir a língua dos humanos, a qual seu mestre incompletamente tentara lhe ensinar. Em seguida, um novo estrondo, um grito de dor agudo e um inesperado jato de fogo que correu escada acima, obrigando 4669 a desviar em cima da hora para evitar as chamas trepidantes.
- 1208! – Ele voltou a gritar, sabendo que seu aprendiz não duraria muito contra uma fera daquele poder. Eu não deveria tê-lo trazido comigo. Toda essa operação foi um gravíssimo erro!
Um míssil de energia foi disparado contra ele, errando por alguns centímetros e atingindo a parede de tijolos oposta, indicando que o xamã sobrevivera ao seu ataque e estava pronto para revidar com tudo. Entretanto, 4669 sequer teve tempo para se preocupar com a reação do orc: um baque ocorrido segundos mais tarde indicava que Karina enfim se cansara de mutilar os restos daquele minotauro e agora voltava-se para uma nova vítima. Um novo jato de fogo foi disparado lá embaixo, novamente errando o Bonelord no andar de cima por muito pouco.
- Merda! Como é mesmo a porcaria daquele feitiço? – Ele lera em algum lugar que os humanos haviam inventado alguma forma de feitiçaria que poderia protegê-los de ataques recebidos com base unicamente em sua reserva de magia. Lá embaixo, 1208 gritou novamente. O dragão respondeu com um novo rugido bestial, seguido do inconfundível som de uma fera de grandes proporções correndo por um espaço muito limitado. Ali em cima, Karina socava o xamã com uma fúria desmedida. Talvez 11793 tivesse razão, 4669 se viu pensando em um tênue momento de insanidade. Talvez eu realmente seja jovem demais para ter um aprendiz. Ele fora, afinal, o mais jovem Bonelord em décadas a receber um aprendiz.
Subitamente, ele lembrou-se das palavras.
- Utamo vita! – Ele exclamou, sentindo como se um balde de gelo fosse derramado sobre seu corpo. Em seguida, o Bonelord jogou-se escadaria abaixo, mergulhando no mar de chamas criado pelo dragão e tentando desesperadamente encontrar seu aprendiz no meio delas antes que fosse tarde demais.
Subitamente, 4669 abriu seus olhos – agora, apenas dois – e sentou-se apressadamente, ofegando como se tivesse acabado de cruzar a Necrópole em uma maratona. O suor frio escorria pela sua testa, e seu coração batia em disparada, amedrontado. Fazia muito tempo que ele não sonhava com o terrível acontecimento daquela triste manhã, e mais tempo ainda que ele havia ocorrido. Por que então agora? Enquanto sua mente clareava e sua respiração lentamente voltava ao normal, 4669 foi acostumando os olhos ao cenário que o cercava.
Ele estava sentado em uma fofa cama de solteiro, coberto até a cintura por um confortável lençol azul, trajando apenas suas calças. A cama ficava no cantinho de um pequeníssimo e abafado cômodo que parecia ter várias funções: ao lado dela ficava um pequeno criado-mudo simples de madeira, sobre o qual brilhava uma lâmpada vermelha que funcionava a óleo; no canto adjacente havia uma mesa maior, sobre a qual havia uma grande bandeja de prata coberta por uma grande diversidade de frutas, muitas desconhecidas para ele; do outro lado do cômodo havia uma grande estante de bambu muito torta, cujas prateleiras estavam abarrotadas de livros e outros apetrechos diversos; sobre a estante havia um pote de barro que continha uma planta muito ramosa, cujos numerosos caules folhosos desciam serpenteando pelas prateleiras; ao lado da estante, no canto oposto ao da cama, havia uma porta de madeira fechada, e uma segunda porta existia na parede próxima à mesa. A luminosidade no vão entre a mesma e o assoalho de madeira indicava que aquela era a porta de entrada, e ao seu lado havia um cabide toscamente entalhado em madeira, no qual pendiam sua capa de viagem preta e sua túnica branca de linho. As paredes da casa e o canto dos pássaros que ele podia ouvir lhe indicavam que ele ainda estava em Ab’Dendriel.
Como eu vim parar aqui? Pensou 4669 enquanto mexia-se desconfortavelmente pela cama. A última coisa que ele se lembrava era de ter sido descoberto enquanto espionava os Cenath... Ao tentar apoiar-se para se erguer do colchão, 4669 sentiu uma pontada em seu braço esquerdo e voltou a desabar sobre a cama, produzindo um baque fofo. Soltando um gemido alto de dor, o Bonelord transformado em humano voltou seus olhos para o braço, enfim percebendo que o mesmo estava envolvido por uma espécie de longa faixa branca, uma gaze semelhante àquela usada para mumificar os mortos em algumas culturas. Sua visão de repente ficou turva e ele sentiu como se o quarto estivesse rodando, e logo sua boca foi tomada por um incômodo gosto de vômito. O que está acontecendo...?
Um som abafado ecoou pelo pequeno cômodo. Com dificuldade, 4669 desviou seu olhar do braço mumificado para a porta ao lado da estante, a qual havia sido aberta. Parado no vão havia um humano alto, de pele morena, cabelos pretos curtos e olhos castanhos escuros, observando-o com um misto de surpresa e alívio no rosto.
- Então você finalmente acordou. Eu meio que fiquei preocupado, sabe. – Disse o sujeito. Sua voz era grave e forte, o que combinava com seu porte físico, com as feições no seu rosto e com a imagem que ele transmitia ao ficar parado no portal com seus braços cruzados e os olhos escuros postados em seu hóspede. – Você ficou desacordado por um tempão. Achei que talvez não fosse se recuperar.
- Quem é você? – As palavras saíram da boca humana de 4669 sem que ele realmente as tivesse formulado em sua cabeça, e em um tom imensamente mais frágil e assustado do que ele jamais teria permitido. Pela primeira vez em muitos anos, ele estava trancado no mesmo recinto que um humano, e, desta vez, em posição de inferioridade, ferido e com um grande manto de incertezas povoando cada lacuna das suas memórias. Nem mesmo toda sua grande sede de conhecimento por aquela raça poderia afastar os ensinamentos mais fundamentais que ele recebera em seu treinamento ou as terríveis memórias que ele tinha de todos os humanos que conhecera anteriormente, tampouco poderia conter seu instinto de eliminar aquela possível ameaça antes que fosse tarde demais.
- Hã... O dono da casa e o cara que te recolheu do chão da floresta. – Disse o estranho enquanto erguia uma das sobrancelhas, como se sua resposta fosse evidente. – E então? Como vai o braço? Deixa eu dar uma olhadinha...
Ao dizer isto, o humano fez menção de se aproximar de seu hóspede ferido. O inquilino, entretanto, não reagiu como ele esperava.
- Não se aproxime! – Rugiu 4669, tomado de uma súbita sensação de pavor mesclada com um instinto repentino de auto-proteção. Em um movimento não planejado, o feiticeiro tentou, mais uma vez, apoiar-se sobre o braço esquerdo para puxar o corpo para longe do estranho, como se fosse comprimi-lo contra o canto do cômodo e assim esperasse que ele ali desaparecesse. Entretanto, ao fazê-lo, ele novamente sentiu uma fisgada insuportável de dor, a qual o fez capotar novamente sobre o colchão, arquear as costas e soltar um gemido alto de aflição. Ao ver o estado de seu hóspede, o humano pareceu acelerar o passo e estender os braços na direção dele, como se tencionasse ampará-lo, ao que o visitante respondeu com um chute no ar desferido pela perna direta, o qual arremessou o lençol ao chão. Tomado pela surpresa do gesto, o outro homem jogou o corpo para trás a tempo de evitar o pé descalço de 4669, mas, ao fazê-lo, capotou no chão.
Quando percebeu o que havia acontecido, 4669 decidiu agir rápido, e, mesmo tomado de agonia e ofegando em excesso, reuniu o máximo de energia que pôde e curvou o corpo para frente, ficando de joelhos sobre o colchão e sentindo o braço esquerdo inteiro latejar insuportavelmente. Enquanto seu anfitrião, confuso, tentava se erguer do chão e assimilar o que acabara de acontecer, ele estendeu a palma da mão sadia em sua direção.
- Exori flam! – Pronunciou 4669, tomado de fúria. Para sua surpresa e desapontamento, entretanto, o máximo que ele sentiu foi um leve formigamento na mão direita, seguido de uma forte tontura que o consumiu e o derrubou novamente sobre a cama, quase fazendo-o bater com o cocuruto da cabeça na escora de madeira.
- MAS QUE MERDA FOI ESSA? – Vociferou o humano quando finalmente conseguiu se recuperar e se pôr de pé. Ele estava ofegante e imundo, resultado da provável falta de faxina nos últimas dias do assoalho empoeirado da sua residência. – ISSO NÃO FOI LEGAL! QUAL É A PORRA DO SEU PROBLEMA?
- O que... Você... Fez... Comigo...? – 4669 conseguiu dizer enquanto tentava recuperar o ar dos pulmões e enquanto ainda se contorcia de dor sobre o colchão. Seu torso estava empapado de suor, e ele sentia que seu braço esquerdo estava duro como pedra. Por que meu feitiço não funcionou? ele pensava enquanto se remexia inquietantemente. Ele falhara. Estava exposto. Além de três olhos e de um cérebro avantajado, ele também acabara de perder sua magia. Ele enfim baixara a guarda diante de um humano. Estava a mercê dele agora.
- Eu já te falei. Você ficou desmaiado por muito tempo, nem comeu nada. Não é de se espantar que não consiga executar um feitiço. Embora seja de se admirar que você tenha conseguido se mexer tanto, apesar de estar tão fraco. – Disse o outro com um severo quê de impaciência na voz. Ele parecia dividido entre a vontade de se aproximar do seu hóspede moribundo e a de agarrá-lo pelos tornozelos e arremessá-lo do alto daquela árvore. Meio contrariado, ele acabou optando pela primeira opção. Mamãe ficaria muito desapontada se eu deixasse esse imbecil para morrer, mesmo que ele mereça, ele pensou com amargura enquanto se aproximava relutantemente do leito do enfermo. – Deixa eu ver esse braço de uma vez.
Não era um pedido. Entretanto, ainda tomado pela desconfiança, 4669 moveu-se de modo a ficar de costas para seu anfitrião, acabando por rolar sobre o braço esquerdo e, pela terceira vez naquele curto intervalo de tempo, desencadear uma intensa reação de dor que quase o fez quase colocar as entranhas para fora. Ele então fechou os olhos com força e começou a ranger os dentes, como se tentasse obrigar o braço a parar de doer, evidentemente sem sucesso algum. Em meio ao seu sofrimento, ele pensou ter ouvido o outro soltar um muxoxo de impaciência e começar a dar voltas e voltas pelo espaço livre no centro do cômodo, como se tentasse pensar no que fazer a seguir.
- Eu não posso fazer muita coisa por você se você não me deixar te ajudar, sabe? – Ele o ouviu em algum lugar lá longe. Entretanto, seu tom de voz denunciava que ele estava mais preocupado do que efetivamente impaciente com seu inquilino relutante. – Ou você preferia que eu tivesse te deixado jogado no meio do gramado?
- Por que... Meu braço... Dói... Enfaixado... – 4669 ignorou as últimas palavras do outro e se ouviu resmungando entre os dentes enquanto a dor no braço serpenteava em ondas de diferentes intensidades.
- Eu não tenho muita certeza, pra dizer a verdade... – O outro respondeu, aparentemente mais perto do que estivera antes, como se tivesse enfim resolvido dar ao hóspede ingrato uma segunda chance antes de jogá-lo árvore abaixo. – Acho que você caiu sobre ele e o fraturou de alguma forma estranha. Digo, você estava todo ferrado, sabe, mas acho que você acabou detonando mais com o braço esquerdo mesmo. Deve ter sido o mau jeito.
- Eu... Cai...? – Ele ofegou. Em algum lugar no fundo da sua mente, a palavras do homem estranho pareceram fazer algum remoto sentido, chamando-lhe a atenção. Vagarosamente, ele tentou virar o corpo mais uma vez, de modo a deitar-se de barriga para cima. Agora ele mais uma vez podia encarar o homem que o acolhera, o qual o observava parado no meio do recinto com uma expressão levemente preocupada no rosto. As fisgadas mais intensas dor pareciam estar diminuindo, mas sua visão estava turva, e ele ainda sentia como se sua cabeça fosse explodir.
- Você não se lembra? – Indagou o outro enquanto avaliava o estado de 4669 de longe. Talvez ele esteja pior do que imaginei. Será que também bateu a cabeça ou coisa parecida? – Você despencou, sei lá, uns quatro metros do alto da guilda dos druidas. Você teve muita sorte mesmo de eu estar passando por ali naquela hora, sabe. Estava escuro, mas mesmo assim deu pra te ver caindo. Consegui aplicar alguns feitiços de cura para tratar os estragos imediatos e te trouxe pra cá pra ver o que eu conseguia fazer...
Ele fez uma pausa e ficou a encarar o outro com uma expressão engraçada no rosto, como se quisesse esperar pela reação dele antes de continuar falando. 4669, no entanto, não esboçou qualquer reação além de continuar a resmungar de dor e a remexer os pés inquietantemente. Lentamente, no entanto, sua mente, foi entrando em polvorosa. A guilda dos Cenath. A escada. O elfo de olhos cinzentos. A missão... Repentinamente, todas as lembranças daquela noite atingiram sua mente como uma flecha certeira, seguidas de uma sensação tenebrosa no fundo do seu estômago, como se alguém tivesse aberto um buraco ali.Eu falhei.
- Puta merda... – Ele se ouviu dizendo enquanto novamente sentia seu pulso acelerar e sua respiração ficar mais falha. Desta vez, entretanto, não era a dor o catalisador daqueles efeitos em seu organismo. Era o medo. O medo do fracasso, o pavor que o consumia enquanto ele enfim se dava conta de que desperdiçara a única chance que tivera em tanto tempo de planejamento para executar a missão que deveria ser seu momento de redenção e glória. Sua última chance, a grande chance que ele tivera de compensar pelos erros que cometera. A sua chance de ficar com a consciência em paz depois de tudo que acontecera com 1208. Arruinada. – Puta merda... Eu estraguei... Tudo...
O dono da casa agora decididamente encarava-o com uma certa apreensão, como se estivesse genuinamente preocupado com a possibilidade de ter colocado um lunático – ou pior – dentro da sua casa. Ele engoliu em seco e fez menção de se aproximar, mas pareceu reconsiderar seus movimentos de última hora, dado o histórico pouquíssimo receptivo do seu hóspede. Era mais fácil lidar com ele quando ele estava desmaiado... Entretanto, a curiosa reação de aparente desolação do outro o incomodava um pouco.
- Você disse... Que me viu caindo? - Chamou a voz do homem ferido, obrigando-o a trazer seus pensamentos de volta à realidade. Havia um quê de ansiedade inerente ao tom de voz do outro, o que desconcertou ainda mais o anfitrião.
- Isso mesmo. - Ele respondeu, hesitante, tentando imaginar que diferença aquilo fazia. - Estava escuro, mas ainda assim eu consegui ver um corpo despencando lá de cima. O pouco de luz que vinha da guilda deve ter ajudado...
4669 fechou os dois olhos com força e engoliu em seco, sentindo como se uma longa e penosa agulha de gelo tivesse sido enfiada pelas suas entranhas. O feitiço de invisibilidade. A merda do feitiço de invisibilidade deve ter falhado depois de algum tempo, mas eu estava tão concentrado em subir a escada que não percebi. Isso explica tudo. Agora realmente era oficial: ele metera os pés pelas mãos e arruinara aquela missão toda. Àquela altura, os Cenath certamente já saberiam que alguém estava tentando espioná-los, e seria muita tolice sua acreditar que eles não encontrariam meios para chegar até ele quando começassem a investigar. O humano pareceu ficar ainda mais confuso ao perceber a expressão de derrota estampada no rosto do outro.
- Hã... E o que exatamente você estava fazendo na guilda dos druidas justo àquela hora? – Ele falava hesitantemente enquanto analisava o outro dos pés à cabeça, imaginando quando seria seguro tentar se aproximar novamente. Aquele braço dele inspira cuidados mais avançados... Ele realmente não tinha planejado se intrometer na vida do desconhecido, mas, dadas as circunstâncias, ele não conseguia controlar sua curiosidade. E, de certa forma, sua preocupação. – Digo, hã... Você não parece muito druidesco, sabe. Ok, as pessoas costumam dizer que eu também não pareço com um druida típico, mas acontece que eu sou um e eu nunca te vi por lá antes. Parando pra pensar, eu nunca te vi nessa cidade antes, e eu moro aqui já tem um tempo. Então... O que você estava fazendo lá?
Pela primeira vez, 4669 se pôs a analisar o seu anfitrião com atenção. O sujeito era alto, tinha ombros largos e braços fortes e, à primeira vista, realmente lembrava muito mais um cavaleio real do que um druida. Seu jeito, entretanto, emanava uma certa calmaria, uma sensação cálida de acolhimento e hospitalidade; seus olhos, apesar de escuros e fundos, eram gentis e pareciam sorrir a maior parte do tempo. De modo geral, aquele homem parecia ser amigável, e 4669 não podia deixar de sentir uma vaga, porém nítida vontade de continuar a interagir com aquele indivíduo. A qual, evidentemente, ele logo tratou de afastar da sua mente ao casualmente lembrar-se de que, apesar de objetos de estudo fascinantes, humanos não eram seres a quem se destinaria o mínimo de simpatia ou amizade.
- O que eu faço ou deixo de fazer não lhe diz respeito algum. – Ele respondeu secamente, e sentiu-se grato ao perceber que conseguira imprimir o máximo de desdém que pôde em sua voz, que enfim voltava ao tom normal. É importante deixar claro para ele que não tenho a menor pretensão de manter qualquer forma de contato amistoso. E também é bom que ele saiba que, apesar de estar fraco e limitado, não vou permitir que ele me interrogue dessa forma!Após suas palavras, seguiu-se um denso silêncio, sustentado apenas pelos olhares intensos dos dois homens, que analisavam-se mutuamente como se enfim quisessem decidir o que achavam um do outro e se estavam ou não dispostos a continuar aquela conversação.
- Bom... É justo. – O outro enfim retrucou, atingindo 4669 de surpresa e fazendo-o arquear as sobrancelhas em uma reação de genuíno espanto. Eu achei que ele fosse insistir mais! – Você realmente não me deve satisfação alguma. Enfim... Como eu ia dizendo antes disso tudo...
O outro pareceu enfim achar seguro se aproximar novamente do seu hóspede. Pé ante pé, o druida avançou na direção da cama, deixando os braços junto ao corpo e encarando 4669 nos olhos o tempo todo, como se quisesse assegurá-lo de que não tentaria nenhuma gracinha. Estranhamente, o Bonelord disfarçado achou ter sentido uma tépida sensação de confiança ao sustentar o olhar do outro, a qual, mais do que tudo, deixou-o extremamente desconfortável. O dono da casa, entretanto, parecia determinado a ter sucesso, e não deixou-se intimidar pela careta feita pelo homem deitado na cama.
- Eu não sou um grande especialista em feitiços de cura, para ser bem sincero. Minha mãe era muito melhor nisso do que eu, veja bem, e não tive muito... tempo... para aprender isso direito com ela. – Ele falou com uma leve amargura na voz nas palavras finais enquanto se ajoelhava ao lado do leito de 4669, deixando seus olhos no mesmo patamar que os dele. Quando ele o fez, o Bonelord sentiu a estranha sensação de que não era apenas a personalidade do outro que emanava um estranho calor, mas também o seu corpo. Esse infeliz que não se atreva a chegar perto demais! Ele pensou, sem conseguir dizer qualquer coisa para detê-lo, entretanto. – Mas, como eu te disse, eu consegui curar os principais ferimentos quando te encontrei. Achei que seria preferível te tirar de lá antes que alguém mais te encontrasse, então te trouxe pra cá e tenho tentado cuidar dos outros ferimentos desde então. O problema é esse braço aí... Não tenho certeza se sei magia curativa o bastante para remendar ossos, mas se você me deixasse dar uma olhada nele eu poderia ver o que consigo fazer. Acredite, ele estava bem pior quando o encontrei. Talvez com mais algumas seções com algumas runas de cura eu consigo fazê-lo parar de doer o tempo todo.
4669 engoliu em seco enquanto passava os olhos do rosto do estranho para seu braço enfaixado, que jazia agora duro sobre seu peito. Ele estava ciente de que não seria capaz de curar um ferimento daqueles - magia curativa não era um forte dos Bonelords. No entanto, confiar sua saúde a um humano era, no mínimo, insano. A sua hesitação não passou despercebida pelo druida.
- Olha só... Eu sei que isso é esquisito e que você não me conhece e que esse mundo é cheio de gente doida... – Ele soltou um longo e penoso suspiro. – Mas se eu quisesse te fazer algum mal, eu teria roubado as suas coisas e te deixado pra morrer lá na floresta. Mas eu não deixei. Então se você puder apenas confiar em mim, eu posso ver o que consigo fazer pelo seu braço e depois posso te deixar ir.
Uma estranhíssima sensação de dúvida começava a se apoderar de cada centímetro do corpo e da mente de 4669. Ele é um humano! Não é de confiança! Gritava um dos hemisférios da sua mente. Mas ele poderia ter facilmente acabado comigo enquanto eu dormia, se quisesse! E não o fez! Gritava a outra. O druida pareceu notar, pois, no momento seguinte, ele estendeu seu braço em um movimento rápido para abrir a gaveta do criado mudo ao lado da cama, da qual ele tirou um pequeno pote circular de barro. 4669 involuntariamente retraiu-se ao perceber o gesto inesperado do humano.
- Você pode até comer um biscoito enquanto eu dou uma arrumada nesse braço, se quiser. Você deve mesmo estar com fome. – E, dizendo isto, ele abriu a tampa do pote, deixando à vista de 4669 uma coleção de pequenos discos do que aparentava ser uma espécie de massa assada, em cuja superfície eram visíveis pequenos pontos de coloração marrom cuja composição ele não reconheceu. O aroma que se desprendia deles era estranhamente reconfortante.
***
- Deixe-me ver se eu entendi isto corretamente. – Soou a voz de Elathriel pela pequena delegacia de Ab’Dendriel, localizada em uma sala imunda e mal-ilumina acima de uma escada no final do corredor onde encontravam-se os Portões do Inferno. Ele encarava Batráquio nos olhos com uma grande sombra de dúvida perpassando os seus, como se estivesse lutando internamente consigo mesmo para decidir se podia ou não confiar no misterioso homem que jazia sentado do outro lado da mesinha de madeira bamba em torno da qual eles estavam sentados. – Você está me dizendo que já esteve naquele lugar horrível antes e que agora voltou para resolver algumas... Como foi mesmo que você disse?
- Pendências.
- Isto, pendências! Você retornou para resolver algumas pendências que deixou neste lugar funesto e, por isto, eu tenho a obrigação de colaborar com sua empreitada e lhe fornecer a chave que permitirá sua passagem e entrada no Inferno. Ou então você irá explodi-la e entrar mesmo assim. É isto?
- Um resumo bastante preciso de tudo que eu lhe disse, sim. – Respondeu Batráquio com a voz contaminada de impaciência e tédio. Eles estiveram repetindo aquele diálogo interminavelmente pelo menos nos últimos vinte minutos, desde que ele concordara em acompanhar Elathriel até a delegacia para melhor resolver aquela situação sem a necessidade de um combate desnecessário. Do qual eu certamente sairia ganhando.
- Isto não está certo. Não está certo mesmo. – Disse Elathriel encarando as próprias mãos, como se falasse mais consigo mesmo do que com seu interlocutor. – Digo, eu nem mesmo sei quais são essas suas... Pendências... Naquele lugar tenebroso. Não está certo. Não posso permitir que você passe sem ao menos saber o que pretende fazer lá! É um lugar muito perigoso!
O feiticeiro de verde soltou um suspiro de profunda impaciência, tentando se lembrar novamente dos motivos que tinha para não fulminar Elathriel ali mesmo e simplesmente arrancar a chave do seu cinto.
- Eu já lhe disse, xerife. O que eu pretendo fazer lá não é do seu interesse. – Vou roubar o máximo de livros da biblioteca que possam me ajudar a reverter esta maldição horrorosa que me foi lançada, reencontrar meu antigo mestre, assassinar alguns antigos inimigos com os quais tenho contas a acertar e fazer o Conselho pagar por tudo que me fez no passado, ele pensou enquanto seus olhos afundavam nos de Elathriel. – Além do que, eu já lhe disse que, se você concordar em me emprestar a chave... Eu o irei recompensá-lo muito bem.
Elathriel pareceu ponderar a proposta por alguns minutos, seu cenho franzindo-se e desfranzindo-se seguidamente, como se o mesmo tivesse sido atingido por algum tipo de feitiço para confundir a mente. Até que não teria sido uma má idéia, pensou o Bonelord ao considerar a hipótese.
- Ainda assim... Isto é muito irregular. E não seria correto! – O delegado endireitou-se subitamente na cadeira ao proferir aquelas últimas palavras, como se tivesse acabado de se lembrar daquele pequeno detalhe e o considerasse deveras importante. – Eu sou a lei desta cidade, não posso permitir que a corrupção chegue até esta instituição!
- Meu caro Elathriel – Disse Batráquio enquanto descruzava as pernas e arqueava o corpo para frente, pousando as mãos entrelaçadas sobre a mesa e cravando seus olhos verde-esmeralda nos do delegado, que sentiu como se alguém estivesse lhe invadindo os pensamentos. – Raciocine comigo. Eu estou tentando convencê-lo a me entregar a chave para aquela porta sem a necessidade de recorrer a meios explicitamente criminosos. Eu poderia, como lhe expliquei, colocar a porcaria da porta abaixo com um feitiço, mas acredito que isto seria pouco... hm... gentil da minha parte.
- É, realmente seria bastante grosseiro...
- E, se você parar para pensar. – Batráquio continuou, sem dar importância às palavras do delegado. – Eu estaria, tecnicamente, cometendo um delito gravíssimo se destruísse aquela porta. Tenho certeza que isso deve se enquadrar em dano grave ao patrimônio ou coisa parecida, e presumo que a sentença para isto seria igualmente grave. Talvez, quem sabe... Ser jogado nos Portões do Inferno por toda a eternidade para definhar e refletir sobre meus erros?
O delegado abriu a boca para dizer alguma coisa, mas subitamente a fechou ao finalmente acompanhar a linha de raciocínio de Bonelord.
- Logo, concluímos que, se eu puser a porta abaixo, estarei cometendo um crime punível com minha própria prisão no lugar que eu justamente estou tentando invadir, o que, segundo a sua lei, seria perfeitamente justificável. Assim sendo, acho que fica bastante lógico que, de um jeito ou de outro, eu estarei atravessando aquele portal hoje, seja por bem, seja por mal. E, cá entre nós, estou tentando fazer isso de uma forma legal. E uma forma que vá te render um pagamento generoso.
- Isso... Isso estranhamente faz um certo sentido, Sr. Bestáquio...
- Batráquio. O nome é Batráquio.
- ... Mas como posso ter certeza de que o senhor honrará com a sua parte no acordo? – Elathriel fez uma pausa enquanto analisava o outro, sobretudo suas vestes, as quais estavam sujas e surradas após longos dias de viagem através do Continente. – Não me entenda mal, mas... O senhor não parece estar em condições de pagar nada a ninguém. Eu preciso de garantias, sabe.
O feiticeiro ergueu uma das sobrancelhas enquanto registrava as palavras do delegado e sentia seus dedos tremerem levemente sobre a mesa. Ora essa! O patife está me chamando de miserável! Entretanto, ele sabia que Elathriel certamente era um arqueiro muito mais competente do que era um delegado, e perder a calma naquela situação apenas comprometeria sua operação e levaria a uma luta desnecessária. Poupe seus esforços para a Necrópole, Batráquio, ele repetiu mentalmente, como já fizera muitas vezes antes e ainda faria tantas outras. Tudo que ocorrer antes dela não tem importância alguma.
- Entendo. Bom, sendo assim, acredito que posso encontrar algo para deixar como garantia até meu retorno, de forma a assegurar que você não apenas terá a chave de volta, como também o gordo pagamento que negociamos.
- E esta garantia seria...?
Ele fez uma breve pausa enquanto raciocinava. A resposta chegou rapidamente à sua mente, junto com um zurrinho de impaciência de um certo burrinho que o observava à distância, próximo à escada.
- O burro. – Ele disse, abrindo um largo sorriso. – O burro é a sua garantia.
- Como é? – Reagiu Elathriel, espantado, sendo acompanhado por Eliseu, que pareceu entender as palavras de seu mestre e soltou um bufo de indignação.
- Ora francamente, Eliseu. Você detesta cavernas! Já foi um suplício fazê-lo descer a porcaria das escadas para chegar até aqui. Nós dois sabemos muito bem que você não iria gostar nem um pouco do que existe lá embaixo! – Retrucou o Bonelord com impaciência, voltando-se para seu burrinho e o encarando com severidade. Eliseu respondeu com um baixo zurro tristonho e baixou as orelhas, fazendo com que seu mestre se sentisse relativamente culpado. – Ora, colabore, Eliseu. Além do mais, não existem cenouras no Inferno. E tenho certeza que o bom e valente xerife Elathriel poderá prover uma grande quantidade delas para você enquanto vocês esperam meu retorno.
Ao dizer as últimas palavras, o homem de cabelos e barba negros virou o rosto para o elfo e o encarou com veemência.
- Ah sim, sim, claro! Cuidarei muito bem do bom Eusébio...
- Eliseu.
- ...Até você voltar. Sim, sim... Tenho certeza de que isso resolve nosso impasse. – O delegado pareceu estranhamente satisfeito, apesar de não ter parecido gostar muito da idéia de ser babá de um burro por um período indeterminado de tempo. – Quero dizer, tudo isso ainda é muito, muito irregular, mas estou confiante de que você não contará nada disso a mais ninguém...
- Naturalmente.
- ...E de que trancará a porta ao passar para termos certeza que nada indesejado sairá por aí...
- É lógico.
- ...E, se ninguém mais ficar sabendo, e nada de mal atravessar aquele portal... Então poderemos todos fingir que nada aconteceu. - Sorri Elathriel - Só existe um pequeno problema...
- Que seria?
- O que acontece se você morrer e não voltar? - Disse Elathriel com um inesperado ar nefasto contaminando sua voz e suas feições. O Bonelord engoliu em seco, sentindo um peso descendo pela sua garganta. – Não foram muitos os aventureiros que se atreveram a atravessar os Portões do Inferno, Sr. Bestáquio, e menos ainda aqueles que tiveram a boa fortuna de regressar vivos e inteiros, ou, pelo menos, com dois membros intactos. O que te faz pensar que sobreviverá a esta amaldiçoada viagem?
Batráquio deixou que as palavras do delegado pesassem em sua mente por um longo período, como se quisesse dar a elas a oportunidade de fazê-lo desistir daquela loucura. Ele está certo. O Inferno não é um lugar para se entrar levianamente. O que me espera lá embaixo, por mais que eu já conheça a maioria dos caminhos, é pior do que muitos dos mais horríveis mitos e lendas que se contam na superfície. Ele sabia que, se não fosse seu desejo ardente de fazer tudo aquilo que ele deveria ter feito no passado e de consertar a imagem sua que ele deixara ao ir embora, ele jamais se daria ao trabalho e esforço de enfrentar o que estava para enfrentar. Esta certamente é a maior provação que eu já enfrentei na minha vida. Entretanto, ele sabia que jamais teria paz enquanto não resolvesse aquilo de uma vez por todas.
- Eu sei que vou voltar. Eu tenho certeza disto. Não há nada que me faça considerar a hipótese de ficar pelo caminho. – Disse ele por fim, convicto, enquanto lançava um olhar deveras hesitante para Eliseu. O burrinho parecia resignado com seu futuro imediato, mas retribuiu o olhar de seu mestre com algo que se assemelhava muito com a confiança de que ele não o deixaria para apodrecer ali com Elathriel. Batráquio deu um meio-sorriso, tentando imagina quando no seu passado ele poderia ter previsto que se afeiçoaria tanto a um quadrúpede como aquele. Eu prometo que não vou te deixar aqui, Eliseu.– Agora me dê logo essa chave antes que eu perca a paciência e abra um rombo na porcaria daquela porta.
***
Eles jamais sentira algo como aquilo antes. Não era apenas o aroma – os tais biscoitos, como o estranho e simpático druida os havia chamado, eram também estranhamente deliciosos, especialmente as gotas daquela substância marrom, a qual, segundo o homem que os criara, chamava-se chocolate. 4669 não soube exatamente como foi que acontecera: em um instante ele estava tentando resistir ao aroma inebriante daqueles biscoitos, o qual fazia seu estômago tremer e implorar por alimento, e, no outro, ele estava sentado na beirada da cama, de frente para o sujeito que o acolhera, com o pote de biscoitos aninhado no colo, a boca repleta de farelos e gotas de chocolate e o braço esquerdo estendido, amparado pelo druida, que murmurava uma série de encantamentos enquanto tateava por cada centímetro da superfície agora nua do membro – as ataduras jaziam esquecidas no chão.
Vez ou outra, os feitiços do desconhecido provocavam reações inquietantes ou diretamente desagradáveis em seu corpo. Um encantamento particularmente poderoso lhe parecera uma série infinita de finíssimas agulhas de gelo sendo repetidamente cravadas em seu braço, o que acarretara em 4669 novamente jogando-se de costas na cama e gemendo de dor por alguns minutos até finalmente aceitar que o humano voltasse a tentar colocar todos os ossos moídos no lugar. Apesar de tudo, era inegável que o druida até tinha algum talento como curandeiro: após o que pareceu uma eternidade, 4669 já não mais sentia a dor excruciante de antes, e agora ele já conseguia mover os dedos da mão esquerda com relativa firmeza, apesar de persistirem algumas limitações incômodas.
- Eu não posso te garantir que ele vá ficar bom como antes. – Dissera o sujeito depois que terminara de executar todos os encantamentos que conhecia e depois de gastar metade das runas de cura que possuía armazenadas em casa. – Talvez você devesse visitar um druida mais competente nessa escola de magia em particular. O Eroth certamente deve conhecer algum feitiço que vá deixá-lo novinho em folha.
- Não. – Ele se ouvira dizendo com veemência, colocando um ponto final naquele assunto. Ele não tinha certeza do quê o fizera confiar naquele estranho e nem mesmo sabia que aquela fora a escolha mais acertada a se tomar, mas, fosse como fosse, ele não permitiria que nenhum outro curandeiro esquisito se aproximasse dele naquelas condições. Algo lhe dizia que ele não encontraria por aqueles lados alguém tão hospitaleiro como aquele druida. – Assim deve estar bom. Deve sarar com o tempo.
O outro deixou-se sentar no assoalho, exausto, com numerosas gotas de suor escorrendo pela testa. O sujeito é teimoso mesmo, ele pensou enquanto soltava um longo suspiro e tentava recuperar o fôlego. Ele então estendeu uma das mãos na direção do outro, que se retraiu involuntariamente.
- Calma aí. Eu só quero um biscoito. – Ele disse abrindo um largo sorriso ao ver a reação de 4669. Àquela altura, ele já começara a achar as reações exageradas do estranho deveras engraçadas. É um sujeito bastante peculiar, esse aqui. Ele então sacou um dos seus biscoitos do pote de barro, que agora jazia ao lado de 4669, e o enfiou inteiro na boca, mastigando-o com vontade. Ao terminar de engolir, fez uma careta. – Não foi uma das minhas melhores receitas. Minha mãe sabia fazer uns que eram fantásticos, mas eu nunca peguei o jeito.
- Eu os achei fantásticos. – 4669 se ouviu dizendo, apenas para cair em si em sequência e sentir-se extremamente tolo por manter uma conversa casual daquelas com um humano. Ainda mais por tê-lo elogiado de alguma forma. – Digo, estavam ok. Apenas ok.
O outro abriu um largo sorriso e baixou o rosto por alguns segundos enquanto continha o riso. Algo naquele estranho fazia-o ter vontade de rir o tempo inteiro, apesar do estranhamento inicial do primeiro contato de ambos.
- Você é um sujeito engraçado, sabe. – Ele disse, voltando a fixar seus olhos no outro, o sorriso ainda presente em seu rosto. Ele parecia ainda mais sereno e jovial com aquele riso estampado na cara. Ao ouvir aquelas palavras, 4669 fechou o rosto e bruscamente puxou o braço esquerdo para perto de si e longe do druida, direcionando a ele um olhar profundamente irritado e ofendido. Entretanto, sua reação apenas fez com que o sorriso do estranho se alargasse ainda mais. – Eu quis dizer no bom sentido. Você é um sujeito engraçado no bom sentido. Digo, quando não está por aí chutando as coisas ou atirando bolas de fogo nas pessoas. Ou sendo antipático.
- Eu não devo simpatia nenhuma a um humano. – Ele rosnou enquanto tampava o pote de barro, agora vazio, e fulminava o outro com o olhar. A expressão facial do druida passou da graça para uma breve confusão, e depois novamente para o riso, o que apenas serviu para inflar o ânimo de 4669.
- Claro. Afinal, você deve ser um espírito da natureza ou alguma divindade etérea ou coisa parecida, certo? – Riu o outro enquanto se levantava e batia o pó acumulado das vestes. Ele se distanciou por alguns segundos na direção da mesa e logo voltou arrastando uma cadeira que jazia recostada ao móvel, a qual postou diante da cama e sentou-se, apoiando os braços no encosto e encarando o outro.
Cuidado, 4669. Por alguns instantes, ele esquecera-se de que, para todos os efeitos, era um humano em um mundo de humanos. Sua missão pode ter fracassado, mas a última coisa que você precisa é trair seu disfarce! Seu estômago revirou-se mais uma vez com a lembrança de seu fracasso, a qual ele tentou afastar da cabeça o mais rápido que pôde.De qualquer modo, ele sabia que precisava manter as aparências: ele jamais conseguiria sair de Ab’Dendriel sem causar um enorme tumulto caso denunciasse sua verdadeira raça.
- Foi... Foi modo de dizer. Apenas isso. – Ele rapidamente disse enquanto desviava o olhar. Algo na expressão facial ridícula que o outro fazia enquanto o encarava lhe incomodava profundamente.
- Viu só? Você é hilário! – Ele disse entre um sorriso e outro, como se estivesse decidido a fazer com que 4669 o odiasse ainda mais. Já basta que agora eu tenho uma imperdoável dívida com esse sujeito, ele pensou com rancor. A última coisa que eu preciso é ele achando que somos amigos ou coisa parecida. Por certo, ele deveria cortar aquele papo de imediato e ir embora dali. Mas, por alguma razão inexplicável, ele queria descobrir o que poderia acontecer caso ele ficasse.
Seguiu-se um longo ainda que estranhamente confortável silêncio. Durante ele, 4669 se pôs a observar cada detalhe do cômodo onde estava com ainda mais atenção, tentando afastar da mente tudo que lhe haviam ensinado sobre humanos e buscando absorver algo que pudesse ajudá-lo a compreender melhor o comportamento da raça. Já que vim parar aqui, vou pelo menos aproveitar e continuar com a minha pesquisa... Enquanto isso, o dono da casa parecia estudá-lo, talvez tentando descobrir se era uma boa idéia questionar ao estranho de onde ele vinha, quem era e o que fazia da vida. Ele parece um sujeito muito fechado, pensava o outro enquanto o analisava. Não acho que ele vá me contar muito sobre ele, mesmo que eu pergunte... Mesmo assim, ele decidiu correr o risco.
- Que é 1208? – Ele indagou inocentemente, como quem não quer nada. Como esperado, o estranho retesou-se ao ouvir o questionamento, desviando o seu olhar, que então jazia na travessa de frutas, para o rosto do druida. Sua respiração aparentemente ficara mais tensa, e seus olhos haviam se estreitado ameaçadoramente.
- Onde você ouviu isso?
- Você estava resmungando esse número enquanto dormia. – Ele respondeu dando de ombros. Nas várias horas que haviam se passado desde que ele o resgatara do gramado, ele tivera a impressão de ouvir aquele número ser repetido incontáveis vezes durante o sono do estranho. – Ele quer dizer alguma coisa?
- Não é um número. É um nome. – Por que eu estou contando isso pra ele? Puta merda! Havia algo naquele estranho que lhe fazia querer falar sobre aquilo, e ele não sabia exatamente o que era, tampouco gostava disso. É perigosíssimo falar dos assuntos da Necrópole fora dela, ainda mais com um desqualificado de um par de olhos só!
- 1208? Um nome? – O druida espantou-se, voltando a assumir a mesma expressão de apreensão com a qual o encarara mais cedo, após quase ter sido chutado na cara de queimado vivo. – É um nome um pouco engraçado para uma pessoa, não é?
- É um apelido. – Ele apressou-se em inventar após detectar seu deslize. Não sei o que me deu, falar disso justamente com ele. Entretanto, em algum lugar da sua mente, um lugar que ele há muito lutava para manter silencioso, 4669 sabia que precisava falar sobre aquilo com alguém. – É um apelido de um... amigo.
- Ah. Claro... E o que houve com esse seu amigo?
- Morreu.
4669 falou aquela palavra com uma aparente indiferença, como se não tivesse a menor importância. Para ele, era importante demonstrar o máximo possível de apatia diante de acontecimentos como aquele, mesmo que ele não estivesse efetivamente sentindo-se daquela forma. Fora assim que eles o ensinaram. A morte é para a vida apenas como a passagem da água para o gelo, 4669, dissera-lhe 1593 em um passado remoto, quando ele ainda era um gazer. Não se deve lamentá-la ou temê-la, mas sim admirá-la e abraçá-la. Lembre-se disto. Por muito tempo, ele acreditara naquelas palavras. Entretanto, como ele aprendera em uma ensolarada manhã no Castelo de Elvenbane, aquele era um ensinamento imensamente mais assimilável na teoria do que na prática. Pelo menos para ele.
Houve um silêncio desconfortável, denso como uma parede de tijolos.
- Eu sinto muito. – O outro disse finalmente, e sua voz transmitiu um tipo de emoção que, a princípio, 4669 teve certa dificuldade de identificar. Ela transmitiu uma forma de empatia. De consolo. Como se ele realmente pudesse identificar sua perda e se solidarizar a ela. Aquelas palavras, mais do que os biscoitos, mais do que os feitiços de cura, mais do que o fato de o outro tê-lo acolhido em sua casa sem nem mesmo saber quem ele era foram o que despertou sua mente para a singularidade do indivíduo que estava sentado em sua frente.
Ao perceber o novo silêncio constrangedor que se instaurara, durante o qual 4669 sentia-se embriagar-se em sua confusão, o anfitrião logo tratou de tentar se redimir.
- Desculpe, eu não deveria ter perguntado. – Ele se apressou em dizer, atropelando as palavras. – Eu realmente não queria ter me intrometido... É que você ficava repetindo esse número o tempo todo e eu fiquei pensando...
- Por que você me ajudou? – 4669 disse com a voz baixa e mansa, tentando, pela primeira vez, analisar o humano à sua frente sem a ótica que lhe fora gravada na mente pela Necrópole. Todos os anos que eu passei estudando essa raça e tentando entender seu raciocínio e sua cultura terão sido desperdiçados se eu não me livrar dessa visão que me foi imposta e buscar compreendê-los pelo que são. Aquele pensamento lhe era, ao mesmo tempo, extremamente assustador e imensamente libertador.
- Como é?
- Eu perguntei por que você me ajudou. Você poderia, como bem disse, ter me deixado lá para definhar. Você poderia ter me chutado daqui assim que acordei. Entretanto, você me acolheu e tratou dos meus ferimentos. E eu gostaria de saber o porquê. – Ele calmamente explicou.
O outro pareceu desconcertado, e, de certa forma, talvez até um pouco ofendido por aquela pergunta.
- Por que é a coisa certa a se fazer? – Ele falou como se aquilo fosse óbvio e como se 4669 fosse um lunático por não ter encontrado uma resposta tão lógica como aquela. – Não é certo deixar um semelhante morrer quando se pode fazer algo a respeito. É isso que eu aprendi quando comecei a treinar para me tornar um druida, e é nisso que eu acredito.
- Um semelhante? E se... E se eu não fosse humano? – 4669 sentiu sua boca secar, sem ter certeza do porquê. – E se eu fosse qualquer outra coisa?
- Todos os seres que vivem neste mundo têm o direito de viver. Não é correto deixar outro ser vivo para morrer assim. É cruel.
- Você fala como se conhecesse todas as raças do mundo e tivesse certeza de que todas são dignas da sua piedade.
- E você fala como se houvesse alguma que fosse indigna. – Ele retrucou com um largo sorriso. – Existem tantos tipos de criaturas no mundo... Não te parece simplista demais assumir que todas elas são alguma coisa ou deixam de ser outra? Se bem que, na verdade, eu não gosto dessa história de raças. Não gosto de julgar os outros, prefiro conhecê-los. Normalmente funciona melhor.
4669 ficou alguns segundos observando o humano com uma inquietação crescente, uma inquietação que ia muito, muito além da mera curiosidade. O indivíduo que estava em sua frente era um exemplar distinto do padrão humano com o qual ele tivera contato. Não gosto de julgar os outros, ele dissera. Será que ele se lembraria disso se me visse do jeito que eu realmente sou? Ou será que me deixaria para morrer?
- Eu preciso ir. – Ele disse, de súbito, levantando-se repentinamente e sobressaltando seu anfitrião, que voltou a encará-lo com um ar de preocupação.
- Você tem certeza? Talvez você devesse descansar por mais algumas horas. Esse braço ainda não está totalmente curado, sabe... – Ele disse enquanto se erguia da cadeira, tentando encontrar uma forma de convencê-lo a ficar. Ele sentia que, nas últimas palavras que trocaram, eles estavam começando a tecer algo próximo de uma conversação casual relativamente amistosa. E havia algo naquele estranho que o fazia querer conhecê-lo.
- Eu realmente preciso ir. – 4669 disse com firmeza enquanto se dirigia ao cabide junto à porta para recolher sua túnica e sua capa de viagem. Aquela conversa toda o estava deixando inquieto demais, e ele precisava urgentemente caminhar para colocar os pensamentos em ordem. Além disto, ele precisava contabilizar os prejuízos do fracasso da sua empreitada e decidir se havia algo a ser feito para consertar o seu erro. E, por fim, ele realmente sentia que precisava se afastar daquele humano, pelo bem da sua sanidade mental.
- Bom... Que seja, então... Cuide-se. Não saia escalando escadas de mais de três metros de altura de novo. E evite carregar peso naquele braço por um tempo! – Insistiu o estranho enquanto o outro vestia sua túnica e jogava a capa sobre o corpo. Quando ele ia dirigindo-se à porta, o druida pareceu lembrar-se de algo que o fez soltar uma exclamação aguda. – Ah! Puta merda, desculpa a grosseria, mas eu me esqueci completamente.... Que falta de modos...! Como é o seu nome?
Meu nome? Por aquilo ele decididamente não esperava. Ele sabia que os humanos tinham nomes e sobrenomes próprios, formados por letras e sílabas, e sabia também que simplesmente dizer “4669” não seria, de forma alguma, apropriado. O disfarce, 4669, você precisa manter o disfarce! Sentindo sua inquietação crescer enquanto imaginava por que aquele humano iria querer uma informação trivial daquelas, 4669 improvisou o primeiro nome relativamente humano que lhe veio à cabeça.
- Dagobald. – Ele disse, pensando no “Livro das Transmutações, de 56689 (ou Dagobald, o Insano)”. Preciso inventar também um sobrenome! Rápido! Sentindo um leve pânico gerado pela tolice de ter esquecido aquela parte do disfarce, 4669 falou a primeira palavra solta que conseguiu pensar, apenas parcialmente ciente do desastroso resultado que produzira. – Dagobald Tarantella.
O outro, mais uma vez, abriu um largo sorriso e abafou um risinho.
- Algum problema? – Questionou 4669 enquanto erguia as sobrancelhas e voltava a se perguntar por que não fulminava aquele humano ali mesmo.
- Não, não. É que você é muito engraçado, só isso. – O anfitrião riu-se. Se pudesse, ele faria aquele sujeito ficar, apenas para poder conhecê-lo mais e rir mais com ele. Mas, por ora, ele sentia que o melhor a fazer era esperar que seus caminhos se cruzassem mais uma vez no futuro.
- E você? Não tem nome, por acaso? – 4669 retrucou, impaciente, surpreendendo-se com sua própria ousadia. Por que eu quero saber disso? Que diferença isso faz? Ele nunca se dera ao esforço de memorizar um nome que não fosse numérico antes.
O druida voltou a sorrir – Que mania irritante! – e estendeu o braço esquerdo, ciente de que seu hóspede só poderia corresponder a um aperto de mão com o braço direito. Que gesto estranho é esse? pensou 4669, nervoso, sem saber o que viria a seguir.
- Muito prazer, Dagobald Tarantella. Meu nome é Ícaro. Ícaro Azrael.
Batráquio e Eliseu encontram os Portões do Inferno.
AGORA TUDO FAZ SENTIDO! ILLUMINATI CONFIRMADO, ABRAM OS ÓLEOS!
Brincadeiras à parte, adorei o Capítulo; o aperto no coração que me deu pelo 1208 foi tenso. Poha Karina, podia ter matado os bichos mais rápido pra dar um help ae. Vacilo kkkkk
Agora, quanto a essa última parte... Meu deus, tudo faz sentido nessa vida agora HAEHAUEUEHUEHUHEUA
Aguardo o próximo capítulo. Ah, quanto ao tamanho deles: leia, quando puder, O Mal Se Levanta Novamente, de Japixek. Sério. Teu capítulo foi minúsculo comparado ao tamanho dos caps q ele escreve, vai por mim (e além de grandes, são excelentes: eu recomendo, e muito, a leitura). No mais, é isso aí xD
Agora quem tem que escrever e postar cap novo sou eu, e to na sofrência com isso AHEUHAUEHUEHUEH
Melhor capítulo até agora.
Gostei demais demais de tê-lo lido, mas estou triste desde já.
Ah, cara. Ah <faz cara de desanimado>.
Eu ia escrever um mundo de coisas, mas não quero que tu diga nada sobre [-spoilers], pra não perder a graça quando eu ler os próximos capítulos.
Eu realmente não tô conseguindo expressar o que senti quando li esse capítulo...
Não sei se eu tô pensando muito além do que a história tem, haha. E tô tão curioso agora que queria perguntar o que vai acontecer, só pra saber se o que tô pensando é o que vai acontecer.
Acho que vou guardar essa curiosidade latente (isso se eu não te abordar antes).
1. Adorei "tentaculite", HUIOheuihaeiuahe.
2. Elfo explicando "restrito" pareceu muito uma cena de Desventuras em Série xD
3. BESTÁQUIO!
Enfim. Gosto como você coloca o flashback no meio do texto. Trabalha muito bem a imersão e emersão do passado.
E também acho legal a palavra muxoxo ;3
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AGORA TUDO FAZ SENTIDO! ILLUMINATI CONFIRMADO, ABRAM OS ÓLEOS!
Brincadeiras à parte, adorei o Capítulo; o aperto no coração que me deu pelo 1208 foi tenso. Poha Karina, podia ter matado os bichos mais rápido pra dar um help ae. Vacilo kkkkk
Agora, quanto a essa última parte... Meu deus, tudo faz sentido nessa vida agora HAEHAUEUEHUEHUHEUA
Aguardo o próximo capítulo. Ah, quanto ao tamanho deles: leia, quando puder, O Mal Se Levanta Novamente, de Japixek. Sério. Teu capítulo foi minúsculo comparado ao tamanho dos caps q ele escreve, vai por mim (e além de grandes, são excelentes: eu recomendo, e muito, a leitura). No mais, é isso aí xD
Agora quem tem que escrever e postar cap novo sou eu, e to na sofrência com isso AHEUHAUEHUEHUEH
Abraço,
Iridium.
MANTEIGA ILLUMINATI CONFIRMED SÓ FALTA OS ANAGRAMA
Muitas gracias por seguir acompanhando, moça <3 Já comentamos longamente sobre o drama ingame, então vou me poupar disso HAHAHAHAHA Que bom que você tá sofrendo agora <3 Isso me diz o quão fácil será esmigalhar o seu coraçãozinho com tudo que está por vir <3
Postado originalmente por Gillex Koehan
Melhor capítulo até agora.
Gostei demais demais de tê-lo lido, mas estou triste desde já.
Ah, cara. Ah <faz cara de desanimado>.
Eu ia escrever um mundo de coisas, mas não quero que tu diga nada sobre [-spoilers], pra não perder a graça quando eu ler os próximos capítulos.
Eu realmente não tô conseguindo expressar o que senti quando li esse capítulo...
Não sei se eu tô pensando muito além do que a história tem, haha. E tô tão curioso agora que queria perguntar o que vai acontecer, só pra saber se o que tô pensando é o que vai acontecer.
Acho que vou guardar essa curiosidade latente (isso se eu não te abordar antes).
1. Adorei "tentaculite", HUIOheuihaeiuahe.
2. Elfo explicando "restrito" pareceu muito uma cena de Desventuras em Série xD
3. BESTÁQUIO!
Enfim. Gosto como você coloca o flashback no meio do texto. Trabalha muito bem a imersão e emersão do passado.
E também acho legal a palavra muxoxo ;3
A essa altura, acredito já ter contribuído E MUITO para o aumento da sua dor e tristeza. Fico feliz.
Brigadíssimo pelo comentário, Gillex, foi muito legal de lê-lo e saber que a história está mexendo tanto contigo <3 Um dos meus objetivos com toda essa ladainha justamente é brincar (EM TODOS OS SENTIDOS POSSÍVEIS DA PALAVRA -BERRO) com o emocional dos leitores, então eu tenho procurado me dedicar mais a trabalhar esse aspecto da história. Espero mesmo que eu consiga continuar com o meu aparente bom trabalho no futuro. E espero que você não me mate depois que eu acabar ela <3
Bom, segundamente, mil desculpas pelo atraso. Tive bastante coisa para fazer desde que postei o último capítulo e acabei tendo que viajar mais de uma vez nesses últimos dias, então fiquei com pouco tempo para escrever. Além disso, este é provavelmente o capítulo mais difícil que escrevi até o momento, e como acabei rushando ele hoje para poupá-los de esperar mais, não posso dizer que estou inteiramente satisfeito com o resultado. Mais do que nunca, pesei o emocional do nosso amiguinho verde neste capítulo aqui. Prometo que farei o possível para postar o V logo, o qual será uma sequência direta deste aqui.
Enfim, vamos lá.
Spoiler: Música do capítulo
A música deste é "Flaws". Eu gosto muito dela, e ela fala muito do Batráquio.
There's a hole in my soul
Can you fill it?
Can you fill it?
IV
Nos dias que se seguiram, 4669 passou a observá-lo.
À princípio, ele apenas postara-se entre as moitas de samambaias que cresciam no solo perto da árvore onde ficava sua casa, mas não demorou muito para que ele passasse a acompanhá-lo pelo interior da floresta de Ab’Dendriel. O humano, entretanto, passava grandes períodos do dia além dos limites da cidade, onde 4669 não se atrevia a segui-lo. Não faz mal perder algum tempo aprendendo mais sobre o comportamento humano através de simples observações científicas, ele insistia consigo mesmo sempre que sua consciência surgia para perturbá-lo com reflexões sobre o que andava fazendo. Desde que eu não me afaste da cidade e da minha missão, não há nada de errado com o que estou fazendo. Tudo aquilo tratava-se única e exclusivamente de um mero exercício de curiosidade. E, na verdade, ele de certa forma estava trabalhando em sua missão enquanto observava o humano: uma vez que ele havia se transformado em um membro daquela raça, fazia sentido que ele estudasse outros exemplares para aperfeiçoar seu disfarce. Não há problema algum no que estou fazendo, ele insistia para si mesmo dia após dia.
No entanto, o fantasma do seu fracasso parecia determinado a desviar seu foco do seu mais novo e interessante objeto de estudo. Quase uma semana se passara desde sua vertiginosa queda do alto da guilda dos Cenath, o que significava que o período de lua nova já estava praticamente se encerrando. Se suas fontes estivessem corretas, sua última oportunidade de observar os elfos estava batendo à sua porta, e se ele mais uma vez falhasse, seria preciso esperar mais um ciclo lunar inteiro para voltar a agir. O Conselho não será tão paciente assim, 4669 refletia quando lembrava daqueles detalhes. Desde que ele assumira sua nova identidade e se propusera a viver entre elfos e humanos, ele não regressara à Necrópole ou sequer se reportara novamente aos Anciãos. Ele sabia que, caso não enviasse explicações sobre sua falta de notícias dentro de pouquíssimo dias, o Conselho enviaria seus emissários para intervir. A última coisa que eu preciso agora é ser seguido por um bando de cadáveres reumáticos por uma maldita floresta encantada!
4669, por sua vez, não sabia mais o que fazer. Após o último fiasco, ele se pusera a treinar por horas e horas a execução do feitiço de invisibilidade, o qual ele agora tinha certeza que conseguia executar com maestria – e, em sua mente perturbada, seguir o humano por repetidas horas nada mais era do que um exercício mágico, para ter certeza que seu feitiço de invisibilidade não falharia mais. Entretanto, ele não ousava sequer voltar a se aproximar da guilda, e cada vez que ele cruzava com um elfo que transmitisse a mais remota impressão de ser um Cenath ele sentia suas vísceras congelarem e sua respiração parar por alguns segundos. Se eu for reconhecido agora, tudo estará perdido irreversivelmente! Ele sabia que precisava dar um jeito de obter as informações que precisava e sumir dali o mais rápido que pudesse, antes que houvesse tempo para que ele fosse descoberto e exposto.
Todavia, existia Ícaro.
4669 já fora enviado para a mais ampla gama de missões na superfície, e, em suas viagens, conhecera as mais peculiares raças e se envolvera nas mais excitantes aventuras. Ele já se infiltrara entre os necromantes de Drefia, já vivera entre os dragões de Zao, já enfrentara os cultistas em Hrodmir e já visitara Markwin e seus súditos no âmago do Antigo Templo de Thais. Entretanto, Ícaro apresentava-se como uma nova e ainda mais emocionante empreitada. Eu estive cara a cara com um humano, não fui desmascarado e nem precisei desintegrá-lo! Ele sabia que estava mais próximo do que qualquer outro Bonelord jamais estivera de se infiltrar na sociedade humana e descobrir os seus segredos. Em seus mais fantasiosos momentos de loucura, 4669 forçava-se a acreditar que seria perdoado por seu fracasso em relação aos Cenath se conseguisse levar segredos dos humanos para o Conselho. Eu serei lembrado eternamente como um visionário! Meu nome será idolatrado por gerações! Certamente serei convidado a me tornar um Ancião! E, assim, 4669 jurava para si mesmo que aquela era a raiz de seu interesse no humano que o salvara e o único motivo para que ele não desistisse de segui-lo por todos os lados.
Naquela tarde, contudo, ele forçara-se a dar uma pausa em seu passatempo favorito para se dedicar aos seus reais afazeres naquela cidade. Era enfim chegado o dia da última lua nova, e restavam-lhe apenas algumas horas antes da noite cair e de sua última chance desaparecer com a luz dos sóis. Ainda disfarçado, 4669 vagava entre as estantes da pequena e apertada biblioteca de Ab’Dendriel, mais uma edificação escavada no interior de uma larga e vistosa árvore, enquanto seu medíocre par de olhos filtrava os títulos dos livros milimetricamente emparelhados nas prateleiras abarrotadas em busca de algo que pudesse lhe ajudar a resolver seu impasse.
- “O Guia de Talmuth para a Invocação de Criaturas” – Leu ele em voz baixa enquanto, com algum esforço, sacava um livrinho de couro apertado em uma das prateleiras. Ele já pensara naquilo: talvez, com o devido esforço e paciência, ele seria capaz de invocar um elfo e manipulá-lo para que se infiltrasse entre os Cenath. Entretanto, como ele certa vez aprendera em um infeliz incidente envolvendo um urso e um diabrete de fogo, controlar criaturas vivas era imensamente mais trabalhos e desgastante do que fazê-lo com defuntos. E ele sabia muito bem que enviar um exército de esqueletos para a guilda dos druidas seria uma péssima ideia. Tem que existir alguma alternativa! Em momentos como aquele, 4669 sentia saudades da imensa e completíssima biblioteca da Necrópole, onde ele muito provavelmente poderia encontrar respostas, a menos, é claro, que fosse interrompido pelo bom-humor de 486486.
Lentamente, 4669 desviou o olhar do livro que ainda segurava e devolveu-o ao seu lugar, enfiando-o entre dois outros muito maiores e mais gordos. Ou, pelo menos era isso que ele pretendia fazer. No instante em que ele ergueu os olhos para fitar o espaço entre os dois volumes, 4669 percebeu que um par de olhos escuros encravados em um rosto sorridente o observavam fixamente do outro lado da estante. Diante da visão inesperada, o desastrado quase-humano soltou uma exclamação audível e deu um salto para trás, atingindo a prateleira às suas costas com o corpo e fazendo-a balançar por alguns segundos, acarretando na queda de alguns livrinhos e no deslocamento de outros tantos. Como resultado, a bibliotecária, uma elfa velhíssima e de expressão muito severa, lançou-lhe um penetrante olhar do mais puro desprezo, o qual ele sustentou enquanto tentava recuperar o fôlego e o equilíbrio.
- Tudo bem, tudo bem! Eu vou ajudá-lo com a bagunça! – Disse a voz grave do dono dos olhos responsáveis pela confusão, um druida alto, de ombros largos e pele morena, que surgia de trás da estante que até há pouco era estudada por 4669, tentando controlar suas risadas. Quando o viu penetrando no corredor e caminhando em sua direção, 4669 sentiu uma vontade súbita de atirar o livrinho de couro na sua cabeça. Enquanto ele falava, 4669 repentinamente sentia que suas pernas derretiam de uma forma imprevista. – Viu só? Você é hilário mesmo, exatamente como eu disse!
- E você é irritante, exatamente como eu previ. – Retrucou 4669 de má vontade enquanto batia o pó das roupas e virava-se para encarar a estante que atingira, tentando identificar todos os livros que haviam saído do lugar graças ao seu surto. Sua respiração, acelerada em virtude do susto que levara, ainda não voltara ao normal, tal qual sua pulsação. Além disto, ele sentia um incomum formigamento espalhando-se pelas pontas dos seus dedos, e ele sua testa começara a suar. – O que você veio fazer aqui?
- Bom... Estamos em uma biblioteca pública, então só existe uma coisa que eu poderia ter vindo fazer, e seria algo como ler ou coisa parecida...
- Eu não estou com tempo para piadas! – Ele respondeu rispidamente enquanto cortava a fala do druida. O outro, entretanto, apenas alargou o sorriso, que agora parecia estar contaminando também os seus olhos, como alguma forma de doença infecciosa altamente contagiosa. Talvez 4669 estivesse começando a pegá-la também, porque ele não conseguia deixar de sentir que seus lábios involuntariamente curvavam-se para cima, denunciando o que ele realmente sentira ao ver Ícaro parado na sua frente. Que sujeito mais desagradável, puta que pariu!
- Engraçado ouvir isso vindo de você...
- E olha só a bagunça que você fez! – Ele sibilou ao perceber que a bibliotecária ainda o encarava com uma expressão homicida, muito provavelmente em virtude do volume com o qual ele falava. Humano desgraçado! – Por que você me assustou? Eu poderia ter tacado fogo em você!
- Não foi intencional. – A cada nova frase cuspida com raiva em sua direção, o sorriso de Ícaro apenas se alargava. Ele abaixou-se e começou a recorrer alguns dos livros largados pelo chão, enquanto 4669, à contragosto, arrumava alguns que haviam deitado na prateleira imediatamente à sua frente. – Desculpe se te peguei de surpresa. Eu não achei que você fosse erguer os olhos naquela hora. Eu estava só... te observando.
4669 sentiu então uma curiosa sensação no peito que ele não foi capaz de identificar, como se seu coração tivesse parado por alguns instantes antes de lembrar-se de continuar a desempenhar sua importantíssima função. Subitamente, as pontas dos seus dedos ficaram frias como gelo e ele sentiu alguma dificuldade em se mover.
- Como é? – Ele murmurou enquanto desviava o foco da sua tarefa. Ícaro ergueu-se e depositou alguns livros nos espaços vagos na prateleira diante deles, virando o rosto para encará-lo com uma expressão travessa no rosto, como uma criança que acabou de ser apanhada fazendo alguma traquinagem.
- Eu estava te observando. – Ele repetiu enquanto voltava a encarar os livros e a procurar os lugares exatos em que cada um deveria ficar. – Eu sei que isso soa esquisito, mas, para ser sincero... Não foi a primeira vez. Te vi dando umas voltas pela floresta nos últimos dias e... Meio que fiquei de olho, sabe.
O feiticeiro então sentiu sua boca secar repentinamente, seguido de uma espécie de comichão no fundo da garganta, e logo tratou de desviar o olhar do humano e voltar aos seus afazeres, como se cortar o contato visual fosse uma forma eficaz de ignorar os estranhos pensamentos que agora lhe ocorriam.
- Por quê? – Ele apressou-se em dizer, procurando imprimir o máximo possível de descontentamento em sua voz, de modo a deixar claro que não havia possibilidade alguma de qualquer resquício de satisfação ter surgido em sua mente ao ouvir a confissão do druida.
- Por que você acha? – Ícaro fez uma pausa e voltou a encará-lo, cravando seus olhos castanhos nos dele e desmanchando o sorriso pelo que pareceram algumas eternidades. 4669 quase podia sentir o calor que emanava do corpo dele enquanto engolia em seco e dava alguns passos para longe, como se quisesse atravessar a parede de madeira e sumir dali o mais rápido possível. A súbita seriedade do druida transformava o seu rosto de uma forma desagradavelmente cômoda ao olhar. – Por causa do seu braço, é lógico! Fiquei preocupado. Como anda aquela dor?
Foi apenas quando Ícaro recomeçou a falar que 4669 se deu conta de que estivera prendendo a respiração. O druida disse aquelas palavras de forma tão casual e, ao mesmo tempo, íntima, como se ambos fossem conhecidos há eras, que 4669 não pôde evitar a sensação de desconforto que ia lentamente se apossando de seu cérebro.
- Sumiu. – 4669 disse, tentando manter o ar de casualidade. Mas aquilo era mentira. Ainda na noite anterior, após regressar ao seu estado original, enquanto ele mais uma vez executava seu feitiço de transmutação, ele sentiu uma forte fisgada no segundo tentáculo esquerdo, o que ficava no topo, a qual lhe indicava que os ferimentos ocasionados pela sua queda persistiriam em sua forma verdadeira. Me pergunto se isso vai trazer alguma consequência no futuro... Alguns feitiços de cura depois e 4669 passou a se esforçar para ignorar os rápidos momentos de dor, torcendo para que ele eventualmente conseguisse esquecer-se da fratura no braço-tentáculo.
- Tem certeza? – Retrucou Ícaro, cético. Ele novamente interrompera sua atividade para encarar 4669 com uma expressão séria no rosto. – Podemos tentar mais algumas runas... Andei lendo algo sobre ervas curativas usadas pelos elfos. Acho que posso preparar uma poção ou coisa parecida... Talvez eu possa perguntar a algum druida mais qualificado o que fazer...
- Não será necessário. – Mais uma vez, 4669 cortou a fala do humano e evitou olhar em sua direção, continuando a organizar os livros nas prateleiras. Um estranho caroço surgiu em sua garganta, e pareceu-lhe que ele sufocaria se continuasse ali conversando com o outro por mais muito tempo. Eu só queria segui-lo, só isso. Nada de interações. Seguir, apenas. – Você já... hm... Você já fez o bastante. Não precisa interferir mais.
Nos minutos seguintes, perdurou um longo e desconfortável silêncio no qual o druida se pôs a observar o Bonelord, sua expressão facial contaminada com os tons de preocupação que, ao mesmo tempo, tanto irritavam e intrigavam o feiticeiro.
- Que é? – Indagou 4669 quando achou que não poderia mais sustentar aquele silêncio ridículo. Por que ele não para de olhar para mim? Tire esses olhos de cima de mim! Ele, entretanto, não tinha certeza absoluta se desejava mesmo que aquilo acontecesse.
- Você não precisa fazer isso, sabe. – Murmurou Ícaro com simplicidade enquanto fitava o outro com algo que 4669 identificou como piedade. Subitamente, sua irritação, até então mantida quieta e presa no fundo da sua mente, libertou-se de sua gaiola e começou a passear nos espaços vagos do seu cérebro.
- Isso o quê? – Ele sibilou entre os dentes enquanto tentava o máximo para resistir ao impulso de acertar a estante na cabeça do seu colega de arrumação.
- Eu já disse que não é incômodo nenhum pra mim nem nada parecido... – O druida deu de ombros e voltou a organizar seu lado da estante, o qual estava infinitamente melhor arrumado que o de 4669. – Eu só... Me preocupo. Com seu estado de saúde, claro. Você levou um tombo e tanto e eu só acho que você deveria se cuidar mais e...
4669 então largou um livro particularmente pesado na prateleira com um baque surdo, calando Ícaro e fazendo com que a prateleira tremesse por inteiro. Ao ouvir o som, a idosa bibliotecário disparou um novo olhar de desgosto em sua direção, o qual ele prontamente ignorou. Em um movimento súbito e decidido, ele virou-se para ficar cara a cara com o druida, que pareceu ter percebido que dissera algo que não devia.
- Pois eu não preciso da sua preocupação, druida. – Ele disse com raiva enquanto apunhalava Ícaro com seu olhar, tentando soar o mais ameaçador que podia. Ícaro retribuiu com um olhar levemente culpado, o que apenas contribuiu para que sua raiva crescesse. – Eu não preciso da sua ajuda. Eu sei me virar muito bem sozinho!
- Você não precisa ser tão mal agradecido assim, sabia? – Disparou Ícaro, engolindo seu choque inicial e devolvendo um olhar furioso ao feiticeiro. Havia uma espécie de mistura de emoções confusas em seu rosto, como se ele estivesse ofendido, ferido, culpado e raivoso, tudo ao mesmo tempo. – Eu salvei a sua vida, lembra? Só estou tentando assegurar que você está bem e...
- Eu não devo absolutamente nada a você, criatura, e nem por um segundo se atreva a pensar o contrário! – E, dizendo aquilo, 4669 deu a volta em Ícaro e saiu do meio das estantes, sem entender realmente de onde viera sua fúria repentina e o que o estava levando a agir com tamanha rispidez. Ignorando o olhar enfurecido da bibliotecária e os protestos do druida, que pareceu acompanhá-lo para fora do apertado espaço entre as estantes, ele acelerou o passo e começou a torcer para que o som dos seus sapatos colidindo com o assoalho pudesse calar as vozes na sua cabeça.
- Dagobald, espera! Eu não quis te ofender! – Ele ouviu o druida dizendo enquanto caminhava apressado na direção da escadaria que levava ao andar debaixo, de onde ele poderia sair da biblioteca e sumir na floresta. Enquanto ele corria, ele sentia seu coração batendo mais rápido, sua respiração furiosa quase rasgando seu peito e sua mente ardendo em brasa por motivos que ele não conseguia compreender muito bem. Subitamente, não lhe pareceu mais uma ideia tão boa continuar a ter qualquer tipo de contato com aquele humano.
***
- Utevo gran lux – Ele murmurou pela milionésima vez naquela jornada. As palmas das suas mãos piscaram algumas vezes antes de estabelecerem um contínuo brilho amarelado, o qual inundou sua visão e permitiu que ele voltasse a enxergar a trilha com algum nitidez. Agora ele mais uma vez conseguia discernir as paredes de pedra cinzenta e rústica, cobertas de teias de aranhas e marcas de garras e o chão de terra seca e quebradiça, que levantava pequenas nuvens de poeira a cada passo que ele dava. À sua frente, havia apenas a invencível escuridão da caverna, na qual sua luz mágica não conseguia penetrar com eficácia. O caminho diante dele permanecia, de modo geral, um grande mistério.
Eu preciso continuar caminhando, ele pensou enquanto esforçava-se para prosseguir. Ele já perdera as contas de quanto tempo fazia desde que deixara a superfície e penetrara nos terrenos proibidos do Inferno. De início, o relógio de pulso que ele levava consigo servira-lhe bem, mas após três dias de viagem, o objeto parara subitamente, evento que Batráquio tentara explicar com base no aumento da pressão e do calor exercidos pela proximidade com os rios de lava que corriam por aquele lugar. Desde então, não importa realmente quanto tempo fazia, ele estava completamente sem uma referência temporal. Poderia ter se passado um dia desde o incidente do relógio, poderiam ter se passado vinte. E, a cada novo dia - ou hora, ou minuto - ele sentia que seu corpo ia lentamente sucumbindo às pressões exercidas pelo Inferno. Já fazia muito tempo desde que ele fora embora dali, e ele sentia que não estava mais adaptado a permanecer por muito tempo naquelas condições. Sobretudo devido à sua forma atual.
O calor e a sensação de abafamento eram quase insuportáveis, e pareciam apenas crescer conforme Batráquio se movia em direção às profundezas daquele lugar funesto. Ele sentia suas vestes empapadas de suor, o qual pingava pela sua testa, suas têmporas, suas mãos, seu pescoço. Sua visão de quando em quando embaçava-se com o esforço que ele empregava em enxergar naquela escuridão, e seus pulmões e veias pareciam prestes a entrar em combustão de tanto trabalho que estavam tendo para manter-se funcionando. Sua pele e seus ossos já sentiam falta dos raios dos sóis, e seus lábios clamavam por uma inesgotável fonte de água fresca que ele sabia que jamais chegaria em um lugar como aquele. Suas pernas pareciam pesar o dobro do que efetivamente pesavam, e erguê-las para caminhar era um luxo ao qual ele não conseguia mais se permitir.
Eu vou morrer aqui, ele deixava-se pensar em momentos como aquele. De início, quando ele começou sua empreitada, as coisas pareceram promissoras. Os caminhos eram iluminados por archotes espalhados aqui e ali, o terreno não era tão íngreme, o abafamento não era tão intenso e os poucos inimigos que ele encontrava pelo caminho eram apenas esqueletos débeis, os quais ele facilmente conseguia aniquilar sem grande esforço. Suas provisões pareciam intermináveis, tal qual sua força de vontade e certeza de que tudo daria certo no final. Entretanto, após sabe-se lá quanto tempo de viagem, Batráquio já começava a duvidar de que seria capaz de cumprir a promessa que fizera a Eliseu quando o deixara com Elathriel. Puta merda, Eliseu, como seria bom ter um pouquinho de apoio aqui agora! Ele sabia, no entanto, que seu fiel companheiro de viagem jamais suportaria as condições extremas daquele lugar. Ele está melhor lá em cima... Ele ficará melhor lá... Se eu não voltar... Quando eu não voltar...
Ele jamais admitiria aquilo para si mesmo, mas ele desejava ardentemente encontrar uma saída dali. Naquele instante, tudo que ele mais queria era ignorar seus objetivos imbecis e orgulhosos e dar meia volta. Ele já não aguentava mais aquela sensação constante de claustrofobia, aquela escuridão interminável, a maldita consistência molenga e insossa dos cogumelos que ele trouxera para comer e a forma como as poucas garrafas de água que ele ainda possuía pareciam queimar sua boca a cada gole que ele dava. Foda-se a Necrópole, foda-se o Conselho, foda-se 1593, foda-se essa merda toda! Pensava ele quando já não mais conseguia manter o controle dos seus pensamentos. Eu quero ir embora... Eu quero voltar... Ele sabia, entretanto, que não era possível simplesmente virar as costas e fazer o caminho de volta. Não apenas porque ele não seria capaz de se lembrar da trilha que fizera até aquele ponto, a qual custara-lhe muitos dias para encontrar. Batráquio sabia muito bem que a única forma de sair dali era atravessar a Necrópole e encontrar um portal mágico que o conduziria de volta à superfície. É preciso... Seguir em frente...
Então, sem aviso, suas pernas enrolaram-se uma com a outra, uma súbita sensação insuportável de vertigem atingiu-o e ele se viu desabando em direção à terra. Instintivamente, ele ergueu os braços para amparar sua queda, mas foi devagar demais; em segundos, o feiticeiro atingiu o chão amparado apenas por um dos cotovelos e pela testa, os quais começaram imediatamente a latejar fervorosamente. Em seguida, enquanto gemia de dor, ele rolou o corpo para o lado e sentiu-se colidir com a parede de pedra da caverna, provocando uma pequena avalanche de poeira e pedrinhas no seu rosto. Uma espessa nuvem de terra ergueu-se do solo com sua queda, a qual ele tentou debilmente afastar com a mão sadia enquanto tossia seus pulmões para fora. O tombo também cancelara seu feitiço de luz, e ele agora jazia estirado no chão, no mais completo escuro, arfando como um doente terminal e sentindo suas forças esvaindo-se pelas pontas dos seus dedos. Eu vou morrer aqui, ele pensou mais uma vez enquanto sua mente mergulhava no torpor. Eu achava que seria... Mais fácil... Achei que era... Meu destino... Voltar... A escuridão, se é que aquilo era possível, parecia intensificar-se a cada segundo. Ele sentia como se alguém estivesse pressionando seu pescoço, sufocando-o lentamente. Talvez eu estivesse... Enganado...
Ele estava flutuando. Ele não sabia exatamente como tinha consciência daquilo; ele sabia apenas que tinha. Ele estava de olhos fechados, mas tinha certeza de que estava flutuando no céu: uma gélida e agradável brisa gentilmente passava pelos seus cabelos e pelas porções de pele descoberta do seu corpo, e ele sentiu o morno beijo dos sóis sobre sua pele, envolvendo-o e possuindo-o. Ele não podia deixar de sorrir. Eu estou livre, pensou Batráquio enquanto deixava-se inebriar pelo vento e pela luz dos sóis. Ele jamais saberia como havia conseguido escapar do lugar hediondo onde estivera há pouco, tampouco como fora parar ali ou sequer onde era ali. Ele sabia apenas que estava seguro. Que estava bem. Nada de mal pode me atingir aqui! Ele voava, e a sensação era maravilhosa; e assim ele permaneceu pelo que pareceram eternidades. Eternidades de luz e alegria e liberdade e alívio. Então, ele sentiu duas mãos pesadas agarrarem as laterais da sua cabeça e a agitarem com força, como se quisessem arrancá-lo de um transe profundo.
- Dago! Acorde, Dago! Você precisa acordar! – Disse uma voz forte e envolvente em algum lugar do espaço infinito ao seu redor. Relutantemente, Batráquio abriu os olhos e se viu sentado em uma caverna escura e fétida, diante de um homem alto, forte, de pele morena, cabelos negros e olhos castanhos escuros, com um sorriso cálido e reconfortante. Seu coração deu um pulo ao reconhecê-lo.
- Í-Ícaro? – Ele gaguejou, sentindo-se envergonhado diante do tom suplicante e fraco da sua voz. Não pode ser!
- Claro que sou eu! Sou sempre eu que tenho que aparecer pra te salvar, não é? Não seria a primeira vez! – Disse o druida enquanto abria um largo sorriso, como era de seu costume, e ficando com uma expressão adorável e juvenil no rosto.
- Mas... O que... Como...? – Batráquio apenas balbuciava as palavras, sem ter controle ou ciência do que estava dizendo. Sua cabeça parecia pesada e ele ocasionalmente tinha a sensação de que a caverna estava rodopiando. A maravilhosa sensação de voar, entretanto, havia desaparecido.
- Você precisa se levantar e seguir em frente, Dago. Você sabe que precisa! – Disse Ícaro com veemência enquanto deslizava as mãos das laterais do rosto do feiticeiro para seus ombros, os quais ele apertou com firmeza. – Você já chegou tão longe, não pode desistir agora. Você sabe o que tem que fazer, e é preciso se apressar! Você não vai aguentar mais muito neste lugar. Você não pertence mais a ele, Dago, e você sabe disso. Faça o que tem que fazer e aí sim vá embora!
- Ícaro... Eu não posso... Você não... Como... – Nada disso faz o menor sentido! Dizia uma vozinha no fundo da sua mente. Ainda há pouco ele tivera a certeza de estar voando, de estar livre... Como ele poderia estar de volta àquele horror, ainda mais com aquela companhia tão inesperada? Entretanto, mais do que tudo, ele queria acreditar no que Ícaro estava dizendo. Mais do que tudo, ele queria acreditar que Ícaro estava mesmo parado diante dele, naquele fim de mundo, dizendo-lhe palavras de incentivo.
- Auto-piedade não combina com você, meu amigo. – Insistiu o druida enquanto tirava as mãos de cima do outro e as pousava sobre seus joelhos. Apesar do estado deplorável do feiticeiro à sua frente e do calor absurdo que fazia, sua expressão de felicidade e confiança não havia se alterado. – Você precisa se levantar agora e seguir em frente. Você já está quase lá! Mais um pouco e você chegará à Necrópole!
Ele está certo, dizia-lhe uma outra vozinha na sua cabeça. Não é hora para desistir agora, 4669! Você precisa terminar o que começou ou nunca mais vai ter paz na vida! Sua vontade, contudo, era calar aquela vozinha e fechar os olhos para dormir e ignorar tudo aquilo.
- Mas como pode... Você aqui... Ícaro, eu achei que você estava... – Ele engoliu em seco e sentiu sua garganta arder enquanto deglutia a palavra que ele evitara dizer. A palavra que ele evitava dizer havia tantos anos. Ícaro, no entanto, apenas alargou ainda mais seu sorriso ao ouvir aquela frase, como se estivesse esperando por ela o tempo todo.
- E estou. – Ele disse com firmeza, sem qualquer resquício de mágoa, tristeza ou qualquer outro sentimento negativo. Seu sorriso não vacilava, e seus olhos pareciam brilhar mais do que nunca. – Mas isso não me impede de estar aqui, impede?
Mas havia mesmo algo errado. Tão logo ele terminara de dizer aquilo, o druida parecera tremeluzir no ar, e seu corpo, que até então transmitia a costumeira sensação de calor e aconchego, passara a transmitir um frio sepulcral e doentio, o qual começou a subir pela pele do feiticeiro e a arrepiar os pelos da sua nuca. Seus olhos, então, tornaram-se escuros como a própria caverna, e do que agora eram suas órbitas vazias começaram a escorrer filetes de um sangre assustadoramente escuro, espesso como piche, e logo a mesma substância escura começava a escorrer dos seus lábios, que pareciam balbuciar algum pedido de socorro ininteligível. Ícaro então tremeu e desabou para frente, despencando sobre Batráquio e enterrando seu rosto em seu peito. Em suas costas, distinguia-se a visão de uma única faca escura longa e nodosa, que jazia cravada entre as suas omoplatas.
Tomado do mais puro horror, Batráquio preparou-se para soltar um urro de desespero que jamais chegou a sair, enquanto lutava para se arrastar para longe do cadáver, que agora convertia-se em uma grande poça daquele sangue pitoresco. A parede de pedra às suas costas, entretanto, impedia que ele escapasse, e seus membros pareciam pesados como ferro, limitando seus movimentos. O sangue escuro e viscoso começou a subir pelas suas roupas, e ele sentiu uma forma de medo que até então ele provara apenas uma vez no passado.
- Você não pode me vencer. – Soou a fantasmagórica voz de uma mulher em algum lugar naquele horror delirante. Ele tentou se desvencilhar daquela substância nefasta mais uma vez enquanto seus olhos fugiam do seu controle e fixavam-se em uma silhueta inexplicavelmente visível em meio ao breu. Aparentava ser uma mulher alta, esguia, de porte atlético e longos cabelos que serpenteavam às suas costas como um caudaloso rio. A única coisa visível com perfeição naquele vulto eram seus olhos dourados estranhamente gelados. Ela girava distraidamente em suas mãos algo terrivelmente semelhante à faca que ele acabara de ver atravessada nas costas de Ícaro. – Não importa o que você faça, você não pode me vencer.
Um frio insuportável tomou conta de sua espinha, e ele sentiu que iria enlouquecer.
- EU MATEI VOCÊ! – Batráquio urrou com todas as suas forças enquanto o sangue escuro paralisava suas mãos. Todas as partes do seu corpo que ainda estavam expostas tremiam incontrolavelmente, e sua voz estava vacilante tamanho era seu pavor. A escuridão parecia cada vez mais intensa, e a cada segundo que passava ficava mais difícil para ele respirar. – EU MATEI VOCÊ NO DESERTO HÁ MUITO TEMPO! EU ACABEI COM VOCÊ, SUA DESGRAÇADA, EU TE MATEI!
- Você não pode me vencer. – Repetiu a mulher com sua voz venenosa, com ares de riso. Sua presença parecia contaminar toda a caverna, como se ela e a escuridão fossem uma só entidade. Ela girava a faca em suas mãos cada vez mais rápido, como se tivesse feito aquilo sua vida inteira. – Não importa o que você faça.
- EU TE MATEI, DESDÊMONA! – Batráquio gritou com o que lhe restava de voz, sentindo sua garganta rasgando enquanto sua ira era extravasada por aquele canal. Ele estava quase totalmente coberto pelo sangue que jorrara do druida.
- E, mesmo assim, a vitória ainda é minha. – Ela falou com calma. – Você tirou de mim a vida, e de ti eu tirei algo ainda mais importante. Eu venci. E você sabe.
O sangue tapou-lhe a boca antes que ele pudesse gritar mais alguma coisa, e a última coisa que ele teve consciência de ver antes de ter seus olhos cobertos foi o olhar penetrante e debochado de Desdêmona, que encarava-o triunfantemente do outro lado da caverna, com a faca nas mãos e o sangue maldito de Ícaro dançando ao seu redor como um rodamoinho.
Ele despertou com a sensação de que seu coração iria escapar do peito, e automaticamente arremessou o corpo para frente com uma disposição que ele não sabia que ainda tinha. Se era possível, ele estava ainda mais suado, e seu peito ardia em brasa com ainda mais intensidade. Seus cabelos estavam grudados na testa e suas roupas cobertas de terra. Enquanto o mundo ao seu redor entrava em foco, Batráquio sentia o coração acalmar-se. Foi um pesadelo. Foi só isso. Um pesadelo. Não era o primeiro que ele tinha desde que entrara nas profundezas do Inferno. De alguma forma, ele sentia que aquele lugar maldito era capaz de farejar seus medos e identificar os maiores traumas no fundo da sua mente apenas para ter o prazer de usá-los contra ele quando ele estivesse vulnerável.
Quanto tempo eu estive desacordado? Instintivamente, ele levou o braço direito em direção do rosto, baixando os olhos para procurar o visor do reloginho de pulso, apenas para se dar conta de que os ponteiros continuavam estatizados. Ele jamais saberia quanto tempo dormira. Não posso continuar perdendo tempo assim. Trêmulo, ele reuniu o que lhe restava de força e muito vagarosamente ergueu-se do chão, usando a parede como apoio. Uma vez em pé, Batráquio tateou pelas costas até encontrar um dos bolsos laterais da mochila, do qual sacou um pequeno vidrinho preenchido com uma substância rosada que parecia brilhar de forma incandescente em meio ao escuro da caverna. Em um movimento que exigiu-lhe mais esforço do que o previsto, ele destampou o frasco e o levou aos lábios, tragando seu conteúdo de uma vez só. À medida que o adocicado e espesso conteúdo do frasco descia pela sua garganta, o feiticeiro já ia sentindo seus sentidos ficarem mais aguçados, sua mente clarear e sua energia aumentar. Ele então jogou o frasquinho fora e se virou lentamente para observar o caminho à sua frente.
- Utevo gran lux. – Ele murmurou mais uma vez após soltar um longo e pesaroso suspiro. Foi só um pesadelo. Desdêmona está morta... E Ícaro também. Uma tristonha sensação de desamparo brotou em seu peito, aninhando-se ali como uma velha amiga. Tentando afastar a imagem sorridente do druida que ele um dia conhecera, a qual ele ainda conseguia lembrar-se com perfeição, Batráquio recomeçou sua caminhada, sentindo-se ao mesmo tempo mais energizado e mais fraco do que jamais estivera em sua vida.
***
Após o que pareceram eternidades, Batráquio finalmente começou a notar as mudanças no terreno ao seu redor. As paredes pareciam ficar cada vez mais altas, ampliando a sensação de desolação que ele já sentia devido ao escuro do seu campo visual; o chão de terra gradualmente se convertera em uma areia preta espessa e estranhamente cálida, como se tivesse acabado de ser expurgada da boca de um vulcão; a atmosfera fora consumida por um cheiro pútrido de matéria orgânica em decomposição e parecia ter atingido a temperatura mais alta que seu corpo podia superar. O terreno, de modo geral, tornara-se mais desafiador ao seu andar cansado, mas pelo menos ele enfim sentia que o caminho estava ficando mais plano e que ele parara de descer.
Foi só um pesadelo, droga! Pare de pensar nisso! Ele não fazia ideia de quanto tempo se passara desde seu mais recente pesadelo envolvendo seu passado, mas ele ainda não conseguira afastá-lo da cabeça. Desde que regressara a Ab’Dendriel, ele já se acostumara a sonhar com Desdêmona ameaçando-o de alguma forma ou provocando-o com sua língua viperina. Aquela, entretanto, fora a primeira vez em meses – não, em anos – que ele sonhara tão nitidamente com Ícaro. Apenas a lembrança das suas feições e da sua voz já eram o bastante para fazer com que sua espinha tremesse, e ver sua maior inimiga logo em seguida brincando com uma faca apenas contribuíra para o aumento da sensação de vazio em seu peito que o acompanhava desde que ele atravessara o portal da cidade. Eu gostaria de não sonhar mais com ele... Ele pensava mesmo sabendo que estava mentindo para si mesmo. Pelo menos com ela eu realmente gostaria de parar de sonhar.
Um ruído abafado arrancou-o de seu devaneio, forçando-o a voltar sua atenção para o trecho da caverna em que ele se encontrava. Não era particularmente diferente de nenhum dos outros quilômetros recentes que ele percorrera, mas algo nas pedras e na areia daquele local lhe parecia estranhamente familiar. Seu coração começou a bater depressa enquanto ele tentava enxergar além do seu feitiço de luz vacilante, procurando algo que o ajudasse a confirmar suas suspeitas. Entretanto, um novo ruído ali perto pegou-o de surpresa, desviando sua atenção da escuridão à sua frente.
- Utori flam! – Ele exclamou após dar um pulo para trás quando um movimento rápido e inesperado pegou-o desprevenido à sua esquerda. Ele apontou a mão correspondente para o local de onde ele supunha ter surgido aquela estranha movimentação, e, instantes depois, uma explosão de chamas surgiu do nada, envolvendo algo que assemelhava-se muito a um corpo apodrecido e carcomido, o qual guinchava histericamente enquanto seus restos pútridos eram consumidos pelas chamas. Decorridos alguns segundos, o ghoul pareceu se entregar, e o que restara de seu corpo despencou a apenas alguns centímetros diante de Batráquio, enquanto uma coluna de fogo dançava animadamente no local onde ele desfalecera.
Merda de ghoul do caralho! Batráquio pensou enquanto tentava se recompor do susto. Entretanto, seu alívio durou pouco: logo à sua frente, além da torre de fogo que já começava a minguar, ele agora conseguia discernir os movimentos trôpegos e incertos do que parecia ser um exército de ghouls. Os defuntos arrastavam-se pela areia preta, chocando-se ocasionalmente uns com os outros, gemendo constantemente e estendendo seus braços cinzentos e podres na direção do feiticeiro, como se quisessem arrastá-lo com eles para o fundo da terra.
- Bosta. – Ele murmurou impaciente enquanto dava alguns passos para trás e tentava pensar em um plano de ação. Era realmente muita sorte que ele tivesse acabado de comer mais uns quatro cogumelos molengas que guardara e de beber mais um frasco de sua poção rosada, a qual contribuíra significativamente para a melhora do seu estado deplorável anterior. Os ghouls avançavam lenta, porém decididamente, e estavam em um número tão grande que parecia haver um número infinito deles. – Ah, vão se foder! Exori vis! Exori flam! Exevo flam hur!
Batráquio disparou primeiro uma bola de energia azulada da mão esquerda, depois uma bola de fogo incandescente da direita e, por fim, um cone de chamas das duas mãos juntas, todos na direção dos defuntos. Uns dois ou três cadáveres foram atingidos e despencaram no meio da multidão. Os demais, entretanto, pareceram entender a ameaça iminente, e puseram-se então a correr em uma velocidade surpreendente na direção do feiticeiro, sedentos pela sua carne. Caralho! Em questão de segundos, o Bonelord preso num corpo humano se viu cercado pelos mortos-vivos, que literalmente passavam uns por cima dos outros para tentar alcançá-lo com seus braços nodosos e cravar suas garras afiadas em sua pele.
- Exori vis! Exori flam! Me larga, seu saco imundo de minhocas! Exevo flam hur! – Batráquio disparava ataques mágicos para todos os lados, quase sempre acertando alguma coisa. Entretanto, os ghouls pareciam determinados a arrastá-lo para o túmulo, pois, mesmo após serem atingidos, muitos ainda resistiam e voltavam a agarrar suas pernas e seus braços, como se tentassem roubar cada pedaço do seu corpo para si. Logo, ele se viu obrigado a abandonar a magia e a começar a chutar e socar os defuntos para se livrar das suas mãos. Após uma investida particularmente violenta de um deles, Batráquio sentiu um arranhão fundo ser talhado em seu braço direito, arrancando-lhe uma generosa quantidade de sangue e um gemido agudo de dor. Voltando-se para o agressor, ele enfiou seu cotovelo esquerdo em sua cabeça, e depois virou-se para o outro lado, atingindo um dos pés no peito de um segundo ghoul, que, vacilante, deu alguns passos para trás e tropeçou sobre o corpo inerte de um companheiro, caindo para trás e erguendo uma nuvem de poeira fétida ao despencar.
Não demorou a ficar claro para o feiticeiro que aquela batalha não seria ganha daquela forma. Em um movimento rápido, ele se abaixou quando dois ghouls lançaram-se sobre seu corpo, fazendo com que os dois se chocassem no ar e caíssem sobre um outro, provocando uma comoção que lhe deu tempo de rolar para fora do círculo de mortos-vivos e erguer-se aos tropeços enquanto ele corria longe. Quase imediatamente, os cadáveres reanimados por magia se deram conta de que seu alvo não estava mais no meio deles, e então viraram-se ameaçadoramente para a direção na qual ele correra, guinchando audivelmente e de forma atemorizante.
- Vão pra puta que pariu, seus imbecis! – Ele disse, ofegante, enquanto sacava uma pedrinha avermelhada de um dos bolsos das vestes e a atirava com toda a força na direção das criaturas, que agora corriam o mais rápido que suas pernas decompostas permitiam. A pedrinha acertou um deles na cabeça, e, assim que o fez, explodiu, liberando uma imensa bola de fogo, a qual ribombou intensamente naquele espaço limitado e consumiu os ghouls restantes com uma rapidez exemplar, deixando para trás apenas os restos fumegantes de um punhado de cadáveres ao desaparecer segundos mais tardes. Enquanto a bola de fogo ardia, Batráquio se viu obrigado a se abaixar para fugir das chamas e a cobrir os olhos com a capa para proteger-se da súbita luminosidade excessiva. Como resultado da explosão, a caverna inteira estremeceu por alguns instantes, e largas quantidades de poeira e pedrinhas desmoronaram do teto no local onde Batráquio arremessara a runa. - Eu não queria ter apelado para isso, mas vocês me obrigaram, seus bostas!
Lentamente, e soltando um audível suspiro, o feiticeiro deu as costas ao túnel de pedra e virou o corpo para seguir sua caminhada, apenas para se dar conta de que finalmente chegara ao fim daquela trilha. As paredes de pedra, que até então limitavam um espaço relativamente estreito de uns três metros de espessura, haviam agora se expandido repentinamente em uma larga abertura, cujo fim ele não era capaz de identificar em nenhum direção. As areias negras que cobriam o solo pareciam se fundir com o escuro do topo da caverna no horizonte, formando um único e homogêneo véu de penumbra cortado aqui e ali por alguns archotes ou por rios e lagos de lava que brotavam do chão, das paredes e do teto. Logo à sua frente, apenas sua silhueta visível na tênue luz do local, Batráquio conseguia definir uma gigantesca estrutura piramidal escura construída com algo que assemelhava-se a ossos dos mais variados tamanhos. Se forçasse seus olhos, ele conseguiria encontrar mais uma ou duas edificações colossais e morbidamente arrebatadoras como aquela em seu campo visual.
Entretanto, ele não precisava enxergar direito naquela escuridão para saber exatamente como eram aquelas construções, tampouco para saber quantas eram ou onde ficavam especificamente. Ele não precisava de luz para identificar o local onde ele havia acabado de chegar. Não importava o tempo que havia se passado desde a sua última visita; Batráquio sabia que seria capaz de reconhecê-la e de se lembrar com perfeição de cada detalhe de sua arquitetura sempre que a visse novamente. Ele também não precisava de luz ou de uma visão melhor para visualizar as dezenas de olhinhos e os poucos olhos maiores que agora começavam a surgir em meio às trevas, seus corpos ainda pouco visíveis, procurando aquele que produzira a explosão que os distraíra de seus afazeres. Batráquio sentiu um tranco intenso nas vísceras e uma espécie de nervosismo que ele achava que não era mais capaz de sentir, e, apesar do calor intenso que fazia, ele sentiu frio.
4669 finalmente estava de volta à Necrópole.
Batráquio atravessa a entrada da Necrópole pela primeira vez em muitos anos
*música sertanoja mode on* (8)EÉÉÉÉÉÉÉ O AMOOOOOOORRRRR.... QUE MEEEEXE COM A MINHA CABEEEÇA E ME DEEEEEIXA ASSIIIIMMMM(8) *música sertanoja mode off*
AHUEHUEHAUEHUEHH
Batráquio sofre demais gnt. Q tristeza. Como eu tomei uma metralhadora de spoiler, eu meio q n tenho muito o que comentar HAUEHAUEHAUUE
O que eu vou comentar é mais em termos técnicos então: suas descrições são impecáveis, cara. Impecáveis. Você tem uma facilidade de conseguir criar a ambientação e gerar uma catarse muito louca. Sério. Por isso não me incomodo com a "demora" nos capítulos: eu acho que você precisa levar o teu tempo pra postar tudo como quer postar. Não precisa rushar nada.
Eu gosto desse revezamento de passado com presente; coloca as coisas em uma perspectiva bem melancólica. Eu já te disse antes, e repito novamente: você escreve muito bem. Dá muito gosto de ler, mesmo sendo algo bem triste. A interação do Ícaro com o Batráquio me fez lembrar de como era o início de interação com o Ireas e o Wind; apesar da forma como o Ireas tratava ele era RADICALMENTE DIFERENTE de como o Batráquio tratou o Ícaro de início, o final da história de ambos foi bem parecido (impressionante, temos o gosto em comum e incomum de ferrarmos brutalmente a vida dos nossos personagens, ao menos no tocante desses dois em específico). Foi algo meio melancólico para mim por ter lembrado de algo que fiz quase cinco anos atrás. Aquela sensação de alegria e tristeza mistas, sabe?
A tia anda meio sensível, então ignora plox HAUEHUAEHUAE
Haha, das duas uma. Ou a bibliotecária não estava nem aí para a biblioteca,
Ou ela iria realocar todos os livros depois que eles saíssem. Bibliotecários não gostam que seus usuários recoloquem os livros nas estantes ;3
(Como bibliotecário que sou, me deu tremedeiras, haha).
Ícaro me lembro muito alguém. Risos.
Como a Iridium falou e eu também já, gosto da interpolação entre passado e presente, mas particularmente tenho gostado mais das interações passadas do B. Por motivos pessoais. Acho divertido o encabulamento dele diante do druída moreno, alto, bonito e sensual, haha.
"Estava te observando". Eu sempre acho umas referências absurdas de uns vídeos aleatórios que já vi quando me deparo com algumas frases, haha.
Gratz pelo capítulo. E eu burramente não achei a resposta para a pergunta da casa, haha.
Affe, sou tão incompetente ou é só desatenção?
Nóis se vê por aí (no próximo capítulo).
Postado originalmente por Iridium
Saudações!
*música sertanoja mode on* (8)EÉÉÉÉÉÉÉ O AMOOOOOOORRRRR.... QUE MEEEEXE COM A MINHA CABEEEÇA E ME DEEEEEIXA ASSIIIIMMMM(8) *música sertanoja mode off* (...)
A tia anda meio sensível, então ignora plox HAUEHUAEHUAE
Lembram quando a @Iridium disse que não se incomodava com a demora dos capítulos?
Então.
A culpa é dela.
Spoiler: Comentários
Postado originalmente por Iridium
Saudações!
*música sertanoja mode on* (8)EÉÉÉÉÉÉÉ O AMOOOOOOORRRRR.... QUE MEEEEXE COM A MINHA CABEEEÇA E ME DEEEEEIXA ASSIIIIMMMM(8) *música sertanoja mode off*
AHUEHUEHAUEHUEHH
Batráquio sofre demais gnt. Q tristeza. Como eu tomei uma metralhadora de spoiler, eu meio q n tenho muito o que comentar HAUEHAUEHAUUE
O que eu vou comentar é mais em termos técnicos então: suas descrições são impecáveis, cara. Impecáveis. Você tem uma facilidade de conseguir criar a ambientação e gerar uma catarse muito louca. Sério. Por isso não me incomodo com a "demora" nos capítulos: eu acho que você precisa levar o teu tempo pra postar tudo como quer postar. Não precisa rushar nada.
Rs.
Postado originalmente por Iridium
Eu gosto desse revezamento de passado com presente; coloca as coisas em uma perspectiva bem melancólica. Eu já te disse antes, e repito novamente: você escreve muito bem. Dá muito gosto de ler, mesmo sendo algo bem triste. A interação do Ícaro com o Batráquio me fez lembrar de como era o início de interação com o Ireas e o Wind; apesar da forma como o Ireas tratava ele era RADICALMENTE DIFERENTE de como o Batráquio tratou o Ícaro de início, o final da história de ambos foi bem parecido (impressionante, temos o gosto em comum e incomum de ferrarmos brutalmente a vida dos nossos personagens, ao menos no tocante desses dois em específico). Foi algo meio melancólico para mim por ter lembrado de algo que fiz quase cinco anos atrás. Aquela sensação de alegria e tristeza mistas, sabe?
A tia anda meio sensível, então ignora plox HAUEHUAEHUAE
E eu aguardo essas prints ae HAUEHUEHAUEHU
Abraço,
Iridium.
Gente mas que choradeira UISDHUIHFUIHUID Muito tenquiu pelo comentário, migs <3 Mesmo. Juro que preciso que alguém chegue aqui e diga 'ta um lixo se mata flwvlw' porque eu corro o risco de acreditar no que tu fala e achar mesmo que eu escrevo bem assim. Normalmente eu tenho a sensação de jogar umas palavras avulsas no texto e ver se fica bonito. Bem caótico-neutro mesmo rs. MAS ENFIM que bom que teu emocional tá fodido com essa história, eu perco parágrafos e parágrafos fazendo drama justamente pra isso <3 Mal posso esperar pra ver o estrago que ainda vou fazer contigo <3
Postado originalmente por Gillex Koehan
Haha, das duas uma. Ou a bibliotecária não estava nem aí para a biblioteca,
Ou ela iria realocar todos os livros depois que eles saíssem. Bibliotecários não gostam que seus usuários recoloquem os livros nas estantes ;3
(Como bibliotecário que sou, me deu tremedeiras, haha).
Confesso que quando eu escrevi a cena dos dois arrumando as prateleiras eu pensei mais de uma vez "como é que eles sabem o lugar correto de cada livro?", mas acabei afastando isso da cabeça pelo bem do drama homoerótico e porque achei que ninguém levaria a sério. Que gafe feia da minha parte, opa. HAHAJHFKGJ Perdão, Gilles, juro que não faço mais. Acho que vamos ter que acreditar que ela simplesmente era uma bibliotecária relapsa e infeliz que nunca conseguiu realizar seu sonho de ser aceita no The Voice Elves e acabou presa ali pro resto da vida. Tadinha.
Postado originalmente por Gillex Koehan
Ícaro me lembro muito alguém. Risos.
Como a Iridium falou e eu também já, gosto da interpolação entre passado e presente, mas particularmente tenho gostado mais das interações passadas do B. Por motivos pessoais. Acho divertido o encabulamento dele diante do druída moreno, alto, bonito e sensual, haha.
"Estava te observando". Eu sempre acho umas referências absurdas de uns vídeos aleatórios que já vi quando me deparo com algumas frases, haha.
Gratz pelo capítulo. E eu burramente não achei a resposta para a pergunta da casa, haha.
Affe, sou tão incompetente ou é só desatenção?
Nóis se vê por aí (no próximo capítulo).
Eu tenho mesmo dado um peso maior nos flashbacks, pelo menos por enquanto, principalmente pra contextualizar melhor o conflito e 'justificar' a personalidade do Olhudo. Mas também porque amo esse ship e sofro horrores com ele. Espero que as interações futuras dos dois não decepcionem!
Vamos de capítulo novo, então? Não me recordo se já havia dito isso, mas serão dez capítulos, logo, o que vos trago agora é a metade da história e, pra todos os efeitos, o "começo do fim". Acredito que a sensação de que nada aconteceu até agora seja comum (pelo menos no que diz respeito às partes da história ocorridas no 'presente'), mas era preciso dar uma enrolada bonita pra chegarmos até aqui. A partir de agora, apertem os cintos porque cada capítulo vai ser uma treta.
Spoiler: Música do capítulo
Essa é dramática e intensa e acho que sintetiza muito bem a história como um todo. "Things We Lost In The Fire".
Do you understand that we will never be the same again?
The future is in our hands and we will never be the same again
V
Enfim chegara a última noite de lua nova daquele ciclo lunar.
Ab’Dendriel ainda jazia mergulhada em uma escuridão profunda, envolvente, tão densa que parecia ser possível cortá-la com o toque de uma espada. Os poucos pontos luminosos espalhados aqui e ali pelas árvores pareciam ter pouco a fazer contra a interminável penumbra daquela noite de um silêncio sepulcral, ainda mais quieta e tranqüila do que qualquer outra que 4669 pudesse recordar-se de já ter presenciado em sua estada por aquelas terras. Os escassos ruídos perceptíveis eram os da folhagem vagarosamente movendo-se de acordo com o ritmo ditado pela suave brisa gélida que dançava pela floresta. Entretanto, de modo geral, a quietude daquela noite era tamanha que apenas a escuridão da paisagem parecia mais intensa.
4669 jazia sentado junto à base de um velho e pomposo bordo vermelho, suas costas escoradas no tronco da árvore, uma de suas pernas estirada à sua frente e a outra flexionada com o joelho para cima, sobre o qual repousava o braço esquerdo, mais uma vez envolto em ataduras apressadamente feitas por alguém evidentemente sem qualquer qualificação para aquele serviço. Seu rosto estava erguido, apontado para algum ponto muito além no horizonte, onde era apenas vagamente perceptível um amontoado de pontinhos luminosos no que parecia ser uma plataforma de madeira içada sobre os longos galhos de um grande conjunto de árvores. Seus olhos, entretanto, jaziam pregados no gramado, lânguidos, como se há muito tivessem se cansado de tentar identificar qualquer forma meramente reconhecível naquele lugar tão, tão distante dali.
Eles estão lá, foi o primeiro pensamento que lhe ocorrera quando ele sentara-se naquele local algumas horas antes, com os olhos fixos na guilda dos Cenath. Ele não era capaz de discernir absolutamente nada em seu alvo a partir do ponto onde se encontrava, e, como ele se recusara a se aproximar do local onde despencara quatro metros uma semana antes, era impossível ter certeza de que havia efetivamente uma reunião de elfos acontecendo naquele lugar. 4669, entretanto, tinha certeza de que estava certo, como costumava acreditar estar. Eles estão se reunindo mais uma vez, provavelmente a última vez por semanas, e estão trocando os segredos que eu deveria estar ouvindo. Ele sabia que precisava estar lá também, confirmando suas suspeitas e finalmente pondo um fim naquela funesta missão que lhe fora confiada. Em tempos pretéritos, quando ele fora um aprendiz ansioso para provar seu valor, ele teria feito muito mais do que o impossível para cumprir o que lhe havia sido solicitado. No entanto, o 4669 que existia naquele instante sentia-se letárgico, impotente, fraco, incapaz.
O Conselho acredita que os Cenath estão experimentando formas de magia... incomuns. Pelo menos para os padrões dos elfos, dissera-lhe 1593 muitos dias atrás, antes de tudo aquilo começar, antes dele roubar o livro de Dagobald, o Insano, da biblioteca. Antes dele se tornar humano. Antes dele colocar tudo a perder. Sabemos com grande confiança e já há muito tempo que os minotauros estão muito próximos de descobrir segredos de magia negra que raças inferiores jamais deveriam desenterrar, dissera 1593, mas é a primeira vez que chegam ao nosso conhecimento suspeitas de que os elfos estejam fazendo o mesmo. É imprescindível que você obtenha sucesso nesta missão, 4669. O Conselho todo está contando com seu êxito. 4669 sentiu uma espécie de cócega gelada sapateando pela sua garganta, seguida de uma sensação estranha de vazio no fundo do estômago. O que ele iria dizer ao seu mestre quando eles se encontrassem novamente? Como ele iria dizer-lhe que, pela segunda vez seguida, ele falhara miseravelmente em uma missão importantíssima?
Enquanto ele pensava naquelas coisas que tão mal lhe faziam, ele quase se deixara ignorar os crescentes sons da grama fofa às suas costas sendo lentamente amassada a intervalos regulares, espaçados, como se alguém estivesse se aproximando dele sorrateiramente, sem querer ser notado. Entretanto, o silêncio da noite denunciara aqueles sons, e nem mesmo todo o misto de sensações ruins que lhe consumia naquele instante seria capaz de distraí-lo da impressão de que alguém conhecido viera visitá-lo. E, dessa vez, ele estava preparado; quando o visitante falou, ele não se sobressaltou como ocorrera na biblioteca.
- Eu posso me sentar aqui? – Chamou a voz de Ícaro, baixa, quase em um sussurro, repleta de algo que 4669 identificou como uma hesitação desmedida. No instante em que ele ouviu aquela voz, algo tremeu dentro do seu âmago, e ele teve a vaga intuição de que aquilo nada tinha a ver com a brisa cada vez mais gélida e freqüente.
Ele não respondeu, tampouco esboçou qualquer reação que pudesse levar o recém-chegado a crer que ele registrara as suas palavras. O máximo que ele fizera fora erguer os olhos do chão e fixá-los em um ponto aleatório à sua frente, entre duas arvoretas mais baixas a poucos metros de distância, que delimitavam o outro lado de uma pequena clareira na floresta densa daquela parte da cidade. Ícaro, aparentemente, tomou seu silêncio como uma resposta afirmativa, ou talvez ele desde o princípio pretendera ignorar qualquer resposta, uma vez que, passados alguns breves segundos, 4669 pode distintamente ouvi-lo sentando-se às suas costas. Sua respiração, até então calma como o vento, repentinamente se acirrou.
Como você me encontrou aqui? Ele quis perguntar. O que você veio fazer aqui? Também lhe ocorreu dizer. Em algum lugar da sua mente, surgiu a idéia de virar o torso ou pelo menos o pescoço para observar o druida. Em outro lugar, viera um impulso difícil de controlar de lançar algum tipo de feitiço experimental em cima dele naquele instante, não importava se seria uma bola de fogo ou um encantamento para transformá-lo em lesma. Um terceiro pedaço do seu cérebro começou a pedir desesperadamente que ele simplesmente se levantasse e saísse calmamente dali, enquanto uma quarta porção insistia que o melhor a fazer era sair correndo. Contudo, o Bonelord não fez absolutamente nada; ele apenas continuou sentado, na mesma posição, com os olhos vidrados em nada em particular, esperando silenciosamente que Ícaro não falasse mais nada e que ele fosse capaz de ignorar completamente a existência do outro até se cansar de ficar ali sentado e finalmente ir embora. Ícaro, entretanto, tinha outros planos.
- Está uma noite bonita. – Disse o druida casualmente, e 4669 pode visualizá-lo erguendo os olhos escuros para revistar o manto da noite, parcialmente visível entre as copas das árvores que delimitavam a clareira próxima à qual eles se encontravam. Entre um ramo e outro, era possível visualizar algumas poucas estrelas cintilantes cravejadas no céu, visíveis em toda sua plenitude graças à lua nova e a precariedade do sistema de iluminação pública de Ab’Dendriel. 4669 as vira quando se sentara ali, sem prestar muita atenção no que enxergara. Naquele instante, então, ele tivera de conter um impulso inesperado de erguer os olhos. – Este lugar aqui é bem bom para se observar as estrelas. Existem outros melhores, na verdade... Uns morrinhos perto do porto, onde a floresta é mais baixa. Mas o farol normalmente dificulta a visão... Tem uma planiciezinha na frente do Castelo dos Ventos, também, e como ele está desocupado agora não tem ninguém pra ficar acendendo a luz e poluindo a visão...
Ele falava rapidamente, mais rapidamente do que 4669 jamais o ouvira falar antes, não sendo raros os momentos em que ele atropelava as palavras ou juntava duas ou mais em uma só, e parecia que ele jamais pararia de falar de estrelas. Logo, porém, pareceu óbvio ao druida que seu interlocutor não estava disposto para uma conversa casual, então ele se calou e deixou que um novo silêncio se instalasse entre os dois por algum tempo, algo que parecia já estar se tornando uma constante entre os dois.
O Bonelord, enquanto isso, ia percebendo o quanto a presença do outro ali o afetava das mais curiosas e inesperadas formas. Se, por um lado, ele sentia-se extremamente irritado ao se ver mais uma vez em companhia daquele humano, por outro ele não podia deixar de sentir uma série de titilações nas suas entranhas, não de uma forma incômoda, mas sim de uma forma quase reconfortante. Ele sentia-se, ao mesmo tempo, mais frio e mais quente, e sua respiração estava muito mais rápida do que de costuma, tal qual sua pulsação. Inexplicavelmente, ele parecia sentir um aroma constante de algo que lembravam biscoitos.
- Me desculpe. – Veio a voz de Ícaro mais uma vez, desta vez um pouco mais alta, dura, séria e confiante. O druida parecia ter enfim abandonado suas tentativas pífias de sustentar uma conversa casual com o feiticeiro, e enfim decidira ir direto ao ponto que o fizera revirar a cidade toda em busca do outro. – Me desculpe pelo que houve hoje mais cedo, na biblioteca. Eu não devia ter te assustado e... Hm... Me metido na sua vida. Eu deveria ter percebido logo no nosso primeiro encontro que você não é o tipo de pessoa que leva numa boa alguém tão... Invasivo. Eu realmente não quis te chatear, eu só... Sei lá. Acho que eu fiquei preocupado e exagerei um pouco.
Ele se calou novamente, seus olhos fixos na parte de trás da cabeça do feiticeiro, tão fixos que pareciam capazes de ler a sua mente, ainda que Ícaro não fizesse a menor idéia do que o outro estava pensando ou sentindo naquele instante. 4669, por sua vez, esforçou-se ao máximo para não ouvir o que o outro tinha a dizer, sem sucesso algum, evidentemente. Quando ele deu por si, estava cravando os dedos da mão direita na terra e cerrando os dentes, sentindo-se tomado por uma irritação desagradável que insistia em lhe acompanhar naqueles dias e que ele não fazia ideia de onde vinha.
- Eu já disse que não preciso da sua preocupação! Eu sei me cuidar muito bem sozinho! – Ele rosnou, seus olhos entrando em foco à medida que sua mente voltava a aterrissar no corpo. Naquele momento, as partes do seu cérebro favoráveis e lançar algum feitiço no druida pareciam decididas a assumir o controle, ainda que as partes mais amigáveis estivessem oferecendo uma brava resistência. A brisa parecia prestes a transformar-se em um vento de intensidade mais considerável. Talvez fosse chover no outro dia.
- Eu nunca disse que não! – Ícaro retrucou de imediato, ainda que seus pensamentos mais sinceros fossem “Não parece” e “Você caiu sozinho de uma altura de quatro metros, ficou desacordado por horas e esmigalhou o braço, então não, não acho que você saiba se cuidar”. Por algum motivo, lhe pareceu uma idéia bastante estúpida ser completamente sincero naquele instante.
- Então por que você insiste em me perseguir e me amolar com essa história? – 4669 rugiu em resposta, finalmente deixando seu auto-controle de lado para girar o torso na direção do druida, deixando que seus olhos se fixassem no outro. De início, ele sentiu como se levasse um choque, pois, apesar da escuridão, a figura de Ícaro lhe parecia perfeitamente visível, de modo que, por alguns segundos de pavor, ele teve a impressão de voltar a ser um Bonelord e ter sua visão noturna de volta.
- Porque eu me preocupo com você! – O druida respondeu veementemente, curvando o corpo para frente sobre as suas pernas cruzadas. 4669 abriu a boca para retorquir, mas o outro calou-o com suas palavras, que ainda não haviam sido finalizadas. – E isso não quer dizer que eu não ache que você seja capaz de se virar ou sei lá. Porra, você tentou me atirar uma bola de fogo na cabeça! Eu sei que você sabe se cuidar! Eu só... Não acho que você precise fazer isso sozinho!
- Eu não compreendo isso. – Ele respondeu baixinho após alguns segundos em que Ícaro ficou encarando-o de uma forma estranha, como se achasse que ele fosse demente ou coisa parecida. As palavras do druida o haviam atingido com força e despertado alguma porção da sua mente que ele jamais tivera consciência de ter: uma que parecia disposta a levar as palavras do estranho em consideração. Ele precisou de alguns segundos para voltar a falar, nos quais Ícaro ficou apenas observando-o atentamente, como se fosse possível entender o que se passa na estranha cabeça dele apenas através de observações científicas. – Esse seu... Ímpeto de querer me ajudar ou coisa parecida. Eu não entendo isso! Você nem me conhece!
Ícaro suspirou profundamente e revirou os olhos com tanta força que pareceu, por alguns instantes, que ele iria ficar tonto. Não demorou, entretanto, para que ele voltasse a fixá-los em 4669, que tornou a sentir como se suas vísceras fossem feitas de meleca e estivessem prestes a se dissolverem.
- Achei que já tínhamos passado desse estágio. – Ícaro falou com um leve quê de irritação, curvando ainda mais o corpo na direção do feiticeiro. – Eu não ligo pra quem você é. Faz parte da minha natureza cuidar dos outros e ponto final. Desculpa se eu estou te perseguindo ou me metendo na sua vida ou sei lá, mas faz parte de quem eu sou me preocupar... Querer que os outros estejam bem... É nisso que eu acredito!
- E eu não compreendo isso. – 4669 voltou a teimar como uma criança birrenta que insiste em ter razão, fazendo com que o druida novamente soltasse um longo e sonoro suspiro e revirasse os olhos. Para um observador externo, seria evidente que, naquele instante, os papeis haviam se invertido: o feiticeiro era o homem hesitante, incerto do que dizer, ao passo que o druida era quem mais estava próximo de atirar alguma coisa na cabeça do outro.
- Você tem razão: eu não sei quem você é, tampouco de onde você vem, já que você aparentemente não está familiarizado com pessoas sendo legais ou tentando ser suas amigas. – Ele retorquiu enquanto descruzava as pernas e apoiava as duas mãos sobre os joelhos. – Mas, de onde eu venho, não é costume nosso virar as costas para os outros e agir como se não nos importássemos. Olha... Eu não vim aqui para discutir com você. Eu só te procurei porque achei que te devia um pedido de desculpas pelo que aconteceu. Então, se você me dá licença...
E, dizendo aquelas palavras, o druida ergueu-se do chão e bateu as mãos nas roupas para livrar-se da sujeira e dos restos de folhas secas que acumulavam-se sob a árvore. O feiticeiro acompanhou aquela movimentação com o olhar, sentindo um incômodo crescente no peito. Dispare um relâmpago na cara dele! Disse uma vozinha peralta no fundo da sua cabeça. Invoque um diabrete e derreta a pele dele! Sussurrou uma segunda vozinha ao pé do seu ouvido. No entanto, enquanto Ícaro lançava-lhe um último olhar enigmático, 4669 decidiu dar ouvidos a uma outra vozinha, recém-desperta, que ele jamais achou que algum dia seria aquela que lhe pareceria mais sensata.
- Espera aí! – Ele se ouviu dizendo, ainda sem crer na traição cometida pela sua voz. Talvez como se esperasse uma reação daquelas, ou pelo menos desejasse que ela ocorresse, Ícaro estatizou-se no instante em que ouviu aquelas palavras; ele já estivera a ponto de virar-se para iniciar uma caminhada rumo à imensidão do bosque. 4669 levantou-se rapidamente e deu um passo adiante, respirando fundo e engolindo em seco enquanto sentia um suor irritante escorregar pelas palmas das suas mãos.
- Vai jogar alguma coisa em mim? – Indagou o druida com uma expressão apática no rosto.
- Eu nunca te agradeci por ter me curado. Então... Obrigado. – 4669 novamente se ouviu dizendo, sem ter certeza absoluta se era realmente o dono daquela voz. Talvez o feitiço tenha dado errado e esta forma humana esteja me fazendo falar coisas insanas, pensou mais uma das incontáveis e conflitantes partes do seu cérebro. Ícaro, ao ouvir aquilo, arregalou os olhos por alguns segundos e adotou o que pareceu ser uma expressão de divertida surpresa, como se ele não estivesse esperando aquelas palavras mas certamente as estivesse adorando. As palavras que o feiticeiro disse a seguir foram mastigadas uma centena de vezes antes de serem enfim libertas, sendo acompanhadas por mais uma leva de suor frio e uma estranha sensação de calor que começou a correr pelo seu rosto. Se alguém dissesse para ele que algum dia ele estaria proferindo aquelas palavras a um humano, ele teria prontamente fulminado o tolo infeliz. – E... Hã... Desculpe. Desculpe se eu fui... Grosseiro. Eu meio que não estou habituado a ser tratado desta forma.
Um leve sorrisinho brotou no canto dos lábios de Ícaro, e seus olhos encheram-se com algo que, muito tempo depois, 4669 saberia nomear como ternura. Naquele instante, entretanto, ele achou apenas que fosse uma forma diferente de piedade, mas, para seu alívio e surpresa, ele conseguira conter a irritação que normalmente surgia em suas veias quando ele detectava aquele sentimento. Por algum motivo incerto para ele, toda sua animosidade anterior parecia ter se dissolvido em uma grande e profunda poça de boa-vontade, uma poça que ele certamente não acreditava que poderia brotar em seu emocional, ainda mais naquela velocidade. Talvez ser humano estivesse mesmo mexendo com o seu psicológico.
- Você não precisa se desculpar. Eu fui muito invasivo mesmo. – Disse o druida em um tom de voz mais brando, deixando claro para o outro que sua impaciência havia passado. – Ainda mais com toda aquela história de ficar te seguindo e...
- Eu também te segui algumas vezes. – 4669 falou antes que tivesse tempo de processar aquelas palavras, calando Ícaro e fazendo-o adotar uma expressão que foi de confusa para surpresa e, finalmente, para risonha. Caralho. Cacete. Puta que pariu. O feitiço definitivamente deu errado e eu estou falando o que não devo! Mais uma vez, o Bonelord sentiu seu rosto inflamando-se, e ele teve que esfregar as palmas das mãos na calças para livrar-se do excesso de suor. Enquanto Ícaro encarava-o de forma divertida, ele se percebeu perdendo mais uma vez a linha de raciocínio enquanto tentava justificar o que tinha acabado de falar. – Digo, eu te vi uma ou duas vezes por aí e... Hã... Eu precisava... Queria... Agradecer. E eu posso ter te seguido algumas vezes e...
- Você é um sujeito adorável, Dago. – Ícaro disse finalmente enquanto abria um largo sorriso, fazendo com que 4669 mais uma vez sentisse aquela curiosa sensação de perder uma batida no coração. O rosto do druida iluminou-se de forma surpreendente quando aquele sorriso surgiu, e o feiticeiro pegou-se pensando como sentira falta de vê-lo. Entretanto, no instante que ele processou as palavras ditas pelo outro, seu corpo retesou-se e ele voltou a sentir um misto de sensações estranhas que lhe nublavam os pensamentos e a lógica.
- O que foi que você disse...? – Ele falou hesitante após engolir em seco algumas vezes.
- Dago? Ah, é um apelido. Dagobald é um nome meio grande. Acho que Dago soa melhor. E combina mais com você.- O druida falou de uma forma singela enquanto dava de ombros, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
- Não. Eu quis dizer... Antes. Antes disso. – Insistiu 4669, sem ter certeza se queria mesmo ouvir aquela palavra de novo.
Ícaro pareceu hesitar por alguns segundos, ficando mais uma vez com uma expressão séria no rosto. Seus olhos ainda estavam fixos nos de 4669, que sentia que coisas horríveis e inomináveis aconteceriam se ele algum dia quebrasse aquele olhar.
- Eu disse que você é adorável. – Ele finalmente falou ainda sem tirar os olhos do outro, que, mais uma vez, engoliu em seco.
Silêncio, mais uma vez. Ficaram os dois homens parados, abaixo do grande e frondoso bordo de folhas vermelhas, no limite entre a floresta e a clareira, um observando o outro atentamente. Desta vez, foi Ícaro quem engoliu em seco e sentiu as palmas das mãos suarem, ao passo que 4669 já abandonara suas tentativas vãs de compreender o que se passava em sua mente. Adorável, ele pensou. Adorável. Foi isso que ele disse. Ele já ouvira os humanos usarem muitos adjetivos para qualificá-lo nas vezes em que encontrara outros espécimes daquela raça. Asqueroso. Odioso. Maldito. Monstruoso. Mas aquela era a primeira vez que alguém o chamava de adorável. Talvez pela primeira vez em muito tempo, ele não soube o que responder.
- Bom... Já é tarde. – Disse Ícaro após algum tempo, claramente desconfortável, como se pudesse adivinhar que o feiticeiro jamais seria capaz de produzir algum som novamente. Ele então desviou o olhar do outro e se pôs a procurar alguma fresta entre os galhos do bordo para ver o céu, como se tentasse agir o mais naturalmente possível. – Acho melhor eu ir. Nunca consigo achar o caminho de casa no escuro... Essa floresta me confunde. E isso que eu moro aqui há anos...
Ele voltou a sustentar o olhar do outro, que jazia estatizado na mesma posição. Ele então deu um leve sorrisinho com o canto da boca, como fizera antes. O vento estava realmente mais forte, mas repentinamente não parecia mais tão frio.
- Então... Tchau. – Ícaro falou enquanto acenava bobamente para 4669, que respondeu com um leve aceno de cabeça. Abusando da sua ousadia, ele acrescentou: – Se você for ficar por aqui por mais uns dias... E se não for muito invasivo da minha parte... Podemos nos ver de novo?
Em algum lugar no meio das árvores, uma coruja piou. Só então 4669 se deu conta de como as vozes na sua cabeça, as quais normalmente encharcavam-no com advertências em horas como aquela, estavam anormalmente quietas. Ícaro ainda o encarava, inquieto, esperando que ele desse qualquer indicação de que não tinha morrido em pé.
- Claro. – Ele se ouviu dizer e, para sua surpresa, sentiu-se forçando um sorriso para o druida, que o retribuiu e, rapidamente, virou as costas e se pôs a caminhar apressadamente para o interior da floresta, como se quisesse sumir dali o mais rápido possível. Apenas quando a silhueta do outro sumiu entre as árvores que 4669 se permitiu soltar o ar que segurava e girar o corpo para ficar de costas para o local onde Ícaro desaparecera. Seu corpo estava tenso, sua mente voltara a ser inundada por uma multidão de pensamentos confusos, e ele já não fazia mais ideia do que estava acontecendo ali. Foi só então que ele se deu conta de que o aglomerado de pontinhos luminosos que demarcava a guilda dos Cenath havia desaparecido, engolido pela penumbra quieta daquela noite na floresta. Há quanto tempo aquelas luzes haviam se apagado? Quem poderia saber? Fosse como fosse, a visão da guilda dos Cenath, tão distante, suspensa nas árvores, causou-lhe um tranco nauseante no estômago, que, ainda que por apenas uma fração de segundo, foi capaz de fazê-lo esquecer do que acabara de acontecer ali.
As luzes haviam se apagado. A reunião acabara. Sua última chance se esgotara. Ele já não tinha mais permissão para ficar em Ab’Dendriel.
Entretanto, havia Ícaro. E foi pensando nele que 4669 respirou fundo, cerrou os punhos e se pôs a atravessar a pequena clareira a passos largos, rumando para o outro lado da floresta, em direção à caverna que ele tomara como lar desde que iniciara aquela empreitada toda, onde ele esperava dormir e nunca ter de acordar para enfrentar as consequência da escolha que ele sentia estar prestes a tomar.
***
O retorno não ocorrera exatamente como ele havia planejado.
Em sua concepção inicial, ele chegaria em sua cidade-natal oculto pela escuridão da catacumba, silenciosa e sorrateiramente, sem surpresas e sem combates desnecessários. Cuidadosamente, ele se esgueiraria para o interior da colossal caverna que se abria à sua frente e, sempre margeando as paredes pedregosas à sua direita, chegaria até as escadas que conduziam à biblioteca, tudo isso sem chamar a atenção das sentinelas que vigiavam a entrada da cidade e sem a necessidade de abrir caminho usando a força. Se tudo corresse conforme o planejado, ele não precisaria machucar nenhum de seus antigos irmãos e conseguiria acessar o acervo com o qual tanto sonhava há dias sem maiores preocupações.
Evidentemente, tudo dera errado.
A explosão causada pela bola de fogo que ele disparara contra a horda de ghouls gerara um ruído forte o suficiente para ecoar provavelmente pela cidade inteira, alertando qualquer alma viva – ou morta – da sua chegada. Uma vez que os mortos não são capazes de falar e que os Bonelords comunicam-se de forma não verbal com os olhos, a Necrópole costuma se encontrar em um silêncio absoluto, sepulcral, quebrado ocasionalmente pelas borbulhas da lava que cai em alguns pontos da cidade ou dos pântanos ácidos e fosforescentes que cobrem parte da ala mais oriental da caverna e corroem o arenito que tocam. Logo, qualquer ruído mais alto seria capaz de chamar a atenção de qualquer um que estivesse vagando pela caverna, razão pela qual Batráquio não se surpreendera realmente ao ver o imenso exército que o aguardava ao final do corredor de pedra que dava acesso à Necrópole.
Ele sequer tivera tempo de dizer qualquer coisa em sua defesa. Tudo que ele conseguiu fazer foi jogar o corpo para o lado e tentar se proteger entre as pedras da parede para evitar a saraivada de mísseis mágicos que foi disparada em sua direção no instante em que a poeira erguida pela bola de fogo baixara. Raios e energia, orbes escuros, bolas de fogo... Os Bonelords estavam usando tudo que conheciam para liquidar a ameaça que se apresentara tão simpaticamente logo às portas da sua cidade, como haviam sido ensinados a fazer. Enquanto observava os numerosos ataques mágicos atingirem o chão, o teto, algumas pedras das paredes e o que restara dos corpos apodrecidos dos ghouls, Batráquio lutava para ignorar a sensação de abandono que se apoderara do seu ego. Eles não sabem que sou um deles. Por isso estão me atacando. Eles não me reconhecem nesta forma, pensou ele, convenientemente ignorando o fato de que, se eles soubessem quem ele era, os ataques certamente seriam piores.
Foi apenas quando um dos mísseis de energia atingiu um dos pedregulhos atrás do qual ele se escondia que ele abandonou seu choque inicial e o substituiu pela raiva que acumulara ao longo de todos aqueles anos. Eu poderia pulverizá-los em segundos, ele começou a pensar de uma forma animalesca. Algumas runas e umas duas ondas de energia e todos eles estarão mortos. Os ataques continuavam. Era evidente que os Bonelords não estavam sequer olhando para saber se estavam acertando alguma ameaça real. Eu poderia fazê-los pagarem pelo que fizeram comigo. Por toda a humilhação, por terem me expulsado... Eles mereceriam que eu fizesse isso! Que importava quem eram aqueles? Certamente alguns deles conheceriam sua história, saberiam quem ele era... Mas será que todos saberiam? Será que todos concordariam com a punição que ele recebera? Seria justo castigá-los pelas coisas que o Conselho o fizera passar? Eles não demonstrarão qualquer compaixão se me pegarem, por que eu deveria poupá-los? Enquanto ele pensava, seus olhos varriam o cenário ao seu redor em busca de uma alternativa ao combate. Ele logo encontrou-a na forma de um estreito nicho escavado do outro lado do corredor, quase diretamente à sua frente.
- Utamo vita! – Ele rosnou, sem saber exatamente o que estava fazendo. Não importava se ele iria eventualmente ter de lutar ou não: ele não iria ficar ali e esperar que eles o encontrassem e o liquidassem. Em um movimento irresponsável, Batráquio respirou fundo e mergulhou na direção do chão, dando uma cambalhota na areia escura e rolando para o outro lado do corredor. A maioria dos ataques desferidos contra ele acertaram qualquer outra coisa, mas os poucos que o atingiram foram bloqueados pelo seu escudo mágico, evitando que ele os sentisse. Enquanto ele se arrastava pelo chão, ele percebia a areia rodopiando ao seu redor como um tornado, impedindo que ele pudesse observar quem o estava atacando, e também dificultando a visão dos atacante. Logo, Batráquio sentiu suas costas colidindo com as paredes do outro lado do corredor. Aproveitando-se da nuvem de areia erguida pela infinidade de ataques, o feiticeiro arrastou-se contra as pedras até sentir que suas costas haviam encontrado a entrada do nicho que ele vira. Torcendo para que o mesmo fosse longo o suficiente, Batráquio enfiou o corpo entre as rochas e fez uma careta de desconforto enquanto sentia suas costas e membros serem espetados pelas pedrinhas pontiagudas que definiam o limitado espaço onde ele agora se encontrava.
Alguns segundos depois, os ataques cessaram; enquanto a nuvem de areia escura e fedorenta baixava paulatinamente, instaurou-se novamente um silêncio mortal, quebrado aqui e ali pelo som característico dos defuntos se arrastando e dos ossos dos esqueletos colidindo-se e rangendo enquanto eles se moviam. De onde ele estava, ele não conseguia enxergar absolutamente nada senão uma pequena porção do corredor por onde viera, onde ele conseguia definir os restos explodidos de um ou dois ghouls. Mas ele não precisava enxergar seus irmãos para saber que eles certamente estavam conversando entre si e decidindo o que fazer a seguir. Repentinamente, ele sentiu o coração dar um pulo quando os grandes e esverdeados corpos flutuantes de dois Bonelords entraram em seu campo de visão, seus tentáculos agitando-se para todos os lados de uma forma assustadora e doentiamente veloz, para que os olhos nas extremidades pudessem mapear todo e qualquer centímetro do cenário. Ele procurou enfiar-se um pouco mais na fresta que encontrara.
Será que eles acham que eu fugi? Eles certamente não o haviam visto se enfiar ali, e a inexistência de restos mortais no chão da caverna de acesso só poderia significar que o forasteiro surpreendido pelos habitantes da Necrópole havia batido em retirada. Ao longo de penosos segundos que se confundiram com eternidades, Batráquio lutou para controlar os batimentos cardíacos e o ritmo da sua respiração, tal qual o impulso de saltar do nicho e explodir o corredor inteiro, e se pôs a observar os dois Bonelords e seus esqueletos vagarem pelo corredor, vasculhando-o de cabo a rabo em busca de algum vestígio do visitante indesejado. Se eles me acharem aqui eu terei de lutar, ele pensou, perguntando-se para onde toda sua raiva fora. E eu terei de matá-los. Seus encontros com outros Bonelords desde que fora transformado em humano haviam sempre resultado em combates e mortes. Mesmo quando ele vivera ali, não era incomum ver Bonelords matando uns aos outros. Era uma forma perfeitamente compreensível de resolver pendências e conflitos. Existiam até regulamentos antigos regidos pelo Conselho para coordenar duelos entre Bonelords rivais. Em uma sociedade que idolatra a morte, matar não é um crime. Então por que eu estou tão incomodado com isso? Ele perguntava-se se a atmosfera nostálgica da Necrópole não o estaria inibindo de alguma forma.
Subitamente, um dos vigias, o que estava mais longe, virou o corpo para ficar de frente para seu parceiro, seu grande olho amarelado central fixo no do outro. Graças ao seu campo de visão nada ideal, interrompido aqui e ali por projeções da parede, ao posicionamento infeliz do outro Bonelord e principalmente graças ao seu cérebro de humano, nada adaptado para a complexa contabilidade dos Bonelords, Batráquio sentiu uma dificuldade extrema para entender o que o Bonelord que se virara estava dizendo ao outro, em 469.
- ... Ter Fugido... Nada... Voltar... Alertar Conselho – Foram as poucas palavras que ele conseguiu pescar entre uma piscadela e outra. Se ele entendera aquilo corretamente, eles realmente achavam que ele havia batido em retirada ao ser surpreendido por uma resistência tão eficiente. Por que ele mencionou o Conselho? A única resposta que fazia sentido seria a completa ausência de qualquer Ancião em sua recepção. Mas os Anciãos que estão na cidade certamente devem ter ouvido toda essa bagunça! Ele sentiu um solavanco no estômago. A menos... A menos que não haja nenhum...
- ... Aqui... Vigiar... Reporte... 664478! – Ele conseguiu traduzir quando o Bonelord Um voltou a falar, aparentemente após a réplica do Bonelord Dois, que ainda estava de costas. 664478 ainda está vivo, então? Aquele era um dos mais velhos e crueis membros do Conselho, e fora uma das mais fervorosas vozes na audiência que decidira pelo seu exílio. Bom saber que o filho da puta ainda está vivo. Posso dar um jeito nele enquanto estou por aqui! Um resquício de ira voltou a serpentear pelo seu cérebro, acompanhado de perto pelo desejo de fazer alguma coisa que não fosse continuar se escondendo.
Em mais um movimento inesperado, o Bonelord Dois, aquele que estivera de costas, girou o imenso corpo esverdeado e começou a flutuar para fora do campo visual de Batráquio, na direção da Necrópole, deixando apenas o Bonelord Um e um esqueleto no corredor. Ele deve ter mandado o outro avisar o Conselho e resolveu ficar aqui para vigiar. Se ele estivesse certo, ele teria pouco tempo antes de um Ancião aparecer atrás dele. Eu posso acabar com esses fracotes em um tapa, mas se um Ancião aparecer eu terei problemas. Sabendo que mais cedo ou mais tarde ele teria de se ver cara a cara com os membros do Conselho, o feiticeiro tomou a sua decisão enquanto o Bonelord Um dava as costas para ele e flutuava para longe, provavelmente para inspecionar o corredor até o fim.
- Utana vid. – Ele murmurou, alegrando-se pela certeza de que seu feitiço de invisibilidade tornara-se imensamente mais confiável ao longo dos anos. Lentamente, ele enfiou a cabeça para fora do nicho apertado em que se encontrava e espiou o cenário que restara. O alargamento do corredor de pedra que marcava o acesso à Necrópole estava agora praticamente deserto, com exceção apenas de alguns esqueletos demoníacos que andavam em círculos, como se tentassem bloquear o acesso de qualquer um à cidade. Sentinelas, Batráquio os reconheceu. Em geral, aqueles ali ficavam no alto de torres de granito e ossos espalhadas próximas a pontos importantes da cidade, como a entrada ou a biblioteca, e desciam de seus postos apenas em casos de extrema necessidade, como uma invasão. Felizmente, aquele tipo de morto-vivo era incapaz de enxergar criaturas invisíveis. Ele então virou o rosto para o outro lado, para a continuidade do corredor de acesso. O Bonelord Um estava realmente afastando-se em direção à extremidade oposta do corredor, mas ainda estava perigosamente perto demais.
Batráquio então esfregou-se contra as paredes e conseguiu, a muito custo, sair da fenda estreita, seguro de que nenhum dos esqueletos o enxergaria. Eu preciso agir rápido. Se algum ghoul aparecesse, ou se algum Bonelord se desse ao trabalho de olhar em sua direção, sua invisibilidade seria inútil e ele teria um novo problema em mãos. Preciso ser discreto se quiser chegar à biblioteca em segurança! Sentindo um friozinho na barriga, o feiticeiro puxou uma pequena pedrinha arroxeada de um dos bolsos, a qual continha uma runa antiga que guardava uma semelhança engraçada com a cabeça de um minotauro. Eu só tenho uma chance! Lentamente, ele ergueu o braço bom e mirou a runa na direção das costas do Bonelord Um, onde o esqueleto estava parado, como se fizesse guarda. Então, Batráquio disparou.
Não houve uma esfera de energia ou um míssil ou qualquer alteração mais perceptível na atmosfera ao redor da runa. Apenas o que pareceu um repentino deslocamente de ar de grande intensidade, como se um dardo invisível tivesse sido disparado de uma besta de excepcional potência. Se forçasse os olhos, o feiticeiro conseguiria enxergar o que parecia uma curvatura amorfa no ar deslocando-se em alta velocidade em direção ao Bonelord Um, que observava a escuridão à sua frente aparentemente com grande interesse, como se imaginasse onde o invasor poderia estar. O disparo da runa de explosão então o atingiu em cheio no meio das costas, não sem antes atravessar o esqueleto que aguardava um comando de seu mestre e estourá-lo em incontáveis ossinhos. Ao ser atingido, o Bonelord tremeu por alguns segundos e espichou seus tentáculos como se tivesse levado um choque, e então retesou-se e colapsou no chão com um ruído breve, erguendo uma pequena quantidade de areia quando caiu. Se eu calculei isso certo, ele está apenas desmaiado, não morto. O efeito daquela runa seria aproximado a uma ser atingido na cabeça por uma pá. Uma pá excpecionalmente pesada atirada a uma velocidade realmente impressionante. Mas uma pá.
Rapidamente, Batráquio girou os calcanhares a tempo de ver as sentinelas pararem sua dança monótona para virarem seus crânios avermelhados na direção do ruído causado pela queda do Bonelord, evidentemente sem ver o agressor e sem compreender o que se passara. Talvez, se fossem seres pensantes, eles perceberiam o que havia acontecido. Enquanto o grupo de defuntos permanecia parado, como se tivesse esquecido do que deveria fazer, o feiticeiro preparou sua cartada final, ciente de que o ruído fofo causado pelo desmaio do Bonelord Um poderia ter alertado bem mais do que simples mortos-vivos.
- Utevo res “esqueleto demoníaco”! – Ele rosnou enquanto estalava os dedos da mão direita. Um deslocamento de ar ao seu lado seguido de um baque curto foi o indicativo que ele precisava para saber que um defunto praticamente idêntico às sentinelas que aguardavam por ele na entrada da cidade havia surgido do nada ao seu lado. O acontecimento não passou despercebido pelas sentinelas, que agora pareciam mais confusas do que antes, agitando os membros descontroladamente, incertas do que deveriam fazer. Não vai demorar até que decidam atacar, refletiu Batráquio. Ele sabia que seu tempo havia se esgotado.
- Karina. – Ele chamou, sem virar o rosto para a morta que caíra de quatro na areia ao seu lado e agora erguia-se desajeitadamente do chão. A defunta virou o crânio para o local de onde viera a voz, mas, se pudesse esboçar alguma expressão facial, ela certamente mostraria-se confusa pela inexistência de seu senhor habitual, o qual ela não era capaz de ver. Ao lembrar-se daquele detalhe, Batráquio agarrou-a pela omoplata mais próxima para chamar-lhe a atenção. – Karina, eu preciso de uma distração. Corra por aí, quebre algumas coisas... Sei lá. Eu preciso de barulho e preciso que seja o mais longe possível da biblioteca. Você se lembra onde é, não lembra? Faça o que quiser, mas faça longe de lá! E se você tiver que matar alguém no caminho... Então mate.
Como previsto, as sentinelas enfim haviam decidido atacar aquela ameaça assustadoramente semelhante a eles, e agora vinham correndo em alta velocidade na direção de Karina. Ela, por sua vez, não demonstrou qualquer sinal de ter compreendido as instruções de seu mestre. Entretanto, logo em seguida, a morta-viva flexionou os joelhos e disparou em alta velocidade na direção das sentinelas, saltando sobre elas e correndo cidade adentro, deixando uma nuvem de poeira para trás. Se eu der sorte, os outros Bonelords vão demorar a entender que ela não é uma das guardas. Talvez achem que é só um defunto de algum aprendiz que saiu do controle. Não seria a primeira vez. As sentinelas se recuperaram rápido do choque causado pela fuga de Karina, e imediatamente giraram os crânios para trás e começaram a correr de ré na direção da Necrópole, prontas para pegá-la e detê-la a qualquer custo. Boa sorte, Karina, pensou Batráquio enquanto sentia um frio descomunal tomar conta das suas entranhas. É agora. Se o plano A não funcionou, esse aqui vai ter que funcionar. Ele tinha apenas mais alguns minutos antes do feitiço de invisibilidade terminar.
- Utani gran hur! – Ele disse, cerrando os punhos. Se Karina fosse bem sucedida, todas as atenções seriam voltadas para um esqueleto demoníaco ensandecido destruindo a cidade, e ninguém veria um feiticeiro humano correndo na direção da biblioteca. Eu não posso ser visto! Se me emboscarem na biblioteca eu estou fodido! Então, respirando fundo, Batráquio partiu em disparada na direção da Necrópole, pronto para reencontrar a cidade que um dia fora sua e todos aqueles que haviam arruinado a sua vida.
***
Nos dias que se passaram, o Bonelord conhecido como 4669 passou a adotar um estilo de vida cada vez mais incomum para sua espécie, cada vez mais... humano. O feitiço de transformação requerido para sustentar seu disfarce, de início um encantamento tão complexo e demorado que tanto exigira de suas reservas de magia e de seu intelecto, ia cada vez mais tronando-se um ritual rotineiro, e ele já não mais sentia-se fraco ou incapacitado quando assumia sua nova forma. Ele já estava se acostumando com a biologia daquela raça, com seus costumes, suas peculiaridades. Ele já lera muito a respeito de diversos aspectos da cultura humana, mas poder observá-la era algo novo e excitante. Seu maior divertimento era passar horas no depósito da cidade, escutando os aventureiros que iam e viam discutirem sobre suas caçadas, aventuras ou até mesmo sobre suas vidas entediantes.
Lentamente, ele conseguia sentir que 4669 tornava-se um conceito abstrato, uma entidade separada que pertencia a uma parte da sua história que, cada vez mais, lhe parecia... estranha. Ele já sentia agora uma dificuldade maior em decifrar os livros escritos em sua língua materna que trouxera da Necrópole para se distrair, e percebia que seu cérebro, outrora tão racional e apto para cálculos e pensamentos lógicos, tornava-se cada vez mais sensitivo e emocional. Além disso, ele já não mais sentia dificuldade para caminhar ou para mover os membros superiores, mesmo o braço esquerdo, que ainda insistia em doer de vez em quando. Nos seus momentos livres, 4669 passava horas treinando novos feitiços usados pelos humanos e, cada vez mais, ele sentia-se como um verdadeiro feiticeiro humano. A persona de Dagobald Tarantella, inventada por ele de improviso, ia ganhando forma, e agora já era uma entidade muito mais complexa do que ele inicialmente concebera. Dagobald nascera em Venore há vinte e cinco anos, filho de um escritor e uma comerciante, e estava em Ab’Dendriel para aprender mais sobre a cultura dos elfos. Era uma pessoa como qualquer outra. Era quase real.
Ele ainda não abandonara a caverna que encontrara no subsolo da cidade, próxima de um complexo de túneis que ele sabia serem habitados por trolls. Entretanto, aquele espaço ia ficando cada vez menos bestial e mais humanizado. Ele agora tinha mesas, cadeiras, um tapete, um criado-mudo onde ele guardava vestes novas e outros apetrechos e até mesmo um espelho. As noites que ele passava em seu novo lar, dormindo sobre uma cama improvisada, à princípio haviam sido estranhas, perturbadoras, mas agora eram acolhedoras, confortáveis. Na Necrópole, ele não tinha um espaço como aquele ou qualquer coisa que pudesse lembrar mobília. Tudo que ele tinha eram as pirâmides, os livros da biblioteca, os defuntos e seus experimentos com magia negra. Não havia espaço para mais nada, e, até transformar-se em humano, ele jamais imaginara que algum dia poderia haver.
Aquela transformação, em grande parte, havia sido indiretamente influenciada pelo druida chamado Ícaro Azrael. De início, a convivência dos dois se limitara a encontros ocasionais e conversas casuais na biblioteca ou no depósito, mas logo evoluíra para longas conversações sobre a vida, a morte, o céu e as coisas vivas enquanto os dois exploravam as redondezas. Não tardara para que ele e o druida se tornassem mais do que apenas conhecidos, e não apenas uma vez 4669 se pegou pensando como pudera tentar evitar aquele contato. Ícaro não o julgava, não o recriminava quando ele escondia detalhes da sua vida que ele ainda não tivera tempo de inventar, e ele também logo pareceu se acostumar com os ocasionais comentários grosseiros ou sarcásticos que ele lançava. O druida, por sua vez, lhe contava muitos episódios da sua vida, e cada vez mais parecia-se com algo que ele até então não tinha a consciência de já ter tido: um amigo. Ele não era mais o druida esquisito e irritante que o salvara. Ele era Ícaro, nascido em Carlin, cujos pais haviam morrido quando ele ainda era adolescente em um terrível incêndio, que gostava de cozinhar, conhecia muito sobre muitas coisas e era tão gentil com os outros que efetivamente chegava a ser cansativo. Ele conhecera alguns Bonelords ou até mesmo indivíduos de outras raças que ele chegara a considerar quase como entes queridos, como 1593, 486486 ou ainda Ishebad, a múmia fétida e trôpega que vivia em Ankrahmun. Mas Ícaro era algo diferente de todos eles.
De vez em quando, sobretudo nas noites quietas que ele passava acordado em sua caverna, 4669 se pegava pensando nas consequências de seus atos. Ele já deveria ter regressado à Necrópole há dias, ou pelo menos enviado qualquer tipo de comunicado para explicar sua ausência. Ele evitava pensar na ira que seu mestre certamente estava sentindo dele naquele instante, tal como evitava pensar no que o Conselho faria se algum dia descobrisse o que ele estava fazendo ali em cima. Quando parava para pensar naquelas coisas, ele procurava afastar com toda a força os pensamentos mais lógicos e inevitáveis que lhe ocorriam sobre a vida que estava levando. Eu não posso ficar aqui para sempre, ele pensava todas as noites. Eu preciso voltar. Minha vida está lá embaixo. Tudo que eu tenho, tudo que eu sou está lá embaixo. Isso aqui é apenas uma ilusão... Uma invenção. Ele já desistira de se enganar sobre seus reais objetivos em permanecer naquele lugar. Ele não queria mais escrever um livro definitivo sobre o comportamento humano. Ele não queria ser ovacionado como o único Bonelord a se infiltrar com sucesso entre os bocós bípedes com um par de olhos apenas. Ele ainda não se sentia pronto para admitir, mas a verdade lhe parecia óbvia e inescapável: Ele gostava de ser humano. Gostava de ter uma casa, de ter mobília, de ser um feiticeiro. Gostava de estar entre os humanos, de observá-los. Ele gostava de ter um amigo humano. Eu não quero ir embora, ele pensava quando sua insanidade atingia o ápice. Tudo que eu tenho está aqui. Tudo que eu sou está aqui.
Contudo, toda sua animação inicial, todas as coisas maravilhosas que ele sentira quando iniciara aquela nova vida como Dagobald Tarantella logo findaram e foram substituídas por uma ânsia constante, um desespero nervoso e silencioso que o acometia cada vez que ele se levantava da cama e saía da sua caverna. Eu estou traindo a Necrópole. A minha raça. O Conselho. Era inevitável sentir que ele estava fazendo algo errado, cometendo um crime, um sacrilégio. Cada vez mais, ele sentia que era preciso abandonar tudo e voltar antes que fosse tarde demais. Talvez ele ainda pudesse consertar as coisas. Talvez ele pudesse inventar uma história sobre como fora feito refém pelos Cenath e, por isso, se atrasara tanto. Talvez ainda houvesse um jeito de voltar a viver a vida normal que ele levava na Necrópole. Mas aquilo significaria renunciar a vida que ele construíra ali. Às coisas novas que ele descobrira. A Ícaro.
Fazia uma semana desde que a lua nova terminara. Ele e seu mais novo amigo estavam sentados em um descampado que existia a sudeste do grande depósito de Ab’Dendriel, às margens do mar que banhava a península. Era uma tarde anormalmente quente e abafada, e os dois eram as únicas vivas almas em centenas de metros. Ícaro ficara anormalmente pasmo quando descobrira que 4669 não sabia pescar (Você nasceu em Venore! Como assim não sabe pescar? O que você fazia pra passar o tempo lá?!) e adotara como sua próxima missão pessoal o dever de conseguir que ele pescasse um peixe. Entretanto, logo ficou evidente que 4669 não tinha a mínima paciência para esperar que os animais mordessem suas iscas, e, nos minutos que se seguiram, ele passou a tentar mostrar ao druida como era imensamente mais eficaz e interessante disparar mísseis de energia na água e esperar que os peixes morressem e seus corpos boiassem.
- Sabe... Na verdade, eu nunca fui a Venore. – Ele disse depois que os dois ficaram discutindo por alguns minutos sobre como aquele método de pesca era danoso à natureza em geral. Sentindo que o feiticeiro jamais aceitaria estar errado, Ícaro decidira abandonar aquela discussão pelo bem da amizade de ambos, e tentou então inventar qualquer outro assunto. – Já ouvi falar muita coisa sobre a cidade, claro, mas nunca pus os pés lá.
- Não perde muita coisa. – 4669 disse, emburrado, enquanto olhava feio para o mar, que empurrava alguns peixinhos mortos na sua direção insistentemente, como se quisesse deixar claro que não ficaria com eles. Ele já estivera algumas vezes em Venore antes, sempre a mando do Conselho, e talvez aquela fosse a cidade humana que ele melhor conhecia, razão pela qual lhe parecera uma escolha óbvia para sua cidade-natal. – As passarelas são estreitas, tudo fede e as pessoas ficam doentes o tempo inteiro.
- Eu ia dizer que gostaria de conhecê-la um dia, mas ok, podemos pular essa parte. – Disse Ícaro entre uma risada e outra, recebendo um olhar severo de 4669 como resposta. O Bonelord, entretanto, abriu um sorriso em seguida, sabendo que não conseguia mais ficar carrancudo perto do outro. Apesar de muitos pontos da personalidade de Ícaro lhe incomodarem, ele sentia que não era mais capaz de acumular raiva dele por mais do que algumas frações de segundo. Quando ele evitava pensar no que estava acontecendo, quando ele evitava tentar entender o que estava sentindo, ele deixava de sentir toda a agressividade com a qual estava familiarizado. Além disso, estar na companhia do outro fazia com que sua ansiedade sumisse, assim como os seus pensamentos sobre a Necrópole e o Conselho. – Talvez um dia eu te leve para conhecer Carlin. Não acredito que você nunca esteve lá!
4669 sorriu novamente e se pôs a analisar as feições de Ícaro enquanto ele começava um interminável ensaio sobre como Carlin era a melhor cidade do Continente e como Thais era uma cidade ruim. Mas ele não estava realmente ouvindo uma palavra sequer. Enquanto o druida falava, ele ia sentindo uma inquietação crescente brotar em seu peito acompanhada de uma sensação desagradável na garganta, uma espécie de culpa enfadonha que ia se alastrando em seu ser. Ele já havia desobedecido ordens diretas de seus superiores ao permanecer ali além do que lhe fora permitido... Ele não conseguia nem imaginar o que aconteceria se o Conselho descobrisse que ele havia largado sua missão para viajar a uma cidade humana onde o Conselho não tinha qualquer negócio. E, para piorar, na companhia de um humano.
- Dago? Tudo bem? – Ícaro chamou-o de volta à realidade no exato instante em que ele começara a visualizar as consequências que cairiam sobre ambos se algum dia o Conselho ficasse sabendo do que ele fizera, as quais, em geral, envolviam dragões feitos de ossos brotando da terra e rios caudalosos de lava despencando do teto de cavernas escuras. Ele então piscou algumas vezes para seus olhos entrarem em foco.
- Hã? Claro, claro... – Ele falou sem prestar muita atenção no que dizia. 4669 ainda sentia uma aflição intensa, e ele acabara de tomar consciência de que seus dedos estavam gélidos e suas mãos suadas. – Eu só... Hã... Me perdi... Estava pensando demais...
- Em quê, exatamente? – O druida indagou, sua expressão era um misto de riso com um leve quê de ofensa pelo outro não ter prestado em atenção em absolutamente nada que ele dissera sobre sua cidade-natal.
- Nada, nada... É só que eu... – 4669, entretanto, jamais chegou a terminar aquela frase. No exato instante em que ele se pôs a dizê-la, seus olhos vagaram para algum ponto atrás de Ícaro, no horizonte, além do depósito, em meio às árvores que compunham a paisagem. Quando seus olhos passaram pelo espaço que havia entre um pequeno grupo de ciprestes, ele teve a certeza de ver alguém parado, como se estivesse os observando. Alguém, não. Algo. Uma criatura hedionda, retorcida, de carnes carcomidas e numerosas fraturas expostas estava tentando se manter em pé em meio às árvores, uma de suas pernas quebrada em um ângulo estranho, de modo que aquilo precisava estar em constante movimento para não desabar. Seus braços eram anormalmente longos, dobrados em direções divergentes, e sua cabeça estava solta sobre o pescoço, sendo impossível observar seu rosto, se é que havia algum. Alguns trapos muito velhos e rasgados cobriam partes do seu corpanzil apodrecido, e, apesar de aquele ser estar longe, o feiticeiro tinha certeza de que ele desprendia um odor tão intenso quanto desagradável.
Dagobald Tarantella soltou então uma exclamação audível e jogou o corpo para trás, quase capotando na direção do mar. Ele não precisara de nem um segundo para reconhecer aquela criatura. Ele estava habituado a ver vários daqueles por todos os lados. Aquilo era um dos muitos defuntos que compunham a paisagem da Necrópole, o lacaio favorito dos membros do Conselho, que sempre apareciam em companhia de uns dois daqueles. E, no instante em que ele se deu conta do que aquilo significava, ele sentiu seus membros serem tomados de um torpor quase irresistível, e o pavor que há dias vinha rastejando sob a sua pele pareceu explodir dos seus poros e arrastá-lo para o Inferno. Ele apenas tomou ciência do quanto seu corpo se paralisara, de como sua respiração tornara-se sôfrega e de como seus olhos haviam se arregalado quando Ícaro agarrou seus ombros e começou a sacudi-lo, como se quisesse arrancá-lo de um transe.
- Dagobald? O que houve? O que está havendo...? – Ele dizia enquanto o olhava com uma expressão de profunda preocupação nos olhos. O feiticeiro, entretanto, sentia como se sua língua tivesse se colado ao céu da boca, seus olhos ainda vidrados e fixos em um ponto qualquer no horizonte. Eles sabem! Eles sabem que eu estou aqui! Eles estão aqui! Ele queria gritar, jogar Ícaro para longe, mandá-lo fugir. Ele mesmo queria fugir junto com ele. No entanto, 4669 permaneceu imóvel, tomado de pavor, seus pensamentos em disparada consumindo cada parte da sua cabeça.
- O que foi? Você viu alguma coisa? – Ícaro agora virara o rosto na direção em que 4669 ainda estava olhando, como se buscasse algo, mas sem sucesso. – Não tem nada lá!
Aquelas palavras pareceram surtir algum efeito sobre o Bonelord, que finalmente conseguiu piscar os olhos algumas vezes e se dar conta de que, efetivamente, não havia absolutamente nada parado entre as árvores no horizonte. Mas estava lá! Eu vi! Um dos servos dos Anciãos! Ele tinha certeza do que vira, certeza de que havia pelo menos um daqueles defuntos hediondos rondando Ab’Dendriel. E ele também tivera certeza de que a criatura, apesar de morta, apesar de podre, apesar de nem mesmo estar efetivamente olhando para ele sabia que ele estava ali.
- Eu preciso ir. – Ele se ouviu dizendo, sem ter consciência de ter movido os lábios ou a língua. Em um movimento ágil, o feiticeiro pôs-se em pé e cambaleou um pouco enquanto recobrava o equilíbrio e se recuperava da leve tontura que viera com o movimento súbito.
- O quê?! Como assim?! O que está havendo...? Dagobald...?
- Eu preciso ir! – Ele repetiu, desta vez com mais veemência, sem olhar na direção de Ícaro. Ele teve consciência de que o druida protestara alguma coisa, de que ele tentara detê-lo, mas ele esforçou-se ao máximo para ignorar o outro e se desvincilhar dos seus braços. Sem olhar para trás, o Bonelord se pôs a correr o mais rápido possível, cruzando os campos que antecediam o mar em velocidade exemplar e saltando a cerca que os limitava em um movimento único, como se correr rápido fosse a melhor forma de se livrar daquele problema. Enquanto ele descia as escadas de madeira de dois em dois degraus, ele sentia seu coração saltando pela boca e uma sensação de pavor incontrolável enfiando as garras nas suas tripas. Suas pernas traçavam aquele caminho automaticamente, sem que seu cérebro tomasse consciência do que fazia, pois sua mente estava ocupada demais tentando processar o que acabara de acontecer. O Conselho enviou um agente para me espionar! Eles estão atrás de mim! Ele devia ter imaginado que seu sumiço não passaria despercebido. Ele deveria ter sabido que aquilo aconteceria cedo ou tarde.
Ele corria agilmente pelos corredores e galerias que compunham o complexo sistema subterrâneo de Ab’Dendriel, lentamente se dando conta de que suas pernas o estavam levando para sua caverna. Ele precisava sumir dali. Pegar suas coisas e desaparecer da cidade. Talvez ele conseguisse convencer Ícaro a ir com ele. Eu não posso deixá-lo aqui! O Conselho o encontrará! Enquanto ele corria, ele sentia o desespero consumindo-o de uma forma que ele não achava ser possível. Eu estraguei tudo! Eu fodi com a minha vida e agora eu fodi com a dele também! Sua ansiedade crescia a cada segundo, e ele sentia que não iria suportar conviver com aqueles pensamentos e sensações. Foi burrice minha achar que eu poderia simplesmente voltar lá um dia! Eu nunca mais posso voltar! Eu preciso sumir! Ele então se viu no corredor em que se situava sua caverna, seu lar, e acelerou ainda mais para chegar logo em seu refúgio. Entretanto, no instante em que ele dobrou uma curva fechada para adentrar na sua caverninha mal-iluminada, 4669 viu algo que o fez dar o maior grito de horror que ele jamais soltara, fazendo-o sobressaltar-se e tropeçar nos próprios pés. Ele então abriu os braços para tentar amparar sua queda, e, no processo, acertou o espelhinho tosco que ele pendurara na parede ao lado da entrada com o braço direito e ouvi-o soltando-se da parede e caindo ao chão, onde o vidro partiu-se em incontáveis fragmentos. O Bonelord em forma humana então caiu de bunda no chão, seus olhos fixos em algum ponto no interior da sua casa.
Cinco olhos o observavam do meio do recinto, um deles maior, castanho, com numerosas veias avermelhadas pulsando nas órbitas, e os outros quatro menores, presos nas extremidades de quatro longos e nodosos tentáculos, dois de cada lado de um gigantesco corpo flutuante. A pele do ser que o observava era doentiamente avermelhada, como carne deixada para estragar ao sol, e tinha um aspecto que, naquele instante, lhe parecia repugnante. Os lábios da grande boca do Bonelord estavam constraídos, e seus olhos pareciam afogados em uma expressão de profunda tristeza e descontentamento. Apesar do que um humano esperaria, ele não exalava qualquer odor; se não fosse tão grande e se não estivesse parado apenas alguns passos além da entrada da gruta, talvez sua presença nem mesmo fosse perceptível a um observador desatento.
- Então é isso que você tem feito, meu aprendiz? – Disse 1593 em um sussurro gutural, monstruoso, mal movendo seus lábios enquanto usava as palavras de uma língua que ele mesmo lhe ensinara muito tempo no passado. Atrás do Ancião, dois defuntos idênticos ao que ele vira na superfície postavam-se de braços toscamente cruzados, seus rostos apontados em direções aleatórias, distorcidos pela dor da morte. – Que vergonha... Que decepção...
***
- Não, Ezekiel. Não é isso que estamos procurando. – Batráquio disse pelo que lhe pareceu a vigésima vez nos últimos trinta minutos. O esqueleto à sua frente, se pudesse, certamente demonstraria algo semelhante à decepção. Entretanto, ele apenas deu de ombros e largou o pesado livro que trouxera para o seu mestre no chão como se fosse algo completamente dispensável e se virou, disparando em alta velocidade entre as estantes. Ao atingir o chão, o livro provocou um baque surdo que ecoou longamente pelo grande salão onde ficava a biblioteca da Necrópole, de modo que Batráquio teve que reprimir um palavrão. Esse imbecil vai acabar chamando a atenção de alguém! Agilmente, o feiticeiro se abaixou e ajuntou o livro escrito em 469 do chão. Batráquio deu uma última olhada no título da obra, o qual ele penosamente conseguira traduzir para Ensaios sobre Matanças I, antes de largá-lo sobre a estante que se erguia imponentemente à sua frente. Se 486486 enxergar isso ele vai me comer vivo, ele pensou. Bom... Ele vai me comer vivo de um jeito ou de outro.
A biblioteca da Necrópole localizava-se em um prédio vagamente retangular, um dos poucos na cidade que não tinha a forma de uma pirâmide, o qual erguia-se suspenso do alto de uma série de pilares construídos com grande ossos reforçados por magia, sendo conectado ao chão ainda por uma longa escadaria de mármore amarelada, gasta pelos anos, que partia de um pátio de pequenas pedrinhas cinzentas duras e visivelmente muito distintas da grudenta areia escura e fétida que compunha a maior parte do chão da cidade. Felizmente para Batráquio, a biblioteca fora construída próxima às paredes da porção sul da caverna, de modo que seu trajeto da entrada até as escadarias não fora particularmente longo ou difícil. Como ele previra, a maioria dos defuntos e Bonelords tivera sua atenção atraída pelo caos causado por Karina do outro lado da cidade, muito provavelmente crentes de que ela tinha alguma relação com o invasor que fora detectado anteriormente. Se ele fora visto por algo ou alguém, ele não sabia. Mas, considerando-se que já faziam uns quarenta e cinco minutos que ele estava ali em cima, era quase seguro acreditar que tudo transcorrera como o planejado. O problema vai ser sair daqui depois...
Batráquio apertou os olhos e voltou sua atenção para os incontáveis volumes espremidos nas prateleiras da longas estantes da biblioteca, as quais formavam um verdadeiro labirinto no grande salão de paredes de pedra escura e piso de mármore negro. Não havia qualquer fonte de iluminação na biblioteca: Bonelords tinham a visão naturalmente adaptada para a escuridão, de forma que archotes ou piras de bronze eram completamente dispensáveis. O prédio não possuía janelas, e a atmosfera ali dentro parecia rarefeita, dificultando ainda mais a respiração dele. Além disso, não havia alçapão para cobrir o fosso da escada, logo, o feiticeiro achou que seria pouco prudente utilizar algum feitiço de iluminação, receoso de que isso pudesse chamar a atenção de alguém no andar debaixo, obrigando-se então a passar os olhos pelas estantes na mais completa escuridão. Ler naquelas condições era um exercício imbecil e nada prático, mas era preferível aquilo a se ver cercado por vinte Bonelords e pelo Conselhos dos Anciãos.
O Guia Definitivo das Poções de Sangue... A Morte e os Mortais... O Amado da Terra.... Não, Âmago! O Âmago da Terra! Ele ia se esforçando para decifrar os títulos das obras escritos na lateral dos livros, buscando algo que ele nem mesmo sabia o que era. Pelo menos aquela atividade o distraía de seus pensamentos. Eu estou de volta. Eu retornei à Necrópole. Eu estou aqui de novo depois de tantos anos! Seu coração batia tão rápido que ele quase temia que ele pudesse denunciá-lo. Sua boca estava seca desde que ele adentrara a caverna, e aquilo nada tinha a ver com o ar cada vez mais denso e a temperatura altíssima que fazia ali. Invocando os Mortos I... Invocando os Mortos II... Como fazer para que seus ghouls não mordam seus tentáculos... Fazia tanto tempo que ele estivera ali pela última vez que ele já quase esquecera como aquela biblioteca estava organizada. Os livros pareciam distribuídos de formas aleatórias, caóticas, sem qualquer padrão. O único que sabe navegar nesse lugar é o 486486, pensou Batráquio enquanto engolia em seco e sentia suas vísceras se revirarem pela enésima vez desde que tudo aquilo começara. E ele não está aqui...
Havia algo errado, e ele sabia disso. Apesar de seus mais insanos delírios e de seu planejamento inicial, Batráquio sempre soubera que penetrar na Necrópole sem ser percebido e sem causar uma comoção desnecessária era praticamente impossível. A cidade sempre fora lotada de defuntos, Bonelords e Gazers, além dos membros do Conselho, que frequentemente transitavam entre as pirâmides, os cemitérios e a biblioteca. Entretanto, apesar do confronto inicial, ele conseguira chegar até ali sem nenhum ferimento, sem precisar matar nenhum Bonelord, sem chamar a atenção de nenhum deles e sem encontrar um único Ancião. E, para coroar, 486486 não estava na biblioteca. Se houvesse uma ameaça de invasão à Necrópole, 486486 jamais deixaria a biblioteca desprotegida. Aquele acervo era alvo das mais insanas lendas e ilusões no mundo superior, e Batráquio já perdera as contas de quantas vezes ouvira estudiosos endoidados anunciarem para o mundo o quanto desejavam pôr as mãos naqueles livros. Se houvesse qualquer ameaça à cidade, 486486 estaria ali para proteger os seus livros preciosos. Mas ele não está...
Um ruído às suas costas indicou que Ezekiel havia voltado mais uma vez. Respirando fundo e tentando ao máximo controlar o desejo de explodir a cabeça do seu servo, Batráquio girou os calcanhares e esperou que o esqueleto fantasmagórico de Ezekiel surgisse em meio ao escuro que consumia as estantes, caminhando apressado com um livro de aspecto antigo, mas muito fino, firmemente preso em suas mãos.
- Esqueletos Feitos em Casa – Batráquio leu quando Ezekiel estendeu o volume para ele, sua expressão facial vazia parecendo, por alguma razão, assustadoramente risonha. O feiticeiro revirou os olhos e soltou um muxoxo de impaciência. – Eu escrevi esse livro, Ezekiel. Está vendo meu nome ali? 4669?! Eu escrevi! E, além do que, isso é um guia para Gazers! Gazers! Eu preciso de algo mais avançado! Agora devolva isso onde você achou e não volte aqui até achar algum livro de transmutações avançadas!
Impaciente, ele enfiou o livro de volta nas mãos ossudas do esqueleto, que virou-se e saiu correndo na direção de onde viera, sumindo entre as estantes. Batráquio então soltou um longo e penoso suspiro, sentindo-se esgotado. O que eu vim fazer aqui, afinal? Ele decidira que sua primeira parada ao regressar seria a biblioteca, onde ele acreditava piamente que encontraria um livro que poderia ajudá-lo a quebrar de vez a maldição da maldita bruxa do pântano. Isso é inútil! Inútil! Esse lugar é enorme, eu nunca vou conseguir encontrar algo aqui! Consumido pela impaciência que sentia desde que subira aquelas escadas quase uma hora atrás, ele deu um chute na pesada estante à sua frente, a qual continuou perfeitamente impassível após receber o golpe, ao contrário dos dedos do seu pé, que começaram a latejar. Bosta! Grande, fedorento pedaço de bosta de dragão! Ele não conseguia se livrar daquela inquietação, daquela sensação de que algo ali estava muito errado, de que ele jamais deveria ter retornado ao solo materno.
Subitamente, ele parou de caminhar pelo longo corredor em que se encontrava ao enxergar um livro vagamente familiar. Habilmente, Batráquio enfiou as mãos na prateleira e o arrancou de lá, reconhecendo-o de imediato sem nem mesmo precisar ler o título. O Livro das Transmutações. Em suas mãos, aquele pesado livro parecia arder em brasa, e a capa de couro, que trazia a imagem de um dragão, parecia gozar da sua cara, como se tivesse esperado anos para vê-lo novamente. Com um aperto no peito e uma sensação de pesar na boca do estômago, Batráquio correu os dedos pelas páginas do volume sem abri-lo, receoso do que poderia encontrar se o fizesse. Esse livro arruinou a minha vida, ele se viu pensando com amargura enquanto uma repentina fúria começava a escalar sua garganta. Esse livro me destruiu! Por que essa merda ainda está aqui? O que essa porcaria do caralho ainda faz aqui?!
Um ruído inesperado às suas costas o despertou de sua fúria, impedindo-o de atear fogo no livro de Dagobald, o Insano, ali mesmo. Revirando os olhos mais uma vez, crente de que seu servo voltara com outra obra completamente inútil, Batráquio deu as costas para as prateleiras da estante que estava estudando.
- Ezekiel, eu já não falei que... – No entanto, ele calou-se de imediato. Às suas costas estendia-se outro longo corredor praticamente invisível naquela completa ausência de luz; ele mal podia enxergar as estantes que delimitavam o espaço. Entretanto, Ezekiel não estava ali. O estranho ruído repetiu-se, e Batráquio sentiu uma imensa dificuldade em identificá-lo. Não era um passo. Não era uma voz. O que era? Com o coração batendo velozmente, o feiticeiro deu alguns passos para frente, adentrando no corredor, sentindo-se envolver pelo negrume e pelo frio que parecia emanar daquela seção da biblioteca, tão distante do fosso da escadaria. Inexplicavelmente, ele se pegou pensando em Karina enquanto caminhava, pé ante pé, na direção da fonte do estranho som. Será que ela já terminou? Logo que ele subira as escadas ele ainda conseguira ouvir o caos provocado pela sua serva, mas já há muito que ele não ouvia mais nada vindo de fora das paredes escuras do prédio, como se toda a cidade ao seu redor tivesse simplesmente cessado de existir. Será que ela conseguiu escapar? Será que... Será que alguém já sabe que eu estou aqui...? Se ele fosse descoberto ali, não haveria escapatória. Ele estava se aproximando cada vez mais da fonte do barulho agora. Sua respiração estava tensa. Era um som fofo, suave. Ele enfim conseguiu identificá-lo. Era o som de páginas sendo agilmente movidas. Havia alguém ali com ele.
- Exori vis! – Ele murmurou, plenamente ciente da imprudência da sua ação. Uma esfera de energia azulada brotou da palma da sua mão direita e foi disparada ao longo do corredor, iluminando-o completamente enquanto voava velozmente e colidia com o piso na outra extremidade, errando a estante por muito pouco e espalhando uma série de faíscas azuis e arroxeadas que pareceram correr pelo piso de mármore por alguns segundos antes de desaparecerem. Batráquio nada conseguira identificar de incomum com a luz gerada, mas o ataque fora o suficiente para amedrontar o causador do ruído, que logo surgiu de um corredor lateral, flutuando em disparada para longe do local onde a esfera de energia atingira o chão e parando na sua frente, com um sobressalto.
O pequenino Gazer não devia ser maior do que um cachorro; era provavelmente muito, muito jovem. Sua pele tinha um tom verde esmeralda estranhamente bonito. Seu único olho grande e escuro estava vidrado de pavor, evidenciando a imensa surpresa que o coitado levara ao se deparar com um ataque daqueles. Do alto do seu corpo arredondado erguia-se um longo tentáculo nodoso cego na ponta, e das laterais saíam dois pequenos flagelos de aparência semelhante, mas muito mais curtos. O Gazer tremia-se todo e parecia paralisado de horror ao deparar-se com uma criatura estranha como aquela ali. Estivera provavelmente lendo em silêncio quando ele entrara, e talvez estivesse tão imerso que nem mesmo o ouvira conversando com Ezekiel, ou talvez se paralisara de horror e acabara produzindo aqueles ruídos enquanto tentava repor os livros nas prateleiras para fugir dali antes de ser encontrado.
- Ei... Tudo bem, criança. Não precisa ficar assim. – Batráquio sussurrou, tentando imprimir o tom de voz mais amistoso possível.
Sem saber porquê, ele se percebeu abaixando o corpo, deixando seus olhos na mesma altura que o único olho do Gazer, que continuava a tremer como se estivesse morrendo de frio. A visão daquela criaturinha amedrontada pareceu mexer com suas emoções mais do que a visita à biblioteca em si.
- Ah, claro. Você não entende essa linguagem... – Ele disse em seguida, mais para si do que para o Gazer. Muitos Bonelords arriscavam uma palavra ou duas, às vezes algumas frases naquela língua, sobretudo quando estavam na presença de humanos, mas eram poucos os que realmente conseguiam se comunicar extensamente nela. Ele só aprendera porque seu mestre, 1593, um profundo admirador da cultura humana assim como ele o ensinara quando ele ainda era muito jovem. – Hã... Eu não sei como te fazer entender isso, então... Mas eu não estou aqui para te machucar...
- É uma lástima que eu não possa dizer o mesmo. – Rugiu uma voz assombrosa às suas costas, fazendo os pêlos da sua nuca eriçarem-se e obrigando-o a ficar em pé de imediato. Vindo sabe-se lá de onde e atraído sabe-se lá pelo quê, surgira às suas costas a figura de um imenso e velhíssimo Bonelord, cuja pele era marcada por numerosas e profundas dobras e rugas. Dos seus quatro olhos laterais, pelo menos três eram leitosos e estavam permanentemente apontados para baixo, como se seus tentáculos estivessem cansados demais para se erguerem, e o quarto girava em todas as direções em uma velocidade difícil de acompanhar. Seu rosto trazia uma expressão de perpétuo cansaço, e sua voz era arrastada, vinda do fundo da garganta, quase um sussurro bestial e difícil de compreender.
Batráquio sentiu um solavanco no fundo do estômago e engoliu em seco enquanto dava alguns passos para trás, não esbarrando no Gazer por pouco; este, por sua vez, deu a volta no estranho visitante da biblioteca e foi se esconder atrás de seu recém-chegado protetor.
- Então, humano... – Rosnou 486486, que parecia engoli-lo com seu grande olho central, cuja íris de cor azul-escura brilhava com uma intensidade perigosa. Fazia muitos anos desde que Batráquio o vira pela última vez, mas ele estava igualzinho ao que ele podia se lembrar. – Quais são suas últimas palavras antes de eu queimar seu corpo e apagá-lo deste plano de existência?
Inexplicavelmente, Batráquio conseguiu sorrir. Uma sensação curiosa surgiu em seu peito, como se apenas então ele tivesse certeza de que voltara para casa.
- Olá, Blinky.
E, então, veio o fogo.
Batráquio revira a biblioteca da Necrópole em busca de algo que o ajude, sem saber que não está exatamente a sós com seu criado...
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Agora com SSs. Tem no capítulo 4 também, podem ir lá ver. Sim, todo o drama pela falta de print foi por causa dessas fotchenhas bocós sem nada. O autor é minimalista rs.
Bônus excluído do capítulo por pura liberdade artística do autor:
Spoiler: Bônus
"Será que vai ser tenso descer no Hellgate no level 42 pra tirar print? Naaah, acho que vai ser de boas"
Mano, que escrita do caralho, na boa. Identifiquei-me de sobremaneira, os elementos que você utiliza em suas histórias são muito próximos daqueles que considero bons pra uma boa história.
O interesse por Ab'Dendriel e a ambientação em todos os aspectos inerentes à cidade é, e não poderia utilizar outra expressão, inebriante. Que dádiva poder ter contato com um conteúdo desse gênero.
Conte comigo. Estarei aqui a cada novo capítulo.
Obs.: que fim de capítulo foi esse? Gênio. Gênio em cada palavra.
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