Caso tenha dado certo, obg pela ajuda, Iridium.
Parte II
Batráquio não sabia dizer quanto tempo se passara desde que 486486 o pedira para acompanhá-lo, mas ele estava certo de que fora mais do que ele estava disposto a perder ali.
Eu preciso encontrar 1593!, ele insistia em pensar repetidamente enquanto, silenciosamente, seguia a passos breves o velhíssimo Bonelord que muito vagarosamente ia flutuando entre as estantes, fazendo paradinhas ocasionais aqui e ali para checar as prateleiras. A expressão facial que ele adotara quando Batráquio se abrira com ele sobre sua necessidade de rever seu mestre ainda latejava no fundo da sua mente, tal qual a amarga sensação que percorrera sua cabeça ao vê-la. Ele não tinha como ter certeza do que ocorrera com 1593 durantes os muitos anos da sua ausência, mas a reação do bibliotecário lhe dava margem para uma única interpretação, a qual ele se recusava em levar a sério.
1593 não está morto, ele insistia consigo mesmo.
Não pode estar. O Bonelord mais brilhante que ele conhecera, o Bonelord que o criara, o Bonelord que mais remotamente chegara de compreendê-lo.
Ele não está morto. Ele não tinha viajado até ali para descobrir que seu mestre não estava mais naquele plano. Aquela ideia era inconcebível, inaceitável, inadmissível.
A única coisa pior do que a tempestade confusa e dolorosa de ideias que rodopiava na mente do feiticeiro naquele instante era o absoluto silêncio de 486486 desde que aquela andança começara. Batráquio esperara que, após alguns segundos de desconforto, o curador fosse enfim revelar a ele o destino do Ancião. Entretanto, quanto mais o tempo passava, mais improvável parecia ser a chegada do momento em que ele finalmente diria a verdade. A visível hesitação do outro em tocar naquele assunto só fazia a angústia de Batráquio crescer. Ele já estava voltando a sentir sua costumeira ira, sinalizada por uma vontade assassina de explodir o bibliotecário mesclada com o desejo de tortura-lo até que ele finalmente falasse tudo que sabia.
Eu preciso saber, ele pensava sofregamente.
Eu só preciso que ele me diga o que houve com 1593!
Como se lesse sua mente, 486486 enfim quebrou o silêncio entre eles, e o fez de uma forma tão contida e casual que fez Batráquio pensar que ele sequer existira, e que toda a enérgica discussão que ambos haviam tido anteriormente não passara de fruto da sua imaginação.
- Não estou certo se você prestou atenção nos detalhes quando ingressou na cidade novamente... – O velho começou a falar pausadamente, sem tirar seus olhos dos livros e das prateleiras e sem parar seu movimento vagaroso. – Imagino que você não tenha tido tempo de averiguar o estado atual da Necrópole... Ou talvez tenha visto e não se importe...
- O que isso tem a ver com 1593? – Ele interrompeu a fala do bibliotecário impetuosamente, com a voz afobada, aproximando-se tanto do corpo do outro que ele quase se atirara sobre o velho.
- Eu apreciaria muito se você não me interrompesse, 4669. Estou tentando seguir uma linha de raciocínio aqui... – O curador retrucou calmamente, e foi aquilo, mais do que sua evidente escusa em tocar no nome do Ancião, que voltou a inflamar o ânimo do feiticeiro.
- Dane-se! – Ele rugiu, tentando manter o máximo de controle para não começar a berrar nos corredores da biblioteca e atrair a atenção de algum Bonelord errante que estivesse passeando no andar debaixo. – Dane-se a sua linha de raciocínio! Eu lhe pedi que me ajudasse a encontrar 1593, 486486, e você desconversou da forma mais escrota possível! Eu vi a cara que você fez quando eu toquei no assunto... Eu entendi... Subentendi... Aconteceu alguma coisa com ele, não foi? Me diga!
Me diga!
Ele pronunciou as últimas palavras com tamanha animosidade que acabou forçando o bibliotecário a virar-se e pousar seus olhos cansados em seu semblante furioso. 486486 encarou-o por breves segundos antes de soltar um muxoxo de impaciência, seguido de um longo e sonoro suspiro.
- Você continua o mesmo. Sempre coberto de razão, sempre dando preferência às suas palavras em detrimento das dos demais. – 486486 retorquiu enquanto lançava-lhe um olhar do mais profundo desagrado. Batráquio abriu a boca para retrucar, mas o bibliotecário calou-o com suas próprias palavras. – Você precisa aprender a ouvir, 4669... Se o que você quer é saber de 1593, então você saberá. Mas eu preciso que você entenda... Eu preciso que você
compreenda tudo que aconteceu desde que você foi mandado embora.
- E o que isso tem...
- Isso tem absolutamente
tudo a ver com o destino daquele que você insiste em chamar de mestre. – 486486 retrucou asperamente, mais uma vez calando o impaciente feiticeiro. – Não estou interessado se você não veio até aqui para ouvir, se você não quer se dar ao trabalho de conhecer as consequências do seus atos irresponsáveis do passado. Você vai me ouvir, 4669... Se você deseja realmente rever 1593... Você irá me ouvir.
Batráquio cruzou os braços, desgostoso, enquanto engolia em seco e lançava um olhar de desaprovação na direção do bibliotecário. 486486 sustentou o seu olhar, deixando claro que não haveria como ele escapar daquele discurso.
Eu poderia simplesmente dar as costas e ir embora daqui, pensou uma entidade abstrata em algum lugar na sua mente.
Eu sei onde fica a pirâmide de 1593. Eu posso encontrá-lo sozinho. Ele quase chegou a sentir seus pés formigarem enquanto se preparavam para levá-lo para longe dali. Batráquio, contudo, permaneceu no mesmo local, inerte, cravado no chão como uma estaca. Havia algo no tom de 486486, algo na forma como a qual ele parecia suplicar com a voz que o impediu de ir embora. Além do quê, havia inegavelmente uma parte generosa do seu ser que desejava descobrir o que acontecera na Necrópole desde que ele se fora. O discurso inflamado de 486486 momentos antes despertara nele algum tipo de sentimento de culpa que parecia impedi-lo de simplesmente ignorá-lo e descer as escadas.
Você ignorou o seu passado por tempo demais, disse uma voz sábia perdida entre seus pensamentos.
Eu sei, ele respondeu.
Se você deseja mesmo terminar o que começou, você precisa ficar e ouvir, voltou a dizer a voz.
Eu sei.
- Como eu ia dizendo... Você talvez não tenha notado como esta cidade está... Diferente. – 486486 retomou seu tom comedido e, mais uma vez, se pôs a flutuar entre as estantes, embrenhando-se cada vez mais no interior do confuso labirinto que era o acervo daquela biblioteca. – Nós já não somos mais os mesmo, 4669... Nem somos tantos quanto éramos quando você vivia aqui.
É verdade, Batráquio se pegou pensando enquanto acompanhava o velho em sua atividade. Ele realmente se ativera muito pouco aos detalhes, mas, como ele já havia parado para pensar enquanto esperava a aparição de 486486 na biblioteca, havia realmente algo muito estranho ali. Apesar da sua recepção intensa, ele percebera poucos Bonelords flutuando pelos limites da cidade e, agora que caía em si, Batráquio percebia o quão incomum era o fato de ele não ter encontrado nenhum outro Bonelord na biblioteca quando chegou. Na realidade, o pequenino Gazer que ele surpreendera com seu ataque elétrico não apenas fora o único outro Bonelord que ele vira na biblioteca desde que chegara, mas também fora o único juvenil que ele pensava ter visto.
Nunca houve muitos Gazers por aqui mesmo, mas é estranho enxergar apenas um... Além do quê, os Gazers raramente se afastavam do Ancião que os havia criado, e Batráquio não encontrara nenhum membro do Conselho até aquele instante. E aquilo, mais do que todas as outras coisas, era o que mais lhe perturbava.
Onde estão os Anciãos? Por que nenhum deles subiu até aqui para ter notícias de 486486?
- Tais mudanças, entretanto, não são recentes... Elas começaram há muito tempo. Na realidade, acredito ser prudente associá-las aos efeitos imediatos da sua expulsão. – O bibliotecário prosseguiu, arrancando de Batráquio alguns resmungos baixinhos ao mencionar mais uma vez o episódio. – Acho que é seguro dizer que tudo começou com a partida de 99591.
O feiticeiro estacou no lugar e, alguns instantes depois, 486486 também parou, mas permaneceu com as costas voltadas ao homem, sem encará-lo. Batráquio sentiu um sensação curiosa correndo pelo seu estômago enquanto sua mente assimilava as palavras que o bibliotecário tão casualmente jogara sobre ele.
99591... Partiu? Não pode ser!
- 99591 não está mais aqui...? – Ele indagou, procurando ter certeza de que não ouvira errado.
Se isso for verdade... Não pode ser um bom sinal! Batráquio estava começando a entender o que 486486 quisera dizer com “catástrofe” momentos antes.
- Foi o que eu disse, 4669. – O curador retorquiu com impaciência. Havia um certo nervosismo na sua voz que parecia indicar que ele não estava nem um pouco confortável em lhe contar aquelas coisas. – 99591 desapareceu apenas algumas semanas após o seu julgamento.
Batráquio se calou e sentiu um frio descomunal descer pela sua espinha e um vazio consumir suas entranhas.
Então eu realmente causei algum impacto por aqui... 99591 era, para todos os efeitos, o líder espiritual e político da sociedade dos Bonelords, apesar de jamais ter sido eleito como tal. Apesar de ser um Ancião particularmente sádico em alguns momentos, era inegável que a Necrópole prosperara como nunca a partir do momento que ele assumira seu cargo não-oficial. Sob o meticuloso cuidado dele, os Bonelords haviam estendido seus domínios para outras partes do Tibia, fundado assentamentos em Fibula, no Pântano e até mesmo enviado representantes para a selva de Tiquanda e as Ilhas de Gelo. 99591 definira um novo padrão de excelência entre os Anciãos, que passaram a cobrar cada vez mais empenho e competência de seus aprendizes, levando ao surgimento de Bonelords cada vez mais fortes, impetuosos e cruéis. Dizia-se por ali que ele seria o único capaz de conduzir a sociedade dos Bonelords de volta à superfície e aos seus antigos tempos de glória, quando ela dominara a maior parte do Continente.
- Você está insinuando que é minha culpa que ele tenha... sumido...? – Ele falou debilmente enquanto tentava assimilar a proporção do que 486 acabara de lhe informar.
99591 foi embora da Necrópole e a culpa pode ter sido minha. Puta que pariu.
- Metade dos Bonelords que ainda vivem aqui certamente acredita nisso, assim como praticamente todos os Anciãos. – 486486 disse, e Batráquio teve certeza de que se ele tivesse um par de braços, ele estaria dando de ombros naquele exato instante.
- Isso não quer necessariamente dizer que...
- Você está falhando em analisar a figura inteira, 4669! – Exclamou o curador, enérgico, finalmente virando-se e pousando seu olhar sobre o homem à sua frente, o qual estava decididamente nervoso com o rumo que aquela conversa ia tomando. – Você nos expôs para os habitantes da superfície de uma forma pouquíssimo desejosa. Sim, sabemos que lendas sobre nossa civilização já eram contadas pelos inferiores... Sabemos que os elfos tinham pleno conhecimento deste nosso assentamento... Mas sua aparição desastrosa na cidade de Ab’Dendriel pareceu relembrá-los de nossa existência, de nossos segredos... Depois que você partiu, verdadeiros enxames de humanos imundos se atreveram a aparecer em nosso domínio! Muitos morreram protegendo a integridade da nossa cidade, inclusive Anciãos. Muitos pereceram às escadas desta biblioteca apenas para impedir que as raças mais baixas tivessem acesso ao nosso conhecimento milenar...
486486 pareceu inflar-se como um balão e começou a dar voltas em torno de Batráquio, girando seus tentáculos, incluindo os cegos, com grande velocidade e energia, demonstrando que havia finalmente se empolgado com o assunto.
- Aqueles foram dias funestos, 4669. Dias de absoluto caos. Todas as atividades da Necrópole foram paralisadas, todos os espiões e enviados foram chamados de volta, todas as missões foram canceladas... Todos os nossos esforços se voltaram única e exclusivamente para proteger nossa gloriosa cidade dos invasores da superfície. – Dizia 486486, seu tom de voz levemente acima do normal e seus olhos perdidos em qualquer ponto do cenário. – Confesso que é difícil acreditar que conseguimos impedir que sequer um único volume fosse levado da biblioteca... É verdade que nosso exército de defuntos aumentou consideravelmente após as invasões, uma vez que muitos elfos e humanos foram vitimados... Mas as baixas em nosso lado foram pesadas. O número de Anciãos praticamente caiu pela metade, e pouquíssimos Gazers foram produzidos naquela época... Os que já existiam receberam pouca atenção e pouco treinamento, e nossa sociedade pareceu à beira do colapso.
O feiticeiro agora estava apenas parcialmente ciente dos movimentos do bibliotecário ao seu redor ou de suas palavras, sua mente jazia agora afundada em uma série incompreensível de pensamentos das mais diversas naturezas.
E eu achei que eles tivessem ficado muito bem sem mim, ele conseguia racionalizar em meio à enxurrada confusa da sua mente.
Eu os condenei. Eu os expus e fui embora para que eles lidassem com as consequências. De repente, seu exílio e todo o infortúnio que adveio dele pareciam pequenos, insignificantes perto da confusão que ele causara. Ele já deixara de se importar com o destino da Necrópole ou dos seus demais irmãos há muito, mas estar ali e ouvir aquela história de 486486 inevitavelmente fazia-o sentir-se a pior criatura em existência no Tibia.
- A moral ficou muito baixa naqueles dias. As coisas pioraram depois que os elfos enviaram um emissário para discutir os termos de um acordo de paz. Sim, isso mesmo que você ouviu, 4669. – O curador acrescentou após ver a expressão de descrença do feiticeiro. – A situação atingiu tal patamar que os elfos pareceram temer que fôssemos invadir sua cidade. Acredito que tenham interpretado sua aparição como um aviso ou coisa parecida. Francamente, me admirei que eles tivessem demorado tanto a intervir. De qualquer modo, o emissário se perdeu no caminho para cá e nunca mais se ouviu falar dele. Eles nunca voltaram a entrar em contato conosco, e, por algum tempo, temi que estivesse planejando uma invasão. Mas o tempo passou e nada aconteceu. Gradualmente, os humanos voltaram a perder o interesse em nossa civilização, ou talvez tenhamos matado todos os que o tinham. Seja como for, eventualmente voltamos a um período de relativa paz onde pudemos nos voltar a nossos antigos afazeres. Mas o estrago já havia sido feito. 99591 desapareceu no primeiro dia depois da última invasão humana.
Batráquio engoliu em seco e secou as palmas das mãos nas vestes mais uma vez, percebendo-se completamente atento ao que o outro dia. Ele sentia-se pequeno e burro, da mesma forma como se sentira tanto tempo atrás, quando ele fora julgado por todos os erros que cometera.
- Há quem diga que os últimos invasores o vitimaram e levaram consigo seu cadáver como um troféu, mas ninguém jamais encontrou qualquer prova disso. Outros acham que algum dos outros Anciãos, ou talvez todos, descontentes com os recentes acontecimentos, tenham se rebelado contra ele, o matado e jogado seu corpo nos pântanos. E também há aqueles que acreditam que ele tenha enlouquecido diante do caos que se apossou da sua cidade e simplesmente se matou. Bobagens. Eu não acredito em nada disso. – A voz de 486486, naquele ponto, estava carregada de ressentimento. Ele sempre admirara profundamente 99591, como a ampla maioria dos Bonelords. Batráquio apenas podia imaginar o choque que fora para ele e os demais descobrir que seu grandioso líder espiritual havia simplesmente sumido, deixando-os para trás à própria sorte. – Estou certo de que ele jamais tiraria a própria vida, e duvido muito que qualquer um, fosse humano ou não, seria capaz de subjugá-lo em uma luta. Não. Estou certo de que 99591 está vivo. Alguns compartilham da minha crença, e os mais tolos ainda esperam o dia em que ele voltará para colocar esta cidade de volta nos eixos... Eu, no entanto, jamais me iludi com tais fantasias.
O velhote fez uma pausa para tomar fôlego antes de continuar.
- Ele não foi o único a desaparecer. Muitos foram embora, tomados de desgosto ou vergonha. Depois que 99591 se foi, o êxodo foi ainda maior. Conseguimos descobrir que alguns fugiram para outras colônias, outros simplesmente exilaram-se e nunca mais se ouviu falar deles. Os que ficaram testemunharam o que pareceu ser o fim da nossa esmerada sociedade. Os poucos Anciãos que restaram buscaram, muitas vezes em vão, reorganizar a cidade e tentar retomar alguma normalidade. Mas faltava algo. Era evidente que as coisas não podiam continuar do jeito que estavam. A cidade estava em ruínas, a população decaíra muito, havíamos perdido o contato com muitas colônias... Era preciso que alguém assumisse o controle, alguém com a mesma força e determinação de 99591. A Necrópole precisava de um líder forte, um líder que não tivesse medo de fazer o que fosse necessário para que fôssemos grandes como um dia havíamos sido... O sentimento de abandono e o ódio que nutríamos das raças inferiores atingiu o ápice, então não ouve surpresa alguma quando 11793 foi apontado como um sucessor de 99591, mas em caráter oficial. Ele tornou-se líder do Conselho.
Batráquio estava apenas parcialmente ciente da tristeza e da amargura que haviam na voz de 486486, uma vez que, ao ouvir a menção a 11793, sua mente fora instantaneamente transportada para algum lugar no passado, para uma audiência ali mesmo na Necrópole, no andar debaixo, em que seu destino, e, aparentemente, o de todos os demais Bonelords daquela cidade fora selado. Sem perceber, ele estava rangendo os dentes e cerrando os punhos enquanto sentia sua respiração acelerar-se.
- Então ele ainda está aqui? O 11793? – Ele ouviu-se dizendo entre os dentes enquanto seu corpo tremia levemente. Ele não conseguia entender por que aquilo o surpreendera tanto.
Sempre foi o desejo dele. Todos sabiam da sede insaciável de poder que 11793 nutrira desde que ascendera a membro do Conselho muitíssimos anos do passado.
Parece que ele finalmente conseguiu o que queria, então. Para Batráquio, parecia evidente o que realmente acontecera com o antigo líder dos Bonelords.
11793 aproveitou a oportunidade que se apresentou e deu um fim no único que poderia impedi-lo de controlar essa cidade.
- É evidente. Alguns questionaram tal escolha, é claro... Mas logo ficou claro para todos que não havia decisão mais acertada a se tomar. – Disse 486486, recobrando o comedimento, sua voz voltando à normalidade.
Você não me engana, 486486, pensou Batráquio. Ele conhecia o velho bibliotecário bem demais para saber que ele jamais apoiaria 11793 em qualquer coisa que ele quisesse fazer.
Não adianta fingir para mim! Ele tinha certeza de que o curador se incluía entre os “alguns” que mencionara.
- 1593 teria sido uma escolha muito melhor que o doente mental do 11793... – Batráquio começou, sendo prontamente interrompido por um silvo baixo vindo do bibliotecário, que lançou olhares tensos para os arredores desertos.
- Cuidado com suas palavras, 4669!
- Não falei nenhuma mentira! – O feiticeiro protestou aos sussurros, visivelmente transtornado. – 11793 sempre foi um louco sádico, até mesmo pros padrões do Conselho! Ninguém o suportava, 486, eu me lembro disso! Isso não pode ser verdade! Todo mundo o odiava, todos queriam se livrar dele! Quem em sã consciência o elegeria para ter controle absoluto dessa cidade?!
- Sua escolha foi uma unanimidade entre os Anciãos. – Disse 486486, pesaroso, jogando um balde de água fria sobre o incrédulo Batráquio.
- Como é?! Isso não é possível! Ninguém faria... Como poderiam... Meu Mestre jamais compactuaria com isso!
- O Conselho estava desesperado, 4669! Pareceu evidente para todos que teríamos de engolir 11793 se quiséssemos nos reerguer! – Sibilou o velhote enquanto aproximava-se subitamente do feiticeiro e cravava seus olhos arregalados sobre ele. – Além do quê... 1593 não estava em seu pleno juízo. Ele não foi convocado para a seção extraordinária que elegeu 11793. Todos consideravam que ele estava demasiadamente...
Instável... Ninguém achou seguro dar voz ativa a ele...
Ele se calou, mas continuou parado no mesmo local, ainda encarando Batráquio, como se o desafiasse a dizer qualquer outra coisa. O feiticeiro, no entanto, ficou mudo, sustentando o olhar de 486486 e tentando assimilar suas últimas palavras. Ele sentia que finalmente estavam chegando na parte da conversa que verdadeiramente o interessava, mas havia algo em seu corpo, uma espécie de torpor culposo que parecia impedi-lo de dar continuidade ao assunto, como se quisesse preveni-lo de efetivamente descobrir o que acontecera com seu mestre. Sua necessidade de saber, entretanto, falava mais alto.
- O que você quer dizer com isso? – Ele falou, sentindo que não era apenas seu corpo que tremia, mas também sua voz.
486486 fitou-o longamente, seus olhos mais uma vez tomados de um sombra que mesclava tristeza e pena. O Bonelord mais velho hesitou por alguns instantes, seu rosto enrugado torcido em uma expressão da mais profunda dor. E, quando ele falou, sua voz saiu tão baixa que Batráquio surpreendeu-se ao conseguir captar suas palavras.
- Ah, 4669... Você não sabe mesmo...? Ou será que não quer saber? Será que sua culpa é tamanha que você se recusa a processar a verdade apenas para não ter de lidar com ela?
- Você se importa de parar com esse seu teatrinho patético e falar logo de uma vez o que eu quero saber?! – Ele explodiu, avançando na direção do bibliotecário. Entretanto, seu rosto, seus olhos e o tom da sua voz não exibiam a raiva que ele pretendia imprimir: havia apenas o medo e a insegurança.
- Você não se lembra do que houve quando 1208 morreu? – O bibliotecário falou inesperadamente, e Batráquio sentiu como se um fragmento de gelo fosse enfiado no seu estômago. – Será que todos esses anos foram o bastante para fazê-lo esquecer da culpa que o consumiu? De como você quase perdeu a cabeça? Será que você já esqueceu de tudo que sentiu naquela ocasião...?
Ele lembrava-se perfeitamente.
Mestre! Ajudar eu! Os gritos de dor, os pedidos de socorro e o desespero de 1208 estavam gravados em brasa no fundo da sua mente. A visão do seu corpo carbonizado, seus olhos vidrados em um eterno reflexo de horror, o aroma pútrido de carne queimada que emanava do seu corpo inerte... Batráquio jamais conseguiria se esquecer daquilo. Ele não precisava se esforçar para lembrar-se da dor, do sofrimento, da culpa e de como ele sentira que o mundo simplesmente desaparecera ao seu redor. Nada mais fizera sentido depois daquele dia, e ele sentia que nada mais nunca faria.
Ele está morto, 4669. Ele está morto e nada do que você fizer vai trazê-lo de volta, dissera 1593 quando ele retornara daquela missão, transtornado e com suas emoções à flor da pele.
Contenha-se!, repreendera-o 486486 quando ele fora desabafar suas emoções na biblioteca.
Não é direito que um Bonelord apresente tamanho transtorno diante da morte, você já deveria saber disso! Não é mais um Gazer imbecil ou um aprendiz! A morte é parte integrante de nossa própria existência! Aprenda a lidar com ela! Ele sabia que não deveria sentir aquela dor, que não deveria se importar tanto. 1208 morrera e ponto final. Quantos outros não haviam morrido antes dele? Entretanto, ele não conseguia deixar de sentir aquela agonia. Ele não conseguia se livrar daquela infelicidade crescente que o contaminava. A perda de 1208 causara-lhe uma aflição que ele jamais experimentara. E, por algum tempo, Batráquio achou que jamais poderia sentir uma dor maior do que aquela. Mas ele eventualmente descobriu que estivera errado.
- Eu jamais poderia me esquecer. – Ele disse, sua voz embargada pela aflição que aquela memória sempre lhe causava. Repentinamente, Batráquio sentia-se sujo, imundo, como se estivesse maculando o sagrado chão da biblioteca ao permanecer ali com aquelas emoções tão humanas aflorando da sua mente.
Pode até ser um jovem promissor... Mas essa reação é completamente indesejável, para não dizer vergonhosa, ele lembrava-se de ter visto 11793 dizer para 1593 alguns dias após o ocorrido.
Temo que você não o tenha treinado tão bem quanto acredita. É uma lástima, 1593.
- Você perdeu o seu aprendiz e, junto com ele, quase perdeu a razão. – Disse 486486. Havia uma imensa hesitação em sua voz, mas para Batráquio apenas parecia que o bibliotecário tinha um mórbido desejo de pisotear a sua dor insistentemente. – O que te faz pensar que seria diferente com 1593?
Batráquio devolveu a 486486 o olhar mais carregado de emoções que pode, como se quisesse deixar claro para o outro que ele estava indo longe demais.
- Você mesmo disse, 4669... Que sempre o considerou seu mestre, e que ele sempre o tratou como aprendiz... A relação de vocês sempre foi mais... Qual seria a palavra...? Íntima? Próxima? A relação de você sempre foi mais íntima do que seria desejoso. Do que seria apropriado... O Conselho advertiu 1593 tantas vezes de que estava cometendo um erro ao treiná-lo daquela forma, ao enviá-lo tantas vezes para a superfície, para ter contato com outras raças... Sempre acharam que ele estivesse sendo deveras...
Bondoso...
- 1593 foi o melhor mestre que eu poderia ter tido! – Batráquio respondeu rispidamente, cuspindo aquelas palavras na direção de 486486 e o desafiando com o olhar a dizer o contrário. – Ele foi... Ele
é o mais brilhante entre os Anciãos e eu devo a ele tudo que aprendi! Não se atreva a insultá-lo na minha presença, 486486!
- Eu não estou e você jamais me verá negar o imensurável conhecimento de 1593, tampouco sua incontestável habilidade com magia! – Retrucou o mais velho, devolvendo o olhar intenso de Batráquio, mas baixando a voz e buscando manter o auto-controle. – Contudo... Você pode gritar, pode me insultar, pode me atacar, se quiser, mas você não pode negar que 1593 cometeu diversos erros com você, 4669, e isso se prova através da sua vertiginosa queda!
Batráquio quis responder alguma coisa, sem saber exatamente se seria um xingamento ou um feitiço, mas as palavras afogaram-se em sua boca e instalaram-se em sua garganta, trancando-a e fazendo-o ter a sensação de que iria sufocar.
- Você não faz ideia... Ou talvez, se puder se lembrar de 1208, você irá compreender... 1593 ficou arrasado com seu destino, 4669. O seu exílio foi a ruína dele. Apesar do Conselho jamais ter formalmente o culpado pelos erros que você cometeu, boa parte da Necrópole, e, acredito eu, ele mesmo culpavam-no por tudo que aconteceu. Talvez, naquele instante, ele tenha percebido onde errou com você... Talvez tenha pensado em tudo que deveria ter feito e não fez... Seja como for, ele perdeu a razão. – A voz de 486486 agora estava nitidamente embargada também, e era visível que, apesar de suas tentativas, ele não conseguiria manter a casualidade naquela parte de sua história. – Logo depois que você partiu, ele se fechou em sua pirâmide e não foi visto por dias e dias... Muitos pensaram que ele havia sido morto durante as invasões, inclusive. Eu tentei visitá-lo uma ou duas vezes, mas ele se recusou a me receber. 1593 estava visivelmente transtornado. Dizem que destruiu um exército inteiro de ghouls apenas para extravasar sua ira. Não é de se admirar que o Conselho tenha parado de convidá-lo para suas reuniões.
Controle-se, Batráquio percebeu-se pensando enquanto 486486 fazia uma pausa para retomar o fôlego. Ele sentia seu corpo tremendo e seus olhos marejando-se, mas ele estava determinado a não demonstrar ao outro sua fraqueza, sua culpa, sua
humanidade.
Controle-se, 4669.
- Ele simplesmente... Definhou... – 486486 continuou a falar tristemente. – E junto com suas faculdades mentais, foram-se seus poderes... Chegou um momento em que ele simplesmente existia, vagando a esmo pela cidade. Confesso que achei que aquele era o fim da linha para ele... Não me orgulho em dizer isso, antes que você tenha algo a acrescentar. Você tinha razão, 4669: eu sempre admirei e respeitei 1593 profundamente, e você talvez seja capaz de compreender o quanto eu fiquei mexido ao vê-lo naquele estão deplorável...
A voz do bibliotecário lentamente morreu e seus olhos se perderam em qualquer lugar, e a Batráquio pareceu que o outro estava, talvez pela primeira vez, dando-se conta das coisas que sentira e não soubera nomear.
Eu não o culpo, ele se viu pensando.
Nunca foi da nossa natureza assimilar emoções. Agora era Batráquio quem tinha os olhos afundados em uma expressão de piedade. Passados alguns segundos, o mais velho voltou a si e, após engolir em seco e pigarrear baixinho, retomou sua linha de raciocínio.
- Enfim... Aquele não foi, afinal, o fim de 1593. Com o passar do tempo, ele começou a apresentar um quadro de melhora. Voltou a experimentar com os mortos, voltou a frequentar a biblioteca... Ele nunca mais voltou a ser o mesmo, no entanto... Mas parecia que, eventualmente, ele poderia voltar a ser. – 486486 fez uma nova pausa e, mais uma vez, engoliu em seco, levando sua tristeza e melancolia para o fundo do seu ser. Ele piscou algumas vezes e, então, seu rosto cobriu-se em uma expressão sombria que pareceu deslizar também para sua voz. – Mas foi aí que
ele apareceu e tudo se pôs a perder.
Em um movimento rápido, Batráquio secou os olhos marejados com as mangas das vestes e procurou afastar suas emoções da sua mente. O tom fechado de 486486 soou como uma alerta em sua mente, despertando-o do seu torpor emocional.
- Ninguém sabe dizer como ele chegou até aqui... Ninguém nunca soube nada dele, na realidade. Jamais descobrimos seu nome, e apenas aqueles que conheciam formas verbais de comunicação eram capazes de se comunicar com ele, uma vez que seus olhos estavam... – Naquele ponto, 486486 engoliu novamente em seco, dessa vez de uma forma mais dolorosa do que antes, como se pronunciar as palavras seguintes lhe causasse uma dor imensurável. - ... Costurados.
Batráquio achava que não havia mais nada naquela conversa que pudesse surpreendê-lo ou fazê-lo sentir algum tipo de arrepio ou aperto no estômago, mas, naquele instante, ficou evidente para ele que ele se enganara.
Olhos... Costurados...? Como se estivesse imerso em um lago congelado, o feiticeiro pode sentir suas extremidades formigando até ficarem dormentes enquanto sua mente dava-se conta de que aquilo só poderia significar uma coisa. Uma coisa terrível, monstruosa, doentia.
- Você não está querendo dizer que...
- Sim, 4669. – O outro interrompeu-o mais uma vez. A atmosfera entre os dois pareceu ficar mais densa e gélida, e Batráquio, mais do que antes, percebeu-se completamente consciente de todos os seus sentidos. – Um Inominável.
Ele sentiu como se tivesse recebido uma pancada forte na cabeça.
Um Inominável... Na Necrópole? Aquela ideia era inconcebível.
Isso não pode ser verdade! Ele rapidamente lançou um olhar de pura incredulidade para o bibliotecário, esperando que ele fosse negar ou dizer que era uma brincadeirinha de mal gosto. 486486, entretanto, não tinha senso se humor para tanto.
Um Inominável na Necrópole. A ideia era ridícula. Eles viviam muito, muito longe dali, e não tinha qualquer contato com a cidade ou com o Conselho. Não fazia sentido.
- É claro que foi um choque para todos quando ele simplesmente apareceu aqui. Tínhamos acabado de superar um capitulo terrível de nossa história e estávamos certos de que não havia como as coisas voltarem a piorar... – 486486 continuou, sua voz apressada repleta de desgosto, indicando que era seu desejo terminar logo aquele assunto desagradável. – Nós nunca havíamos visto um deles antes... Apenas conhecíamos as histórias... Nunca ficou claro se ele era um exilado ou se já nascera naquele lugar horrível onde eles vivem e que ficou sabendo da cidade através de um dos traidores que se mudaram para lá... Não fez muita diferença, na verdade. Ele disse que havia sido expulso de lá, mas jamais explicou o motivo. Ele já havia completado a...
Transição... Não enxergava nada, mas era como se pudesse sentir tudo com aquela massa cerebral que exibia fora do corpo...
486486 fez uma pausa e torceu o rosto em uma expressão de inconfundível enojamento. Batráquio sentiu um arrepio pela pele ao imaginar a cena: ele também jamais vira um Inominável antes, apenas ouvira boatos sobre sua aparência completamente monstruosa, anti-natural. A existência deles era uma crime contra a natureza da morte, contra preceitos mais fundamentais da sociedade dos Bonelords, razão pela qual eles jamais se referiam àqueles traidores pelo nome que haviam escolhido para sua nova “raça”.
- Ficamos perplexos. A presença dele aqui... Acho que aquilo foi pior do que todas as invasões de humanos. – 486486 continuou seu discurso e Batráquio tentou voltar a ouvi-lo. Ele conseguia compreender o que o outro dizia: os Bonelords nutriam um sentimento de superioridade em relação a todas as demais raças, o que motivava seu profundo desprezo para com qualquer uma delas. Mas se havia algo que os Bonelords rejeitavam mais do que os elfos, os humanos, os minotauros ou qualquer outra sociedade... Eram
eles. – Não soubemos como reagir. Presumo que ele tenha ficado perplexo também. Talvez esperasse que fôssemos matá-lo. Não sei, nunca entendi por que ele veio até nós. Disse que precisava de refúgio, que queria viver entre nós... Não acredito. Nunca acreditei. Praticamente ninguém acreditou, na realidade... Exceto 11793.
O feiticeiro ergueu os seus olhos, que haviam se perdido no mármore negro do chão da biblioteca, para voltar a encarar 486486, mais uma vez incrédulo. Cada vez mais lhe parecia que aquela conversa encaminhava-se para o ridículo, para o absurdo e para o mundo da fantasia.
- Ele disse que deveríamos acolhê-lo. Disse que poderíamos aprender muito com ele, que assim poderíamos conhecer mais sobre a sociedade deles para que eventualmente pudéssemos destruí-los. – Disse 486486. – Eu não quis acreditar naquilo. Aquilo já era o cúmulo do absurdo! E não fazia sentido algum. 11793 sempre foi extremamente conservador, não era possível que ele estivesse seriamente considerando manter um deles aqui... Entretanto, já fazia meses desde que 99591 sumira e desde que ele tornara-se líder do Conselho. Era inegável que estávamos nos reconstruindo sob sua tutela. Ninguém ousou pronunciar-se contra ele. Não me orgulho de ter ficado calado na ocasião... Talvez as coisas tivessem sido diferentes... Parece que estava tudo decidido. O Inominável iria ficar, o desejo de 11793 iria prevalecer e ninguém poderia fazer nada contra aquilo. Mas então... Então ele ressurgiu das cinzas.
Batráquio sentiu um calafrio, perfeitamente ciente do que viria a seguir.
- 1593 recusou-se a admitir a permanência
dele aqui. – Batráquio sentiu um sentimento estranho, cálido, aflorar em seu peito. – Nenhum de nós esperava aquilo. Até a chegada do Inominável, 1593 assemelhava-se mais a um dos defuntos do cemitério do que qualquer outra coisa. Mas, aparentemente, aquele acontecimento despertou-o do seu transe, e o velho 1593 retornou. Suponho que presenciar um desrespeito daqueles foi um choque maior do que tudo... Ele bateu de frente com 11793 e argumentou que admitir um Inominável seria a pior de todas as traições. Evidentemente, ninguém o levou a sério, dado ao que havia acontecido com você.
486486 respirou fundo e Batráquio voltou a detectar os perigosos resquícios da tristeza em sua voz cada vez mais abafada.
- Foi terrível. Digo, todos sempre soubemos que 1593 e 11793 eram inimigos declarados... Não é como se qualquer um deles jamais tivesse se esforçado muito para disfarçar. Os dois sempre representaram pensamentos diferentes... O liberal e o conservador. Você sabe disso melhor do que eu, 4669: seu mestre sempre teve uma predisposição pouco desejável a admitir coisas que os demais achariam intoleráveis. Basta ver a forma nada ortodoxa que ele o treinou. – O bibliotecário cravou seus olhos em Batráquio de uma forma tão incisiva que pareceu ao outro que ele estava sendo despido e analisando até o tutano dos seus ossos. – A aparição do Inominável arrancou 1593 do seu torpor e reacendeu a animosidade entre os dois de uma forma absurda e tão... Surreal. Aqueles que desconheciam o apreço de 1593 pelas nossas leis chegaram a pensar que o ele apoiaria aquela iniciativa estranhíssima... Estavam errados, é claro. 11793, por outro lado, surpreendeu a todos com seu discurso. Ele alegou que era preciso expandir nossas mentes e buscar novas formas de pensamento para reerguer a Necrópole maior e mais forte do que antes, enquanto que 1593 tentou apelar para nossos valores mais fundamentais. Mas não houve jeito. Poucos foram valentes o bastante para ouvi-lo e para desafiar 11793. O Inominável ficou.
Mais uma vez, o Bonelord mais velho calou-se e lançou um olhar significativo para Batráquio, o qual ele prontamente entendeu. Um arrepio dançou pela sua espinha. Ele sabia que estava perigosamente próximo de descobrir o que realmente acontecera ao seu mestre. Ele sentiu sua boca ficando seca e a ansiedade crescendo em seu peito, mesclando-se com o receio que ele sentia do que viria a seguir.
- Foi terrível, 4669. Foi como se 11793 tivesse matado a todos nós. – O bibliotecário disse sombriamente. – Ele jogou o Inominável na pirâmide mais afastada que conseguiu achar, para que ficasse longe dos demais, e de quando em quando mandava aliados de confiança para interrogá-lo. Insistiu que tencionava apenas descobrir mais sobre os traidores. Mas era visível, desde o começo, que aquilo não poderia terminar bem. Não demorou até que alguns Bonelords, especialmente os mais jovens, visitassem aquela anormalidade quando a cidade estava quase vazia... Estavam descontentes, desiludidos... Não queriam mais continuar se submetendo a nossas leis... Depois que o primeiro foi embora, mais uma dezena se seguiu. Iludidos pelas coisas que ele dizia, que ele contava do lugar de onde viera... Um a um eles se deixaram seduzir por aquelas histórias de poder, de liberdade, de conhecimento além dos limites da vida e da morte... E então se foram. Como muitos outros, simplesmente sumiram. Eu logo percebi o que estava acontecendo, percebi quais eram as intenções daquelas tristes almas iludidas... Se eles eventualmente chegaram mesmo até a maldita ilha onde eles vivem e encontraram o que queriam, eu jamais soube. Mas nós os perdemos de qualquer jeito.
Batráquio ouvia aquelas palavras incrédulo, sentindo seu coração quase saindo pela boca e extremamente temeroso de onde aquela conversa poderia chegar.
- 1593 ficou possesso. Eu jamais o havia visto daquela forma... Era como se ele tivesse armazenado sua ira por todos os meses em que ficou naquele estado letárgico e estivesse desejoso de finalmente se livrar dela. Ele acusou 11793 de traição, de ser simpático com o causa dos Inomináveis. Disse que ele estava arruinando a Necrópole ao permitir a permanência daquele monstro. 11793 contrapôs alegando que aquela
coisa serviria para expurgar do nosso convívio os traidores, os fracos de espírito, os indignos de permanecer entre nós... Disse que nos reergueríamos maiores e mais fortes quando nos livrássemos das párias que sucumbiram ao discurso dele... Eu disse a 1593 que ele deveria ter cuidado, mas ele não quis me ouvir. 11793 cansou-se dele e decidiu que o tomaria de exemplo, para que ninguém mais se atrevesse a questionar suas decisões.
O bibliotecário engoliu em seco e Batráquio sentiu que o vazio que outrora habitara seu interior havia regressado e estava estendendo seus tentáculos nodosos para todos os lados do seu corpo. 486486 encarava-o calado, como se estivesse esperando que seu silêncio e seu olhar de profunda desolação fossem o bastante para que Batráquio entendesse o que houve e o poupasse de falar. Com um nó na garganta e sentindo os olhos marejados mais uma vez, Batráquio forçou-se a falar.
- Então ele o matou. – Ele adivinhou, tendo a sensação de que fora outro ser que falara em seu lugar, pois ele já não mais sentia-se presente naquele plano de existência.
Para sua surpresa, 486486 soltou um som que se assemelhava tanto a uma gargalhada quanto a um suspiro de dor.
- Oh não. Oh não... – Ele disse, seu rosto de torcendo de dor a cada palavra, como se falar estivesse lentamente matando-o da forma mais dolorosa possível. O comedido bibliotecário que antes insultara 4669 pela sua sentimentalidade jazia esquecido em algum lugar longínquo, e quem falava naquele instante era um Bonelord consumido pelo rancor que Batráquio tinha dificuldade em reconhecer. – 11793 é um sádico em tal grau... Tão... Tão extravagante... Ele não se contentaria com simplesmente dar cabo de 1593 e sumir com o corpo, oh não. Ele precisava de um espetáculo, precisava que fosse público. Queria que todos vissem o que aconteceria com aqueles que se metessem em seu caminho. 11793 desafiou-o a um Duelo de Permanência.
Batráquio quis dizer qualquer coisa, emanar qualquer sinal de que estava vivo e acompanhando aquela conversa, mas ele estava paralisado demais pela sua incredulidade para falar.
Um duelo? Isso não faz o menor sentido! Aquele tipo de duelo era usualmente aplicado para resolver diferenças muito profundas, onde o perdedor deveria ser expulso da cidade e nunca mais retornar. Ele lembrava-se de alguém sugerindo a 11793 que aquela fosse a sua punição após os acontecimentos em Ab’Dendriel.
Não. 4669 não merece a oportunidade de lutar para permanecer entre nós. Ele deve ser expurgado de uma vez, 11793 respondera naquela ocasião, seus olhos cheios de ódio e desprezo cravados em Batráquio.
Por que ele iria dar a 1593 a oportunidade de lutar? Por que não se livrar dele de uma vez?
- Ele queria humilhá-lo, 4669. – Ele ouviu 486486 dizendo, mais uma vez demonstrando uma estranha capacidade de saber o que se passava em sua mente. – Suponho que nutria este desejo desde que 1593 o desafiou abertamente durante o seu julgamento. 11793 jamais aceitou a intervenção de 1593 que acabou levando o Conselho a poupar a sua vida... Ele sabia que 1593 ainda não havia retomado total controle de seus poderes e que não era plausível que seu mestre pudesse derrotá-lo, então ele decidiu aproveitar aquela chance para humilhá-lo diante de todos e fazê-lo pagar.
486486 soltou um longo e penoso suspiro, e Batráquio tentou se preparar para o que ainda estava por vir.
- 1593 não teve qualquer chance. Naquela ocasião, 11793 provou a todos porque era o sucessor natural de 99591. Eu jamais havia visto tamanha demonstração de poder antes. – O mais velho falou, seus olhos vagarosamente minguando e postando-se no chão, sua voz mal passando de um sussurro. – Foi um duelo demorado, muito mais do que seria realmente necessário... Quando acabou, o sangue de 1593 tingia os pilares da biblioteca e o chão ao seu redor de verde. Sinceramente jamais compreendi o que levou 11793 a poupar a sua vida, afinal. Mesmo assim, ele não ficou contente com apenas humilhar seu rival. Arrancou um de seus tentáculos, o encantou para que nunca apodrecesse e o cravou na entrada da sua pirâmide, para que todos vissem e se lembrassem daquele episódio antes de tentar desafiá-lo novamente.
Ele calou-se, pesaroso, e o mais doloroso silêncio que Batráquio experimentara em muito tempo instalou-se entre os dois. Ele evidentemente não estivera presente, mas as imagens do duelo entre seu mestre e 11793 pareciam vivas em sua mente, como se ele as tivesse recebido por telepatia, e apenas imaginar seu mestre, seu sábio e poderoso mestre retorcido no chão, coberto de areia escura e deformado pela batalha era o bastante para fazê-lo afundar na sensação mais amarga que ele jamais experimentara. Ele mal conseguia registrar a ira que ia lentamente chamando-o em algum lugar na sua mente: naquele instante, era o desgosto quem falava mais alto.
- Então ele foi expulso. – Ele inexplicavelmente conseguiu falar, sua voz trêmula como seus dedos. Sua respiração estava extremamente acelerada e ele começava a sentir-se tonto. Batráquio deu então alguns passos para o lado para se apoiar à estante mais próxima, sentindo-se enojado enquanto o duelo dos dois Anciãos continuava a rodar pela sua mente. – Ele foi derrotado e expulso.
O bibliotecário evitava encará-lo a todo custo, uma expressão curiosa de dor e algo que parecia culpa existia entre as rugas do seu rosto.
- Para onde ele foi, 486486? Para Fibula? – Ele dizia incoerentemente enquanto tentava controlar sua voz, que parecia perigosamente próxima de ruir e sumir para sempre. – Ele já havia me dito uma vez que queria conhecer a colônia em Fibula... Ele foi para lá não foi? 1593 está em Fibula, não está?
486486 mexeu-se desconfortavelmente no local em que estava, seu corpo pairando cada vez mais próximo ao solo, como se ele fosse desabar sobre o mármore a qualquer momento.
- Eu devia ter visto os sinais... Eu, mais do que ninguém, deveria tê-los visto e entendido... – Ele resmungou baixinho, tristonhamente, ainda sem erguer os olhos do chão. – Mas eu não soube interpretá-los. Eu só entendi quando era tarde demais.
- Meu mestre está em Fibula ou não, 486486? – Batráquio exigiu saber com o coração batendo cada vez mais rápido e as primeiras lágrimas vencendo seu controle e queimando seu rosto.
- As duas personas dele... Ficou tão nítido pra mim depois que ele se foi, eu não consigo entender porque não vi isso antes. Quando as coisas atingiram um patamar inaceitável ele se viu obrigado a reagir, a mostrar pra todos que ainda estava ali... Mas por dentro... Ah não, por dentro ele ainda estava esfacelado... Era como se duas entidades habitassem o mesmo corpo...
Cale a boca! Cale a boca, cale a boca, cale a boca! Batráquio pensava repetidamente enquanto esfregava o rosto tomado de fúria, lutando para combater as lágrimas que insistiam em vencê-lo. As palavras de 486486 não faziam mais sentido algum, mas mesmo assim ele queria que ele parasse de dizê-las, que ele se calasse e nunca mais voltasse a falar de 1593 ou de qualquer coisa que acontecera naquela cidade desde que ele se foi.
- Eu acho que ele nunca superou o que aconteceu com você, 4669. Eu preciso que você entenda... Eu não estou te culpando, eu preciso que você acredite em mim! – 486486 agora falava em um tom suplicante que não lhe pertencia, e havia finalmente erguido os olhos para encarar seu interlocutor, e Batráquio foi pego de surpresa ao vê-los molhados pelas mesmas lágrimas que ele derramava. – Nenhum de nós poderia ter previsto... Mas eu devia... Como eu fui burro! Burro! Eu devia ter percebido como 1593 havia mudado depois da chegada
dele... Mas eu achei... Todos achamos que ele estava realmente indignado com a presença dele aqui... Como eu poderia ter previsto?
- Não... – Batráquio se ouviu sussurrando incoerentemente, talvez adivinhando o que estava para ouvir. Ele já desistira de enfrentar as lágrimas. Ele só queria que aquilo acabasse.
- Todos estávamos tão desestabilizados... Não foram poucos os que o procuraram para pedir aconselhamento, para se iludirem... Todos nós queríamos acreditar que as coisas melhorariam... Eu devia ter entendido o que ele estava fazendo, eu devia ter entendido que ele também precisava se iludir... Ele não sabia mais como lidar com a dor...
- Não...! –
Voltar foi um erro, ele pensou.
- Eu acho que ele planejou aquilo o tempo todo. Ele queria o Duelo. Ele queria ir embora... Queria fugir... Quem pode saber desde quando ele estava arquitetando aquilo? Deve ser por isso que ele o procurou, deve ser por isso que ele sucumbiu e se deixou levar por aquelas promessas vazias...
- Não!
- 1593 foi embora, 4669. – 486486 jazia perante ele, pousado no chão, seus olhos marejados e seu semblante visivelmente estilhaçado. – Ele juntou os seus pedaços e fugiu de toda a dor, de todo o sofrimento que esta cidade representava para ele.
- NÃO!
- Seu Mestre se juntou a eles. Ele nos deu as costas e foi morar com eles naquele lugar inóspito e amaldiçoado... – Havia tanta dor no Bonelord que falava que, para ele, já não fazia mais sentido evitar o uso da palavra. Seria a facada final. – 1593 foi viver com eles naquela ilha maldita que eles chamam de Helheim. 1593 tornou-se um Braindeath
486486 revela a Batráquio todas as coisas que ocorreram na Necrópole após o seu exílio