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Tópico: O Retorno

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  1. #1
    desespero full Avatar de Iridium
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    Saudações!

    Eeeeeee Batráquio HAEHUHUHAUEHUEHUAEHU

    Coitado, falhou miseravelmente HAUEHAUAUEHUEHUEH

    Cara, adorei o capítulo. Você escreve MARAVILHOSAMENTE bem, sério mesmo. É denso, é imersivo, é tenso... É excelente. Continue assim.


    P.S.: Finalmente o nome 1208 faz um cameo aí xD ansiosa pra ver o restante.

    P.S.2: olosco a bruxa foi obliterada AHUEHUEHUAHUH




    Abraço,
    Iridium.

    Publicidade:


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  2. #2
    Avatar de Gillex Koehan
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    Citação Postado originalmente por Manteiga Ver Post
    Ao observar a grandiosa torre incandescente, o homem de verde não podia deixar de sentir um profundo incômodo em suas estranhas. É quase como da última vez que eu estive aqui...
    "Ó... ó... estão roubando a filha de minhas estranhas. Ó".
    Haha, essa referência é mais nebulosa.

    Que fofo que o nome dele é Eliseu. Gosto. Melhor que Miroel... não, pera. Ei!
    Gosto também de quem escreve "àquele". Acho ortograficamente elegante, não sei dizer por quê, haha.

    Curioso a respeito do túmulo. Tenho palpites, mas enfim, vou esperar.
    "Madamemente" vou continuar acompanhando as desventuras do não-humano de vestes verde-garrafa. Obrigado pela leitura, menino Manteiga.
    .....
    .....
    RPGTibia

    A gente tá te esperando desde que você nasceu!
    .....
    .....
    .....

  3. #3
    Avatar de Manteiga
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    Obrigado a todos que leram e comentaram até agora! É um prazer tê-los aqui. Como de praxe, primeiro os comentários:

    Spoiler: Comentários


    Bom, antes do capítulo terceiro propriamente dito, um leve disclaimer: eu peço infinitos perdões pelo tamanho dele. Sim, ficou grande. Sim, ficou maçante. Não creio que haverá outro tão grande nem quero que tenha sem or quase morri pra escrever. Mas é que, dentre todos os, este é o que contém aquele que, na minha singela opinião, é o flashback mais importante e determinante para a construção do personagem como ele foi e como ele (e, por que não, como ele será quando isso tudo terminar). Quis apresentá-lo da melhor e mais completa forma possível, e espero não ter pecado pelo excesso.

    Spoiler: Música do capítulo


    III

    Portões do Inferno!
    Área restrita!
    Mantenha a porta fechada, a menos que esteja jogando algum criminoso aqui dentro!

    Batráquio leu aquelas palavras uma porção de vezes seguidas, sentindo seu estômago formigar cada vez que seus olhos passavam pelos dizeres “Portões do Inferno”. Diante dele havia uma simples porta de madeira limitada em ambos os lados por paredes de tijolos encravadas no meio das paredes daquela caverna, alguns andares abaixo da superfície de Ab’Dendriel. Ao lado da porta, em um quadro negro, aquele aviso estava escrito com letras garrafais já um tanto apagas, indicando que ele estivera afixado ali por muito, muito tempo. Entretanto, qualquer um que passasse por aquele local e não se detivesse em ler o quadrinho jamais suspeitaria do que jazia escondido atrás daquela porta, muito, muito distante do local onde ele e Eliseu agora estavam.

    Eu já estou quase em casa, ele se pegou pensando enquanto vagarosamente se aproximava da porta. Era verdade que a distância entre aquela porta e a grandiosa Necrópole erguida pelos Bonelords no coração da terra era quase imensurável, mas, de certa, ele podia sentir a pútrida atmosfera da cidade dos mortos enquanto admirava a irregularidade das ripas que constituíam aquele tosco portal. Basta girar a maçaneta, empurrar a porta e começar minha longa jornada de volta para casa. A ideia de efetivamente começar sua jornada de volta gelava-lhe as vísceras, provocando um desconforto no ventre que ele há muito não sentia. É uma sensação parecida com a que eu tinha quando era jovem e 1593 me mandava para a superfície, ele lembrou-se, abrindo um leve sorriso ao pensar na ironia da situação. Quando ele morava na Necrópole, tudo que ele mais queria era ir embora de lá e ganhar o mundo; agora, no entanto, tudo que ele mais queria e precisava era colocar seus pés novamente na areia preta e encardida que contaminava o chão da cidade.

    Respirando fundo, Batráquio levou sua mão descoberta à maçaneta enferrujada e a girou, pressionando levemente o corpo contra a porta para empurrá-la para dentro. A maçaneta rangeu alto ao ser movida, e as ripas de madeira estralaram algumas vezes. Entretanto, a porta não se moveu.

    Às suas costas, Eliseu soltou um zurrinho de impaciência.

    - Paciência, Eliseu. – Ele disse baixinho enquanto analisava o portal, confuso. Por que esta porcaria não abre? – Eu, na verdade, nunca acessei a Necrópole por este caminho... Isto aqui é como se fosse uma entrada para visitantes, suponho eu. Eu não saberia realmente. Veja bem, a minha raça tem outros meios muitíssimo mais simples e rápidos para entrar e sair deste lugar. Mas como eu não acho que seja capaz de executá-los nesta condição, temo que o caminho longo seja nossa melhor saída. Digo, entrada.

    Batráquio tentou forçar a abertura da porta algumas vezes, mas a mesma permaneceu emperrada no mesmo local, produzindo apenas ruídos altos quando era empurrada. Que ela está trancada eu já percebi. Me pergunto se ela é protegida por algum tipo de feitiço avançado... Ele então passou a tatear pela superfície da madeira com a mão descoberta, enquanto fechava os olhos e se concentrava, tentando detectar algum resquício de magia que denunciasse qualquer feitiço de proteção que pudesse ter sido usado naquela porta. Magia pode ser facilmente detectada e rastreada por aqueles que sabem como fazer, dissera-lhe certa vez, naquela mesmíssima cidade, a pessoa que ele mais profundamente odiava naquele mundo. Quem sabe algum dia você aprenda a fazer isso. Isto é, considerando que eu não te mate aqui e agora!

    O feiticeiro subitamente abriu seus olhos e afastou-se da porta com um pulo, sobressaltando seu burrinho, que, aparentemente muito entediado com aquela função toda, estivera farejando o ar em busca de algo para comer.

    - Não está protegida. – Ele disse enquanto abria um largo sorriso. A ansiedade voltava a crescer em seu peito, tais quais as batidas do seu coração. – Ah, a lendária presunção dos elfos! Vivem em um mundo de nobreza excessiva! Jamais considerariam que alguém tentaria burlar as regras e colocar essa porcaria de porta abaixo!

    Batráquio então estalou as juntas dos dedos da mão direita e lentamente retirou a luva que cobria a outra, revelando a pele escura e com aparência de queimada que cobria toda a sua superfície, consequência da terrível tentaculite que, um dia, lhe atacara o segundo tentáculo esquerdo.

    - Para trás, Eliseu. – Ele disse enquanto estendia as palmas de ambas as mãos na direção da porta e as sentia formigar. – Eu vou colocar essa porcaria abaixo e então...

    - EI, VOCÊ! – Rugiu uma voz desconhecida à sua direita, forçando-o a interromper seu feitiço e a virar o rosto na direção de onde viera a voz. Um elfo alto e esguio vinha correndo apressadamente pela caverna, carregando um grande arco dourado diante do corpo, no qual ele já encaixara não uma, mas duas flechas longas e pontiagudas. – Se afaste desta porta imediatamente!

    O elfo parou apenas a alguns metros dele e de Eliseu, e então estendeu o arco diante do seu corpo, alinhando-o com o rosto e apontando as duas flechas que preparara diretamente para seu rosto. Sua expressão era severa, e Batráquio teve a leve impressão de que comprar briga com aquele elfo em particular era uma idéia pouquíssimo inteligente. Lentamente, ele baixou as mãos, sentindo a energia mágica que acumulara nas mãos se esvair enquanto ele calculava os riscos de iniciar um duelo com o arqueiro.

    - Você não sabe ler? O acesso a este lugar é restrito! Restrito! – Repetiu o elfo com veemência. – Significa que você não pode passar de jeito nenhum!

    - Eu sei o que significa. – Ele debochou enquanto imaginava se teria tempo de desviar das flechas antes de atacar. – E você, quem é mesmo?

    - Eu sou Elathriel, o delegado desta cidade e responsável pela vigia dos Portões do Inferno. – O elfo disse teatralmente enquanto estufava o peito, aparentemente muito satisfeito em ocupar aquele cargo. Quando ele respondeu, acabou perdendo a mira das flechas por uma fração de segundo, quase impelindo o outro homem para o ataque. Quase. – E você, forasteiro, quem é e o que pretende com esta porta?

    O feiticeiro cruzou os braços e virou o corpo completamente para melhor encarar o delegado. É preciso calcular cuidadosamente os riscos dessa empreitada. Não preciso chamar mais atenção do que já chamei. Ele pensou em Eroth e revirou os olhos.

    - Quem eu sou não te diz respeito e o que eu pretendo me parece bastante óbvio, não? Eu tenciono atravessar essa porta e ir até o Inferno.

    Elathriel pareceu levemente desconcertado ao ouvir aquilo.

    - Você só pode ser louco! Ninguém se atreve a acessar este lugar, é insanidade!

    - Bom, você mesmo acabou de dizer que eu devo ser louco, então...

    - Além do mais, você precisaria de uma chave para atravessar o portal. – Disse o delegado, aparentemente ignorando o fato de que ele acabara de flagrar Batráquio preparando um ataque para obliterar a barreira e eliminar a necessidade da chave. – E apenas eu tenho acesso a ela.

    - Ora essa, mas vejam só! Que interessante! – Exclamou Batráquio. Talvez eu não precisa causar uma comoção desnecessária, afinal... O Bonelord decidiu então aceitar aquela chance de o destino estava lhe dando de resolver as coisas de uma forma mais limpa. Enquanto isso, Elathriel encarava-o com uma expressão estranha no rosto, como se realmente achasse que ele era um lunático qualquer. Logo atrás dele, Eliseu soltou um grunhido triste, como se pedisse que seu mestre parasse de arranjar encrenca e o tirasse logo dali. – Ah, não se preocupe, Eliseu. Eu e o Sr. Elathriel vamos apenas conversar...

    Ele então abriu um largo sorriso enquanto observava o delegado lentamente processar o que ele acabara de dizer e dar uns dois passinhos para trás, preparado para o ataque.

    ***


    - 1208! – Ele gritou a com toda sua força quando o estrondoso rugido vindo do andar debaixo sacudiu a torre inteira. Não fazia mais sentido tentar comunicar-se através de 469; 1208 não podia vê-lo dali, e, sendo a linguagem muda que era, ele sequer poderia ouvi-lo. Outro rugido ensurdecedor seguiu-se ao primeiro, indicando que o dragão retornada de seu voo matinal. Isso não estava dentro do planejado! Ele não deveria ter voltado tão cedo! Um baque surdo foi ouvido no andar debaixo, e novamente a torre inteira sacudiu. Poeira e restos de madeira velha começaram a cair do teto. – Karina, mantenha-os ocupados! Eu vou ajudar o 1208!

    O esqueleto reanimado do que um dia fora uma guerreira elfa virou sua caveira avermelhada para seu mestre, suas órbitas vazias parecendo emanar uma energia doentia. Ela assentiu com um leve movimento de seu crânio, como se tivesse efetivamente entendido a ordem verbal de seu mestre, e continuou a socar repetidas vezes o que era agora apenas um montinho sangrento e retorcido – no passado, um minotauro.

    O desespero tomou conta de 4669 enquanto ele velozmente atravessava o recinto, flutuando sobre um amontoado de móveis destruídos e alguns cadáveres de serpentes. Enquanto passava, disparou distraidamente um míssil de energia no orc que as conjurara, sem realmente parar para ver se havia atingido alguma coisa. Sua mente estava focada em uma coisa apenas: resgatar 1208 das furiosas garras do dragão que normalmente habitava o andar debaixo daquela torre. Eles haviam passado meses estudando o local e os hábitos da fera, e finalmente haviam conseguido uma brecha durante uma das saídas do réptil alado. Eu não devia tê-lo deixado vigiando lá embaixo! Eu deveria saber que isso não tinha como dar certo!

    - Mestre! Ajudar eu! – Gritou a juvenil voz de 1208 em algum lugar lá embaixo, em uma relativamente eficaz tentativa de reproduzir a língua dos humanos, a qual seu mestre incompletamente tentara lhe ensinar. Em seguida, um novo estrondo, um grito de dor agudo e um inesperado jato de fogo que correu escada acima, obrigando 4669 a desviar em cima da hora para evitar as chamas trepidantes.

    - 1208! – Ele voltou a gritar, sabendo que seu aprendiz não duraria muito contra uma fera daquele poder. Eu não deveria tê-lo trazido comigo. Toda essa operação foi um gravíssimo erro!

    Um míssil de energia foi disparado contra ele, errando por alguns centímetros e atingindo a parede de tijolos oposta, indicando que o xamã sobrevivera ao seu ataque e estava pronto para revidar com tudo. Entretanto, 4669 sequer teve tempo para se preocupar com a reação do orc: um baque ocorrido segundos mais tarde indicava que Karina enfim se cansara de mutilar os restos daquele minotauro e agora voltava-se para uma nova vítima. Um novo jato de fogo foi disparado lá embaixo, novamente errando o Bonelord no andar de cima por muito pouco.

    - Merda! Como é mesmo a porcaria daquele feitiço? – Ele lera em algum lugar que os humanos haviam inventado alguma forma de feitiçaria que poderia protegê-los de ataques recebidos com base unicamente em sua reserva de magia. Lá embaixo, 1208 gritou novamente. O dragão respondeu com um novo rugido bestial, seguido do inconfundível som de uma fera de grandes proporções correndo por um espaço muito limitado. Ali em cima, Karina socava o xamã com uma fúria desmedida. Talvez 11793 tivesse razão, 4669 se viu pensando em um tênue momento de insanidade. Talvez eu realmente seja jovem demais para ter um aprendiz. Ele fora, afinal, o mais jovem Bonelord em décadas a receber um aprendiz.

    Subitamente, ele lembrou-se das palavras.

    - Utamo vita! – Ele exclamou, sentindo como se um balde de gelo fosse derramado sobre seu corpo. Em seguida, o Bonelord jogou-se escadaria abaixo, mergulhando no mar de chamas criado pelo dragão e tentando desesperadamente encontrar seu aprendiz no meio delas antes que fosse tarde demais.

    Subitamente, 4669 abriu seus olhos – agora, apenas dois – e sentou-se apressadamente, ofegando como se tivesse acabado de cruzar a Necrópole em uma maratona. O suor frio escorria pela sua testa, e seu coração batia em disparada, amedrontado. Fazia muito tempo que ele não sonhava com o terrível acontecimento daquela triste manhã, e mais tempo ainda que ele havia ocorrido. Por que então agora? Enquanto sua mente clareava e sua respiração lentamente voltava ao normal, 4669 foi acostumando os olhos ao cenário que o cercava.

    Ele estava sentado em uma fofa cama de solteiro, coberto até a cintura por um confortável lençol azul, trajando apenas suas calças. A cama ficava no cantinho de um pequeníssimo e abafado cômodo que parecia ter várias funções: ao lado dela ficava um pequeno criado-mudo simples de madeira, sobre o qual brilhava uma lâmpada vermelha que funcionava a óleo; no canto adjacente havia uma mesa maior, sobre a qual havia uma grande bandeja de prata coberta por uma grande diversidade de frutas, muitas desconhecidas para ele; do outro lado do cômodo havia uma grande estante de bambu muito torta, cujas prateleiras estavam abarrotadas de livros e outros apetrechos diversos; sobre a estante havia um pote de barro que continha uma planta muito ramosa, cujos numerosos caules folhosos desciam serpenteando pelas prateleiras; ao lado da estante, no canto oposto ao da cama, havia uma porta de madeira fechada, e uma segunda porta existia na parede próxima à mesa. A luminosidade no vão entre a mesma e o assoalho de madeira indicava que aquela era a porta de entrada, e ao seu lado havia um cabide toscamente entalhado em madeira, no qual pendiam sua capa de viagem preta e sua túnica branca de linho. As paredes da casa e o canto dos pássaros que ele podia ouvir lhe indicavam que ele ainda estava em Ab’Dendriel.

    Como eu vim parar aqui? Pensou 4669 enquanto mexia-se desconfortavelmente pela cama. A última coisa que ele se lembrava era de ter sido descoberto enquanto espionava os Cenath... Ao tentar apoiar-se para se erguer do colchão, 4669 sentiu uma pontada em seu braço esquerdo e voltou a desabar sobre a cama, produzindo um baque fofo. Soltando um gemido alto de dor, o Bonelord transformado em humano voltou seus olhos para o braço, enfim percebendo que o mesmo estava envolvido por uma espécie de longa faixa branca, uma gaze semelhante àquela usada para mumificar os mortos em algumas culturas. Sua visão de repente ficou turva e ele sentiu como se o quarto estivesse rodando, e logo sua boca foi tomada por um incômodo gosto de vômito. O que está acontecendo...?

    Um som abafado ecoou pelo pequeno cômodo. Com dificuldade, 4669 desviou seu olhar do braço mumificado para a porta ao lado da estante, a qual havia sido aberta. Parado no vão havia um humano alto, de pele morena, cabelos pretos curtos e olhos castanhos escuros, observando-o com um misto de surpresa e alívio no rosto.

    - Então você finalmente acordou. Eu meio que fiquei preocupado, sabe. – Disse o sujeito. Sua voz era grave e forte, o que combinava com seu porte físico, com as feições no seu rosto e com a imagem que ele transmitia ao ficar parado no portal com seus braços cruzados e os olhos escuros postados em seu hóspede. – Você ficou desacordado por um tempão. Achei que talvez não fosse se recuperar.


    - Quem é você? – As palavras saíram da boca humana de 4669 sem que ele realmente as tivesse formulado em sua cabeça, e em um tom imensamente mais frágil e assustado do que ele jamais teria permitido. Pela primeira vez em muitos anos, ele estava trancado no mesmo recinto que um humano, e, desta vez, em posição de inferioridade, ferido e com um grande manto de incertezas povoando cada lacuna das suas memórias. Nem mesmo toda sua grande sede de conhecimento por aquela raça poderia afastar os ensinamentos mais fundamentais que ele recebera em seu treinamento ou as terríveis memórias que ele tinha de todos os humanos que conhecera anteriormente, tampouco poderia conter seu instinto de eliminar aquela possível ameaça antes que fosse tarde demais.

    - Hã... O dono da casa e o cara que te recolheu do chão da floresta. – Disse o estranho enquanto erguia uma das sobrancelhas, como se sua resposta fosse evidente. – E então? Como vai o braço? Deixa eu dar uma olhadinha...

    Ao dizer isto, o humano fez menção de se aproximar de seu hóspede ferido. O inquilino, entretanto, não reagiu como ele esperava.

    - Não se aproxime! – Rugiu 4669, tomado de uma súbita sensação de pavor mesclada com um instinto repentino de auto-proteção. Em um movimento não planejado, o feiticeiro tentou, mais uma vez, apoiar-se sobre o braço esquerdo para puxar o corpo para longe do estranho, como se fosse comprimi-lo contra o canto do cômodo e assim esperasse que ele ali desaparecesse. Entretanto, ao fazê-lo, ele novamente sentiu uma fisgada insuportável de dor, a qual o fez capotar novamente sobre o colchão, arquear as costas e soltar um gemido alto de aflição. Ao ver o estado de seu hóspede, o humano pareceu acelerar o passo e estender os braços na direção dele, como se tencionasse ampará-lo, ao que o visitante respondeu com um chute no ar desferido pela perna direta, o qual arremessou o lençol ao chão. Tomado pela surpresa do gesto, o outro homem jogou o corpo para trás a tempo de evitar o pé descalço de 4669, mas, ao fazê-lo, capotou no chão.

    Quando percebeu o que havia acontecido, 4669 decidiu agir rápido, e, mesmo tomado de agonia e ofegando em excesso, reuniu o máximo de energia que pôde e curvou o corpo para frente, ficando de joelhos sobre o colchão e sentindo o braço esquerdo inteiro latejar insuportavelmente. Enquanto seu anfitrião, confuso, tentava se erguer do chão e assimilar o que acabara de acontecer, ele estendeu a palma da mão sadia em sua direção.

    - Exori flam! – Pronunciou 4669, tomado de fúria. Para sua surpresa e desapontamento, entretanto, o máximo que ele sentiu foi um leve formigamento na mão direita, seguido de uma forte tontura que o consumiu e o derrubou novamente sobre a cama, quase fazendo-o bater com o cocuruto da cabeça na escora de madeira.

    - MAS QUE MERDA FOI ESSA? – Vociferou o humano quando finalmente conseguiu se recuperar e se pôr de pé. Ele estava ofegante e imundo, resultado da provável falta de faxina nos últimas dias do assoalho empoeirado da sua residência. – ISSO NÃO FOI LEGAL! QUAL É A PORRA DO SEU PROBLEMA?

    - O que... Você... Fez... Comigo...? – 4669 conseguiu dizer enquanto tentava recuperar o ar dos pulmões e enquanto ainda se contorcia de dor sobre o colchão. Seu torso estava empapado de suor, e ele sentia que seu braço esquerdo estava duro como pedra. Por que meu feitiço não funcionou? ele pensava enquanto se remexia inquietantemente. Ele falhara. Estava exposto. Além de três olhos e de um cérebro avantajado, ele também acabara de perder sua magia. Ele enfim baixara a guarda diante de um humano. Estava a mercê dele agora.

    - Eu já te falei. Você ficou desmaiado por muito tempo, nem comeu nada. Não é de se espantar que não consiga executar um feitiço. Embora seja de se admirar que você tenha conseguido se mexer tanto, apesar de estar tão fraco. – Disse o outro com um severo quê de impaciência na voz. Ele parecia dividido entre a vontade de se aproximar do seu hóspede moribundo e a de agarrá-lo pelos tornozelos e arremessá-lo do alto daquela árvore. Meio contrariado, ele acabou optando pela primeira opção. Mamãe ficaria muito desapontada se eu deixasse esse imbecil para morrer, mesmo que ele mereça, ele pensou com amargura enquanto se aproximava relutantemente do leito do enfermo. – Deixa eu ver esse braço de uma vez.

    Não era um pedido. Entretanto, ainda tomado pela desconfiança, 4669 moveu-se de modo a ficar de costas para seu anfitrião, acabando por rolar sobre o braço esquerdo e, pela terceira vez naquele curto intervalo de tempo, desencadear uma intensa reação de dor que quase o fez quase colocar as entranhas para fora. Ele então fechou os olhos com força e começou a ranger os dentes, como se tentasse obrigar o braço a parar de doer, evidentemente sem sucesso algum. Em meio ao seu sofrimento, ele pensou ter ouvido o outro soltar um muxoxo de impaciência e começar a dar voltas e voltas pelo espaço livre no centro do cômodo, como se tentasse pensar no que fazer a seguir.

    - Eu não posso fazer muita coisa por você se você não me deixar te ajudar, sabe? – Ele o ouviu em algum lugar lá longe. Entretanto, seu tom de voz denunciava que ele estava mais preocupado do que efetivamente impaciente com seu inquilino relutante. – Ou você preferia que eu tivesse te deixado jogado no meio do gramado?

    - Por que... Meu braço... Dói... Enfaixado... – 4669 ignorou as últimas palavras do outro e se ouviu resmungando entre os dentes enquanto a dor no braço serpenteava em ondas de diferentes intensidades.

    - Eu não tenho muita certeza, pra dizer a verdade... – O outro respondeu, aparentemente mais perto do que estivera antes, como se tivesse enfim resolvido dar ao hóspede ingrato uma segunda chance antes de jogá-lo árvore abaixo. – Acho que você caiu sobre ele e o fraturou de alguma forma estranha. Digo, você estava todo ferrado, sabe, mas acho que você acabou detonando mais com o braço esquerdo mesmo. Deve ter sido o mau jeito.

    - Eu... Cai...? – Ele ofegou. Em algum lugar no fundo da sua mente, a palavras do homem estranho pareceram fazer algum remoto sentido, chamando-lhe a atenção. Vagarosamente, ele tentou virar o corpo mais uma vez, de modo a deitar-se de barriga para cima. Agora ele mais uma vez podia encarar o homem que o acolhera, o qual o observava parado no meio do recinto com uma expressão levemente preocupada no rosto. As fisgadas mais intensas dor pareciam estar diminuindo, mas sua visão estava turva, e ele ainda sentia como se sua cabeça fosse explodir.

    - Você não se lembra? – Indagou o outro enquanto avaliava o estado de 4669 de longe. Talvez ele esteja pior do que imaginei. Será que também bateu a cabeça ou coisa parecida? – Você despencou, sei lá, uns quatro metros do alto da guilda dos druidas. Você teve muita sorte mesmo de eu estar passando por ali naquela hora, sabe. Estava escuro, mas mesmo assim deu pra te ver caindo. Consegui aplicar alguns feitiços de cura para tratar os estragos imediatos e te trouxe pra cá pra ver o que eu conseguia fazer...

    Ele fez uma pausa e ficou a encarar o outro com uma expressão engraçada no rosto, como se quisesse esperar pela reação dele antes de continuar falando. 4669, no entanto, não esboçou qualquer reação além de continuar a resmungar de dor e a remexer os pés inquietantemente. Lentamente, no entanto, sua mente, foi entrando em polvorosa. A guilda dos Cenath. A escada. O elfo de olhos cinzentos. A missão... Repentinamente, todas as lembranças daquela noite atingiram sua mente como uma flecha certeira, seguidas de uma sensação tenebrosa no fundo do seu estômago, como se alguém tivesse aberto um buraco ali.Eu falhei.

    - Puta merda... – Ele se ouviu dizendo enquanto novamente sentia seu pulso acelerar e sua respiração ficar mais falha. Desta vez, entretanto, não era a dor o catalisador daqueles efeitos em seu organismo. Era o medo. O medo do fracasso, o pavor que o consumia enquanto ele enfim se dava conta de que desperdiçara a única chance que tivera em tanto tempo de planejamento para executar a missão que deveria ser seu momento de redenção e glória. Sua última chance, a grande chance que ele tivera de compensar pelos erros que cometera. A sua chance de ficar com a consciência em paz depois de tudo que acontecera com 1208. Arruinada. – Puta merda... Eu estraguei... Tudo...

    O dono da casa agora decididamente encarava-o com uma certa apreensão, como se estivesse genuinamente preocupado com a possibilidade de ter colocado um lunático – ou pior – dentro da sua casa. Ele engoliu em seco e fez menção de se aproximar, mas pareceu reconsiderar seus movimentos de última hora, dado o histórico pouquíssimo receptivo do seu hóspede. Era mais fácil lidar com ele quando ele estava desmaiado... Entretanto, a curiosa reação de aparente desolação do outro o incomodava um pouco.

    - Você disse... Que me viu caindo? - Chamou a voz do homem ferido, obrigando-o a trazer seus pensamentos de volta à realidade. Havia um quê de ansiedade inerente ao tom de voz do outro, o que desconcertou ainda mais o anfitrião.

    - Isso mesmo. - Ele respondeu, hesitante, tentando imaginar que diferença aquilo fazia. - Estava escuro, mas ainda assim eu consegui ver um corpo despencando lá de cima. O pouco de luz que vinha da guilda deve ter ajudado...

    4669 fechou os dois olhos com força e engoliu em seco, sentindo como se uma longa e penosa agulha de gelo tivesse sido enfiada pelas suas entranhas. O feitiço de invisibilidade. A merda do feitiço de invisibilidade deve ter falhado depois de algum tempo, mas eu estava tão concentrado em subir a escada que não percebi. Isso explica tudo. Agora realmente era oficial: ele metera os pés pelas mãos e arruinara aquela missão toda. Àquela altura, os Cenath certamente já saberiam que alguém estava tentando espioná-los, e seria muita tolice sua acreditar que eles não encontrariam meios para chegar até ele quando começassem a investigar. O humano pareceu ficar ainda mais confuso ao perceber a expressão de derrota estampada no rosto do outro.

    - Hã... E o que exatamente você estava fazendo na guilda dos druidas justo àquela hora? – Ele falava hesitantemente enquanto analisava o outro dos pés à cabeça, imaginando quando seria seguro tentar se aproximar novamente. Aquele braço dele inspira cuidados mais avançados... Ele realmente não tinha planejado se intrometer na vida do desconhecido, mas, dadas as circunstâncias, ele não conseguia controlar sua curiosidade. E, de certa forma, sua preocupação. – Digo, hã... Você não parece muito druidesco, sabe. Ok, as pessoas costumam dizer que eu também não pareço com um druida típico, mas acontece que eu sou um e eu nunca te vi por lá antes. Parando pra pensar, eu nunca te vi nessa cidade antes, e eu moro aqui já tem um tempo. Então... O que você estava fazendo lá?

    Pela primeira vez, 4669 se pôs a analisar o seu anfitrião com atenção. O sujeito era alto, tinha ombros largos e braços fortes e, à primeira vista, realmente lembrava muito mais um cavaleio real do que um druida. Seu jeito, entretanto, emanava uma certa calmaria, uma sensação cálida de acolhimento e hospitalidade; seus olhos, apesar de escuros e fundos, eram gentis e pareciam sorrir a maior parte do tempo. De modo geral, aquele homem parecia ser amigável, e 4669 não podia deixar de sentir uma vaga, porém nítida vontade de continuar a interagir com aquele indivíduo. A qual, evidentemente, ele logo tratou de afastar da sua mente ao casualmente lembrar-se de que, apesar de objetos de estudo fascinantes, humanos não eram seres a quem se destinaria o mínimo de simpatia ou amizade.

    - O que eu faço ou deixo de fazer não lhe diz respeito algum. – Ele respondeu secamente, e sentiu-se grato ao perceber que conseguira imprimir o máximo de desdém que pôde em sua voz, que enfim voltava ao tom normal. É importante deixar claro para ele que não tenho a menor pretensão de manter qualquer forma de contato amistoso. E também é bom que ele saiba que, apesar de estar fraco e limitado, não vou permitir que ele me interrogue dessa forma!Após suas palavras, seguiu-se um denso silêncio, sustentado apenas pelos olhares intensos dos dois homens, que analisavam-se mutuamente como se enfim quisessem decidir o que achavam um do outro e se estavam ou não dispostos a continuar aquela conversação.

    - Bom... É justo. – O outro enfim retrucou, atingindo 4669 de surpresa e fazendo-o arquear as sobrancelhas em uma reação de genuíno espanto. Eu achei que ele fosse insistir mais! – Você realmente não me deve satisfação alguma. Enfim... Como eu ia dizendo antes disso tudo...

    O outro pareceu enfim achar seguro se aproximar novamente do seu hóspede. Pé ante pé, o druida avançou na direção da cama, deixando os braços junto ao corpo e encarando 4669 nos olhos o tempo todo, como se quisesse assegurá-lo de que não tentaria nenhuma gracinha. Estranhamente, o Bonelord disfarçado achou ter sentido uma tépida sensação de confiança ao sustentar o olhar do outro, a qual, mais do que tudo, deixou-o extremamente desconfortável. O dono da casa, entretanto, parecia determinado a ter sucesso, e não deixou-se intimidar pela careta feita pelo homem deitado na cama.

    - Eu não sou um grande especialista em feitiços de cura, para ser bem sincero. Minha mãe era muito melhor nisso do que eu, veja bem, e não tive muito... tempo... para aprender isso direito com ela. – Ele falou com uma leve amargura na voz nas palavras finais enquanto se ajoelhava ao lado do leito de 4669, deixando seus olhos no mesmo patamar que os dele. Quando ele o fez, o Bonelord sentiu a estranha sensação de que não era apenas a personalidade do outro que emanava um estranho calor, mas também o seu corpo. Esse infeliz que não se atreva a chegar perto demais! Ele pensou, sem conseguir dizer qualquer coisa para detê-lo, entretanto. – Mas, como eu te disse, eu consegui curar os principais ferimentos quando te encontrei. Achei que seria preferível te tirar de lá antes que alguém mais te encontrasse, então te trouxe pra cá e tenho tentado cuidar dos outros ferimentos desde então. O problema é esse braço aí... Não tenho certeza se sei magia curativa o bastante para remendar ossos, mas se você me deixasse dar uma olhada nele eu poderia ver o que consigo fazer. Acredite, ele estava bem pior quando o encontrei. Talvez com mais algumas seções com algumas runas de cura eu consigo fazê-lo parar de doer o tempo todo.

    4669 engoliu em seco enquanto passava os olhos do rosto do estranho para seu braço enfaixado, que jazia agora duro sobre seu peito. Ele estava ciente de que não seria capaz de curar um ferimento daqueles - magia curativa não era um forte dos Bonelords. No entanto, confiar sua saúde a um humano era, no mínimo, insano. A sua hesitação não passou despercebida pelo druida.

    - Olha só... Eu sei que isso é esquisito e que você não me conhece e que esse mundo é cheio de gente doida... – Ele soltou um longo e penoso suspiro. – Mas se eu quisesse te fazer algum mal, eu teria roubado as suas coisas e te deixado pra morrer lá na floresta. Mas eu não deixei. Então se você puder apenas confiar em mim, eu posso ver o que consigo fazer pelo seu braço e depois posso te deixar ir.

    Uma estranhíssima sensação de dúvida começava a se apoderar de cada centímetro do corpo e da mente de 4669. Ele é um humano! Não é de confiança! Gritava um dos hemisférios da sua mente. Mas ele poderia ter facilmente acabado comigo enquanto eu dormia, se quisesse! E não o fez! Gritava a outra. O druida pareceu notar, pois, no momento seguinte, ele estendeu seu braço em um movimento rápido para abrir a gaveta do criado mudo ao lado da cama, da qual ele tirou um pequeno pote circular de barro. 4669 involuntariamente retraiu-se ao perceber o gesto inesperado do humano.

    - Você pode até comer um biscoito enquanto eu dou uma arrumada nesse braço, se quiser. Você deve mesmo estar com fome. – E, dizendo isto, ele abriu a tampa do pote, deixando à vista de 4669 uma coleção de pequenos discos do que aparentava ser uma espécie de massa assada, em cuja superfície eram visíveis pequenos pontos de coloração marrom cuja composição ele não reconheceu. O aroma que se desprendia deles era estranhamente reconfortante.

    ***

    - Deixe-me ver se eu entendi isto corretamente. – Soou a voz de Elathriel pela pequena delegacia de Ab’Dendriel, localizada em uma sala imunda e mal-ilumina acima de uma escada no final do corredor onde encontravam-se os Portões do Inferno. Ele encarava Batráquio nos olhos com uma grande sombra de dúvida perpassando os seus, como se estivesse lutando internamente consigo mesmo para decidir se podia ou não confiar no misterioso homem que jazia sentado do outro lado da mesinha de madeira bamba em torno da qual eles estavam sentados. – Você está me dizendo que já esteve naquele lugar horrível antes e que agora voltou para resolver algumas... Como foi mesmo que você disse?

    - Pendências.

    - Isto, pendências! Você retornou para resolver algumas pendências que deixou neste lugar funesto e, por isto, eu tenho a obrigação de colaborar com sua empreitada e lhe fornecer a chave que permitirá sua passagem e entrada no Inferno. Ou então você irá explodi-la e entrar mesmo assim. É isto?

    - Um resumo bastante preciso de tudo que eu lhe disse, sim. – Respondeu Batráquio com a voz contaminada de impaciência e tédio. Eles estiveram repetindo aquele diálogo interminavelmente pelo menos nos últimos vinte minutos, desde que ele concordara em acompanhar Elathriel até a delegacia para melhor resolver aquela situação sem a necessidade de um combate desnecessário. Do qual eu certamente sairia ganhando.

    - Isto não está certo. Não está certo mesmo. – Disse Elathriel encarando as próprias mãos, como se falasse mais consigo mesmo do que com seu interlocutor. – Digo, eu nem mesmo sei quais são essas suas... Pendências... Naquele lugar tenebroso. Não está certo. Não posso permitir que você passe sem ao menos saber o que pretende fazer lá! É um lugar muito perigoso!

    O feiticeiro de verde soltou um suspiro de profunda impaciência, tentando se lembrar novamente dos motivos que tinha para não fulminar Elathriel ali mesmo e simplesmente arrancar a chave do seu cinto.

    - Eu já lhe disse, xerife. O que eu pretendo fazer lá não é do seu interesse. – Vou roubar o máximo de livros da biblioteca que possam me ajudar a reverter esta maldição horrorosa que me foi lançada, reencontrar meu antigo mestre, assassinar alguns antigos inimigos com os quais tenho contas a acertar e fazer o Conselho pagar por tudo que me fez no passado, ele pensou enquanto seus olhos afundavam nos de Elathriel. – Além do que, eu já lhe disse que, se você concordar em me emprestar a chave... Eu o irei recompensá-lo muito bem.

    Elathriel pareceu ponderar a proposta por alguns minutos, seu cenho franzindo-se e desfranzindo-se seguidamente, como se o mesmo tivesse sido atingido por algum tipo de feitiço para confundir a mente. Até que não teria sido uma má idéia, pensou o Bonelord ao considerar a hipótese.

    - Ainda assim... Isto é muito irregular. E não seria correto! – O delegado endireitou-se subitamente na cadeira ao proferir aquelas últimas palavras, como se tivesse acabado de se lembrar daquele pequeno detalhe e o considerasse deveras importante. – Eu sou a lei desta cidade, não posso permitir que a corrupção chegue até esta instituição!

    - Meu caro Elathriel – Disse Batráquio enquanto descruzava as pernas e arqueava o corpo para frente, pousando as mãos entrelaçadas sobre a mesa e cravando seus olhos verde-esmeralda nos do delegado, que sentiu como se alguém estivesse lhe invadindo os pensamentos. – Raciocine comigo. Eu estou tentando convencê-lo a me entregar a chave para aquela porta sem a necessidade de recorrer a meios explicitamente criminosos. Eu poderia, como lhe expliquei, colocar a porcaria da porta abaixo com um feitiço, mas acredito que isto seria pouco... hm... gentil da minha parte.

    - É, realmente seria bastante grosseiro...

    - E, se você parar para pensar. – Batráquio continuou, sem dar importância às palavras do delegado. – Eu estaria, tecnicamente, cometendo um delito gravíssimo se destruísse aquela porta. Tenho certeza que isso deve se enquadrar em dano grave ao patrimônio ou coisa parecida, e presumo que a sentença para isto seria igualmente grave. Talvez, quem sabe... Ser jogado nos Portões do Inferno por toda a eternidade para definhar e refletir sobre meus erros?

    O delegado abriu a boca para dizer alguma coisa, mas subitamente a fechou ao finalmente acompanhar a linha de raciocínio de Bonelord.

    - Logo, concluímos que, se eu puser a porta abaixo, estarei cometendo um crime punível com minha própria prisão no lugar que eu justamente estou tentando invadir, o que, segundo a sua lei, seria perfeitamente justificável. Assim sendo, acho que fica bastante lógico que, de um jeito ou de outro, eu estarei atravessando aquele portal hoje, seja por bem, seja por mal. E, cá entre nós, estou tentando fazer isso de uma forma legal. E uma forma que vá te render um pagamento generoso.

    - Isso... Isso estranhamente faz um certo sentido, Sr. Bestáquio...

    - Batráquio. O nome é Batráquio.

    - ... Mas como posso ter certeza de que o senhor honrará com a sua parte no acordo? – Elathriel fez uma pausa enquanto analisava o outro, sobretudo suas vestes, as quais estavam sujas e surradas após longos dias de viagem através do Continente. – Não me entenda mal, mas... O senhor não parece estar em condições de pagar nada a ninguém. Eu preciso de garantias, sabe.

    O feiticeiro ergueu uma das sobrancelhas enquanto registrava as palavras do delegado e sentia seus dedos tremerem levemente sobre a mesa. Ora essa! O patife está me chamando de miserável! Entretanto, ele sabia que Elathriel certamente era um arqueiro muito mais competente do que era um delegado, e perder a calma naquela situação apenas comprometeria sua operação e levaria a uma luta desnecessária. Poupe seus esforços para a Necrópole, Batráquio, ele repetiu mentalmente, como já fizera muitas vezes antes e ainda faria tantas outras. Tudo que ocorrer antes dela não tem importância alguma.

    - Entendo. Bom, sendo assim, acredito que posso encontrar algo para deixar como garantia até meu retorno, de forma a assegurar que você não apenas terá a chave de volta, como também o gordo pagamento que negociamos.

    - E esta garantia seria...?

    Ele fez uma breve pausa enquanto raciocinava. A resposta chegou rapidamente à sua mente, junto com um zurrinho de impaciência de um certo burrinho que o observava à distância, próximo à escada.

    - O burro. – Ele disse, abrindo um largo sorriso. – O burro é a sua garantia.

    - Como é? – Reagiu Elathriel, espantado, sendo acompanhado por Eliseu, que pareceu entender as palavras de seu mestre e soltou um bufo de indignação.

    - Ora francamente, Eliseu. Você detesta cavernas! Já foi um suplício fazê-lo descer a porcaria das escadas para chegar até aqui. Nós dois sabemos muito bem que você não iria gostar nem um pouco do que existe lá embaixo! – Retrucou o Bonelord com impaciência, voltando-se para seu burrinho e o encarando com severidade. Eliseu respondeu com um baixo zurro tristonho e baixou as orelhas, fazendo com que seu mestre se sentisse relativamente culpado. – Ora, colabore, Eliseu. Além do mais, não existem cenouras no Inferno. E tenho certeza que o bom e valente xerife Elathriel poderá prover uma grande quantidade delas para você enquanto vocês esperam meu retorno.

    Ao dizer as últimas palavras, o homem de cabelos e barba negros virou o rosto para o elfo e o encarou com veemência.

    - Ah sim, sim, claro! Cuidarei muito bem do bom Eusébio...

    - Eliseu.

    - ...Até você voltar. Sim, sim... Tenho certeza de que isso resolve nosso impasse. – O delegado pareceu estranhamente satisfeito, apesar de não ter parecido gostar muito da idéia de ser babá de um burro por um período indeterminado de tempo. – Quero dizer, tudo isso ainda é muito, muito irregular, mas estou confiante de que você não contará nada disso a mais ninguém...

    - Naturalmente.

    - ...E de que trancará a porta ao passar para termos certeza que nada indesejado sairá por aí...

    - É lógico.

    - ...E, se ninguém mais ficar sabendo, e nada de mal atravessar aquele portal... Então poderemos todos fingir que nada aconteceu. - Sorri Elathriel - Só existe um pequeno problema...

    - Que seria?

    - O que acontece se você morrer e não voltar? - Disse Elathriel com um inesperado ar nefasto contaminando sua voz e suas feições. O Bonelord engoliu em seco, sentindo um peso descendo pela sua garganta. – Não foram muitos os aventureiros que se atreveram a atravessar os Portões do Inferno, Sr. Bestáquio, e menos ainda aqueles que tiveram a boa fortuna de regressar vivos e inteiros, ou, pelo menos, com dois membros intactos. O que te faz pensar que sobreviverá a esta amaldiçoada viagem?

    Batráquio deixou que as palavras do delegado pesassem em sua mente por um longo período, como se quisesse dar a elas a oportunidade de fazê-lo desistir daquela loucura. Ele está certo. O Inferno não é um lugar para se entrar levianamente. O que me espera lá embaixo, por mais que eu já conheça a maioria dos caminhos, é pior do que muitos dos mais horríveis mitos e lendas que se contam na superfície. Ele sabia que, se não fosse seu desejo ardente de fazer tudo aquilo que ele deveria ter feito no passado e de consertar a imagem sua que ele deixara ao ir embora, ele jamais se daria ao trabalho e esforço de enfrentar o que estava para enfrentar. Esta certamente é a maior provação que eu já enfrentei na minha vida. Entretanto, ele sabia que jamais teria paz enquanto não resolvesse aquilo de uma vez por todas.

    - Eu sei que vou voltar. Eu tenho certeza disto. Não há nada que me faça considerar a hipótese de ficar pelo caminho. – Disse ele por fim, convicto, enquanto lançava um olhar deveras hesitante para Eliseu. O burrinho parecia resignado com seu futuro imediato, mas retribuiu o olhar de seu mestre com algo que se assemelhava muito com a confiança de que ele não o deixaria para apodrecer ali com Elathriel. Batráquio deu um meio-sorriso, tentando imagina quando no seu passado ele poderia ter previsto que se afeiçoaria tanto a um quadrúpede como aquele. Eu prometo que não vou te deixar aqui, Eliseu.– Agora me dê logo essa chave antes que eu perca a paciência e abra um rombo na porcaria daquela porta.

    ***


    Eles jamais sentira algo como aquilo antes. Não era apenas o aroma – os tais biscoitos, como o estranho e simpático druida os havia chamado, eram também estranhamente deliciosos, especialmente as gotas daquela substância marrom, a qual, segundo o homem que os criara, chamava-se chocolate. 4669 não soube exatamente como foi que acontecera: em um instante ele estava tentando resistir ao aroma inebriante daqueles biscoitos, o qual fazia seu estômago tremer e implorar por alimento, e, no outro, ele estava sentado na beirada da cama, de frente para o sujeito que o acolhera, com o pote de biscoitos aninhado no colo, a boca repleta de farelos e gotas de chocolate e o braço esquerdo estendido, amparado pelo druida, que murmurava uma série de encantamentos enquanto tateava por cada centímetro da superfície agora nua do membro – as ataduras jaziam esquecidas no chão.

    Vez ou outra, os feitiços do desconhecido provocavam reações inquietantes ou diretamente desagradáveis em seu corpo. Um encantamento particularmente poderoso lhe parecera uma série infinita de finíssimas agulhas de gelo sendo repetidamente cravadas em seu braço, o que acarretara em 4669 novamente jogando-se de costas na cama e gemendo de dor por alguns minutos até finalmente aceitar que o humano voltasse a tentar colocar todos os ossos moídos no lugar. Apesar de tudo, era inegável que o druida até tinha algum talento como curandeiro: após o que pareceu uma eternidade, 4669 já não mais sentia a dor excruciante de antes, e agora ele já conseguia mover os dedos da mão esquerda com relativa firmeza, apesar de persistirem algumas limitações incômodas.

    - Eu não posso te garantir que ele vá ficar bom como antes. – Dissera o sujeito depois que terminara de executar todos os encantamentos que conhecia e depois de gastar metade das runas de cura que possuía armazenadas em casa. – Talvez você devesse visitar um druida mais competente nessa escola de magia em particular. O Eroth certamente deve conhecer algum feitiço que vá deixá-lo novinho em folha.

    - Não. – Ele se ouvira dizendo com veemência, colocando um ponto final naquele assunto. Ele não tinha certeza do quê o fizera confiar naquele estranho e nem mesmo sabia que aquela fora a escolha mais acertada a se tomar, mas, fosse como fosse, ele não permitiria que nenhum outro curandeiro esquisito se aproximasse dele naquelas condições. Algo lhe dizia que ele não encontraria por aqueles lados alguém tão hospitaleiro como aquele druida. – Assim deve estar bom. Deve sarar com o tempo.

    O outro deixou-se sentar no assoalho, exausto, com numerosas gotas de suor escorrendo pela testa. O sujeito é teimoso mesmo, ele pensou enquanto soltava um longo suspiro e tentava recuperar o fôlego. Ele então estendeu uma das mãos na direção do outro, que se retraiu involuntariamente.

    - Calma aí. Eu só quero um biscoito. – Ele disse abrindo um largo sorriso ao ver a reação de 4669. Àquela altura, ele já começara a achar as reações exageradas do estranho deveras engraçadas. É um sujeito bastante peculiar, esse aqui. Ele então sacou um dos seus biscoitos do pote de barro, que agora jazia ao lado de 4669, e o enfiou inteiro na boca, mastigando-o com vontade. Ao terminar de engolir, fez uma careta. – Não foi uma das minhas melhores receitas. Minha mãe sabia fazer uns que eram fantásticos, mas eu nunca peguei o jeito.

    - Eu os achei fantásticos. – 4669 se ouviu dizendo, apenas para cair em si em sequência e sentir-se extremamente tolo por manter uma conversa casual daquelas com um humano. Ainda mais por tê-lo elogiado de alguma forma. – Digo, estavam ok. Apenas ok.

    O outro abriu um largo sorriso e baixou o rosto por alguns segundos enquanto continha o riso. Algo naquele estranho fazia-o ter vontade de rir o tempo inteiro, apesar do estranhamento inicial do primeiro contato de ambos.

    - Você é um sujeito engraçado, sabe. – Ele disse, voltando a fixar seus olhos no outro, o sorriso ainda presente em seu rosto. Ele parecia ainda mais sereno e jovial com aquele riso estampado na cara. Ao ouvir aquelas palavras, 4669 fechou o rosto e bruscamente puxou o braço esquerdo para perto de si e longe do druida, direcionando a ele um olhar profundamente irritado e ofendido. Entretanto, sua reação apenas fez com que o sorriso do estranho se alargasse ainda mais. – Eu quis dizer no bom sentido. Você é um sujeito engraçado no bom sentido. Digo, quando não está por aí chutando as coisas ou atirando bolas de fogo nas pessoas. Ou sendo antipático.

    - Eu não devo simpatia nenhuma a um humano. – Ele rosnou enquanto tampava o pote de barro, agora vazio, e fulminava o outro com o olhar. A expressão facial do druida passou da graça para uma breve confusão, e depois novamente para o riso, o que apenas serviu para inflar o ânimo de 4669.

    - Claro. Afinal, você deve ser um espírito da natureza ou alguma divindade etérea ou coisa parecida, certo? – Riu o outro enquanto se levantava e batia o pó acumulado das vestes. Ele se distanciou por alguns segundos na direção da mesa e logo voltou arrastando uma cadeira que jazia recostada ao móvel, a qual postou diante da cama e sentou-se, apoiando os braços no encosto e encarando o outro.

    Cuidado, 4669. Por alguns instantes, ele esquecera-se de que, para todos os efeitos, era um humano em um mundo de humanos. Sua missão pode ter fracassado, mas a última coisa que você precisa é trair seu disfarce! Seu estômago revirou-se mais uma vez com a lembrança de seu fracasso, a qual ele tentou afastar da cabeça o mais rápido que pôde. De qualquer modo, ele sabia que precisava manter as aparências: ele jamais conseguiria sair de Ab’Dendriel sem causar um enorme tumulto caso denunciasse sua verdadeira raça.

    - Foi... Foi modo de dizer. Apenas isso. – Ele rapidamente disse enquanto desviava o olhar. Algo na expressão facial ridícula que o outro fazia enquanto o encarava lhe incomodava profundamente.

    - Viu só? Você é hilário! – Ele disse entre um sorriso e outro, como se estivesse decidido a fazer com que 4669 o odiasse ainda mais. Já basta que agora eu tenho uma imperdoável dívida com esse sujeito, ele pensou com rancor. A última coisa que eu preciso é ele achando que somos amigos ou coisa parecida. Por certo, ele deveria cortar aquele papo de imediato e ir embora dali. Mas, por alguma razão inexplicável, ele queria descobrir o que poderia acontecer caso ele ficasse.

    Seguiu-se um longo ainda que estranhamente confortável silêncio. Durante ele, 4669 se pôs a observar cada detalhe do cômodo onde estava com ainda mais atenção, tentando afastar da mente tudo que lhe haviam ensinado sobre humanos e buscando absorver algo que pudesse ajudá-lo a compreender melhor o comportamento da raça. Já que vim parar aqui, vou pelo menos aproveitar e continuar com a minha pesquisa... Enquanto isso, o dono da casa parecia estudá-lo, talvez tentando descobrir se era uma boa idéia questionar ao estranho de onde ele vinha, quem era e o que fazia da vida. Ele parece um sujeito muito fechado, pensava o outro enquanto o analisava. Não acho que ele vá me contar muito sobre ele, mesmo que eu pergunte... Mesmo assim, ele decidiu correr o risco.

    - Que é 1208? – Ele indagou inocentemente, como quem não quer nada. Como esperado, o estranho retesou-se ao ouvir o questionamento, desviando o seu olhar, que então jazia na travessa de frutas, para o rosto do druida. Sua respiração aparentemente ficara mais tensa, e seus olhos haviam se estreitado ameaçadoramente.

    - Onde você ouviu isso?


    - Você estava resmungando esse número enquanto dormia. – Ele respondeu dando de ombros. Nas várias horas que haviam se passado desde que ele o resgatara do gramado, ele tivera a impressão de ouvir aquele número ser repetido incontáveis vezes durante o sono do estranho. – Ele quer dizer alguma coisa?

    - Não é um número. É um nome. – Por que eu estou contando isso pra ele? Puta merda! Havia algo naquele estranho que lhe fazia querer falar sobre aquilo, e ele não sabia exatamente o que era, tampouco gostava disso. É perigosíssimo falar dos assuntos da Necrópole fora dela, ainda mais com um desqualificado de um par de olhos só!

    - 1208? Um nome? – O druida espantou-se, voltando a assumir a mesma expressão de apreensão com a qual o encarara mais cedo, após quase ter sido chutado na cara de queimado vivo. – É um nome um pouco engraçado para uma pessoa, não é?

    - É um apelido. – Ele apressou-se em inventar após detectar seu deslize. Não sei o que me deu, falar disso justamente com ele. Entretanto, em algum lugar da sua mente, um lugar que ele há muito lutava para manter silencioso, 4669 sabia que precisava falar sobre aquilo com alguém. – É um apelido de um... amigo.

    - Ah. Claro... E o que houve com esse seu amigo?

    - Morreu.


    4669 falou aquela palavra com uma aparente indiferença, como se não tivesse a menor importância. Para ele, era importante demonstrar o máximo possível de apatia diante de acontecimentos como aquele, mesmo que ele não estivesse efetivamente sentindo-se daquela forma. Fora assim que eles o ensinaram. A morte é para a vida apenas como a passagem da água para o gelo, 4669, dissera-lhe 1593 em um passado remoto, quando ele ainda era um gazer. Não se deve lamentá-la ou temê-la, mas sim admirá-la e abraçá-la. Lembre-se disto. Por muito tempo, ele acreditara naquelas palavras. Entretanto, como ele aprendera em uma ensolarada manhã no Castelo de Elvenbane, aquele era um ensinamento imensamente mais assimilável na teoria do que na prática. Pelo menos para ele.


    Houve um silêncio desconfortável, denso como uma parede de tijolos.

    - Eu sinto muito. – O outro disse finalmente, e sua voz transmitiu um tipo de emoção que, a princípio, 4669 teve certa dificuldade de identificar. Ela transmitiu uma forma de empatia. De consolo. Como se ele realmente pudesse identificar sua perda e se solidarizar a ela. Aquelas palavras, mais do que os biscoitos, mais do que os feitiços de cura, mais do que o fato de o outro tê-lo acolhido em sua casa sem nem mesmo saber quem ele era foram o que despertou sua mente para a singularidade do indivíduo que estava sentado em sua frente.


    Ao perceber o novo silêncio constrangedor que se instaurara, durante o qual 4669 sentia-se embriagar-se em sua confusão, o anfitrião logo tratou de tentar se redimir.

    - Desculpe, eu não deveria ter perguntado. – Ele se apressou em dizer, atropelando as palavras. – Eu realmente não queria ter me intrometido... É que você ficava repetindo esse número o tempo todo e eu fiquei pensando...

    - Por que você me ajudou? – 4669 disse com a voz baixa e mansa, tentando, pela primeira vez, analisar o humano à sua frente sem a ótica que lhe fora gravada na mente pela Necrópole. Todos os anos que eu passei estudando essa raça e tentando entender seu raciocínio e sua cultura terão sido desperdiçados se eu não me livrar dessa visão que me foi imposta e buscar compreendê-los pelo que são. Aquele pensamento lhe era, ao mesmo tempo, extremamente assustador e imensamente libertador.

    - Como é?

    - Eu perguntei por que você me ajudou. Você poderia, como bem disse, ter me deixado lá para definhar. Você poderia ter me chutado daqui assim que acordei. Entretanto, você me acolheu e tratou dos meus ferimentos. E eu gostaria de saber o porquê. – Ele calmamente explicou.

    O outro pareceu desconcertado, e, de certa forma, talvez até um pouco ofendido por aquela pergunta.

    - Por que é a coisa certa a se fazer? – Ele falou como se aquilo fosse óbvio e como se 4669 fosse um lunático por não ter encontrado uma resposta tão lógica como aquela. – Não é certo deixar um semelhante morrer quando se pode fazer algo a respeito. É isso que eu aprendi quando comecei a treinar para me tornar um druida, e é nisso que eu acredito.

    - Um semelhante? E se... E se eu não fosse humano? – 4669 sentiu sua boca secar, sem ter certeza do porquê. – E se eu fosse qualquer outra coisa?

    - Todos os seres que vivem neste mundo têm o direito de viver. Não é correto deixar outro ser vivo para morrer assim. É cruel.

    - Você fala como se conhecesse todas as raças do mundo e tivesse certeza de que todas são dignas da sua piedade.

    - E você fala como se houvesse alguma que fosse indigna. – Ele retrucou com um largo sorriso. – Existem tantos tipos de criaturas no mundo... Não te parece simplista demais assumir que todas elas são alguma coisa ou deixam de ser outra? Se bem que, na verdade, eu não gosto dessa história de raças. Não gosto de julgar os outros, prefiro conhecê-los. Normalmente funciona melhor.

    4669 ficou alguns segundos observando o humano com uma inquietação crescente, uma inquietação que ia muito, muito além da mera curiosidade. O indivíduo que estava em sua frente era um exemplar distinto do padrão humano com o qual ele tivera contato. Não gosto de julgar os outros, ele dissera. Será que ele se lembraria disso se me visse do jeito que eu realmente sou? Ou será que me deixaria para morrer?

    - Eu preciso ir. – Ele disse, de súbito, levantando-se repentinamente e sobressaltando seu anfitrião, que voltou a encará-lo com um ar de preocupação.

    - Você tem certeza? Talvez você devesse descansar por mais algumas horas. Esse braço ainda não está totalmente curado, sabe... – Ele disse enquanto se erguia da cadeira, tentando encontrar uma forma de convencê-lo a ficar. Ele sentia que, nas últimas palavras que trocaram, eles estavam começando a tecer algo próximo de uma conversação casual relativamente amistosa. E havia algo naquele estranho que o fazia querer conhecê-lo.

    - Eu realmente preciso ir. – 4669 disse com firmeza enquanto se dirigia ao cabide junto à porta para recolher sua túnica e sua capa de viagem. Aquela conversa toda o estava deixando inquieto demais, e ele precisava urgentemente caminhar para colocar os pensamentos em ordem. Além disto, ele precisava contabilizar os prejuízos do fracasso da sua empreitada e decidir se havia algo a ser feito para consertar o seu erro. E, por fim, ele realmente sentia que precisava se afastar daquele humano, pelo bem da sua sanidade mental.

    - Bom... Que seja, então... Cuide-se. Não saia escalando escadas de mais de três metros de altura de novo. E evite carregar peso naquele braço por um tempo! – Insistiu o estranho enquanto o outro vestia sua túnica e jogava a capa sobre o corpo. Quando ele ia dirigindo-se à porta, o druida pareceu lembrar-se de algo que o fez soltar uma exclamação aguda. – Ah! Puta merda, desculpa a grosseria, mas eu me esqueci completamente.... Que falta de modos...! Como é o seu nome?

    Meu nome? Por aquilo ele decididamente não esperava. Ele sabia que os humanos tinham nomes e sobrenomes próprios, formados por letras e sílabas, e sabia também que simplesmente dizer “4669” não seria, de forma alguma, apropriado. O disfarce, 4669, você precisa manter o disfarce! Sentindo sua inquietação crescer enquanto imaginava por que aquele humano iria querer uma informação trivial daquelas, 4669 improvisou o primeiro nome relativamente humano que lhe veio à cabeça.

    - Dagobald. – Ele disse, pensando no “Livro das Transmutações, de 56689 (ou Dagobald, o Insano)”. Preciso inventar também um sobrenome! Rápido! Sentindo um leve pânico gerado pela tolice de ter esquecido aquela parte do disfarce, 4669 falou a primeira palavra solta que conseguiu pensar, apenas parcialmente ciente do desastroso resultado que produzira. – Dagobald Tarantella.

    O outro, mais uma vez, abriu um largo sorriso e abafou um risinho.

    - Algum problema? – Questionou 4669 enquanto erguia as sobrancelhas e voltava a se perguntar por que não fulminava aquele humano ali mesmo.

    - Não, não. É que você é muito engraçado, só isso. – O anfitrião riu-se. Se pudesse, ele faria aquele sujeito ficar, apenas para poder conhecê-lo mais e rir mais com ele. Mas, por ora, ele sentia que o melhor a fazer era esperar que seus caminhos se cruzassem mais uma vez no futuro.

    - E você? Não tem nome, por acaso? – 4669 retrucou, impaciente, surpreendendo-se com sua própria ousadia. Por que eu quero saber disso? Que diferença isso faz? Ele nunca se dera ao esforço de memorizar um nome que não fosse numérico antes.

    O druida voltou a sorrir – Que mania irritante! – e estendeu o braço esquerdo, ciente de que seu hóspede só poderia corresponder a um aperto de mão com o braço direito. Que gesto estranho é esse? pensou 4669, nervoso, sem saber o que viria a seguir.

    - Muito prazer, Dagobald Tarantella. Meu nome é Ícaro. Ícaro Azrael.

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    Batráquio e Eliseu encontram os Portões do Inferno.
    Última edição por Manteiga; 19-05-2018 às 22:48.
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