Capítulo 3 – Conselhos e Destinos
Se Greenwood prestasse um pouco de atenção ao ambiente, veria que estava num corredor de pedra. Uma pequena tocha na parede da esquerda servia de iluminação. À direita, um vão escuro e um forte cheiro de mofo indicavam que a famosa biblioteca era ali. E, do lado oposto ao pórtico de entrada, o corredor continuava.
Mas Ralf não prestava atenção no lugar, seus olhos assustados estavam voltados para os três outros ocupantes do recinto. Sentados em bancos com estofamento vermelho, atrás da terceira figura, Helidan e Arthur assistiam a cena se desenrolar com interesse. Segurando o braço do jovem, estava um homem alto e magro, que Greenwood reconhecia vagamente. Seus cabelos eram castanhos e seus olhos verdes. Usava uma capa azul escura de um tecido caro. A camisa de linho branco e o cinto de prata adornado com pedras preciosas revelavam que o homem era abastado. Um sorriso largo estava estampado na cara dele.
- Olá, olá, olá... senhor Greenwood. – falou o homem, com os olhos verdes brilhando. Subitamente, a mão relaxou e o jovem conseguiu se desvencilhar – meu nome é Seymour, Sir Seymour, se por acaso você não sabe, o que seria surpreendente, dado que todo mundo me conhece, e eu conheço o distinto contador de histórias-que-mora-numa-cabana-afastada. Estava ouvindo a tarefa, digo, a mui valorosa e prestigiosa missão designada pelo próprio rei! Que honra fabulosa!
Ralf não pode deixar de notar que o discurso adulador continha pontadas de um sarcasmo divertido. Mesmo assim, gostou de imediato do bibliotecário. Parecia poder achar graça em qualquer situação, mesmo que desesperadora. Suas piadas e tiradas eram conhecidas na vila quase tanto quanto as histórias do jovem. E, mesmo Greenwood não sabendo na hora, por trás dessa carapaça humorada, Seymour detinha um conhecimento fantástico sobre as coisas que aconteciam e aconteceram no mundo.
- Olá, Sir Seymour. – respondeu Ralf, coçando o braço dolorido. Virando-se para os outros dois ocupantes do recinto, disse – E, oi para vocês também. Desculpem pelo atraso.
- Ralf, meu caro! – disse Arthur, levantando-se da cadeira num salto. Helidan permaneceu sentado e calado, com suas pernas envoltas com a calça metálica balançando. O velho se aproximou de Greenwood, com sua capa vermelha esvoaçando atrás. Seus olhos se voltaram rapidamente para a cara carrancuda de Helidan, passando por segundos pela face sorridente de Seymour até chegar nos olhos de Ralf. Este por sua vez, teve a mesma sensação de estar sendo lido como um livro que tivera da primeira vez. – Bem, aqui estamos reunidos, pelas causas que todos sabem. Os motivos nós sabemos, a finalidade também. Agora, cabe a nós decidir como temos de fazer o que precisa ser feito. Para esse intento, estamos juntos na digníssima biblioteca de Sir Seymour, o sábio.
“Quanta enrolação” pensou o jovem, observando o velho discursar. Helidan mantinha a cara fechada e o sorriso de Seymour aumentou um centímetro, ao ouvir o elogio para ele dirigido. Ralf se obrigou a prestar atenção em Arthur, ao invés de olhar para as paredes do local.
- ... e, ninguém, ninguém mesmo, poderia nos ajudar, e auxiliar a si mesmo desse modo, mais do que Sir Seymour.
- Obrigado pelas palavras, caro Arthur, nobre mago, conhecedor dos mistérios e conselheiro amigo nas horas de necessidade – falou o bibliotecário, com uma pompa falsa, imitando a do velho, fazendo Ralf abafar um risinho. – Quero realmente ajudar vocês. Como bem disse o nosso camarada, não sou conhecido por minhas doações de dinheiro ou armas, mas sim por meus conselhos, dos quais falarei a vocês agora.
“Primeiro de tudo: nunca desistam, não importe a dificuldade em que estejam. Se tentarem desobedecer a ordem real, estarão em maus lençóis reais quando voltarem. Nosso mui amado e estimado rei não costuma ser generoso com desertores, e tem uma memória prodigiosa no que diz respeito a ofensas e faltas cometidas contra si. É melhor morrer como herói numa aventura do que um traidor da pátria em praça pública.
Segundo: apesar de terem Helidan como escolta, levem mais um guerreiro. Os perigos à frente são mais terríveis que vocês pensam. Eu recomendaria Ethoin, Escudo-que-não-quebra, um dos melhores guerreiros presentes na ilha. Mas Ethoin saiu a mais de duas semanas pela floresta de Drimwood e ainda não voltou.
Terceiro: vocês encontrarão amigos na jornada, da forma mais improvável. Cuidado com quem falam! Ele tem muitos espiões por ai. Nada é o que parece, desconfiem de todos e de tudo.
Quarto: velhas histórias e lendas sempre têm um fundo de verdade. Lembrem-se de que toda história tem um significado oculto. Escutem o uivar do lobo e o ulular do vento com atenção.”
Seymour parou de falar, sério. O sorriso já não estava em seu rosto. Seus olhos transpareciam uma sabedoria imensa e uma tristeza profunda. Seu coração dizia que todos os três iriam sofrer antes de completar a tarefa, se conseguissem completar. Olhou para a face ansiosa de Ralf, que ponderava sobre os conselhos dados. “Pobre homem, nem sabe em que está metido” pensou o bibliotecário. Seymour, mesmo sendo sarcástico e irônico, tinha um bom coração, por isso decidiu ajudar os três da melhor forma que pudesse.
- Acho que vou ter que dar mais do que conselhos para que vocês possam realizar a missão sem muitos problemas. Tenho equipamentos e armas que serão de grande valia nos perigos a frente. Se quiserem me seguir, por favor. – pediu.
Helidan se levantou com a mesma expressão de sempre. Arthur seguiu o bibliotecário pelo corredor, junto com Ralf, que refletia bastante nas palavras ditas há poucos segundos. Os passos do grupo soavam secos, abafados na pedra. Os archotes que ladeavam o corredor tremeluziam, lançando sua luz vermelha sobre a pedra escura das paredes. O cheiro de mofo foi ficando mais fraco, conforme a passagem para a biblioteca se distanciava.
O corredor acabava numa sala quadrada, também de pedra. Ela era desprovida de qualquer móvel, o que dava uma sensação de vazio, mesmo o espaço sendo pequeno. Duas escadas, uma levando ao andar de baixo e outra ao de cima, estavam encostadas na parede a esquerda. Seymour caminhou até lá e desceu a escada. Arthur e Helidan seguiram o bibliotecário, mas Ralf ficou para trás. Uma estranha vontade de subir as escadas até o andar de cima se apoderou dele.
O jovem esqueceu de todo o resto e caminhou lentamente para a escada que subia. Tinha esquecido da missão, dos companheiros, do bibliotecário, de tudo. Quando foi dar o primeiro passo para subir, uma voz cortante chegou aos ouvidos dele, vinda do andar de baixo: “Senhor Greenwood?”. Ralf sacudiu a cabeça. Percebendo o que estava fazendo, rapidamente desceu as escadas.
O andar de baixo era muito escuro, somente dois archotes iluminavam o ambiente. O ar era pesado e difícil de respirar. Parecia a todos que aquilo era um local de confinamento, ou que tinham entrado numa tumba imemorial. À esquerda da escada, a sala se abria num grande cômodo de tijolos vermelhos e chão de pedra empoeirada. Logo ao lado havia outro cômodo, que, pelo pouco que podia ser visto, parecia um salão de festas.
Mas Seymour não foi para nenhum desses dois lugares, virando para a direita, até chegar num ângulo de cento e oitenta graus em relação a escada. O bibliotecário pegou um molho de chaves e abriu a porta de madeira clara com um rangido. Assim que a porta foi aberta, uma rajada de ar quente saiu por ela. Parecia que agora havia uma corrente de ar. A sala seguinte era mais bem iluminada. Uns baús velhos e decrépitos estavam jogados num canto, a maioria deles abertos e sem nada dentro. Em cada canto do cômodo quadrado uma pequena pira queimava, iluminando o local.
Seymour encaminhou-se para a próxima porta de madeira, que ficava logo em frente a primeira porta. Pegou outra chave do molho, pôs na fechadura e, com um pequeno barulho metálico, abriu a segunda porta. A sala seguinte parecia idêntica a anterior. Um olhar mais atento revelava pequenas diferenças, porém. Não havia nenhuma porta na parede oposta e, um estreito corredor escuro que levava sabe-se Banor onde, partia da parede direita.
Um forte cheiro de óleo queimado chegou às narinas de Ralf, que prestava atenção numa alavanca de madeira, perto do canto esquerdo da parede oposta de onde tinham vindo. Estranhamente, a corrente de ar parecia vir da própria parede. Greenwood já estava indo em direção ao corredor escuro quando Seymour, para a surpresa do jovem, foi até a alavanca. Deu um puxão. O pedaço de madeira nem saiu do lugar.
Com um grunhindo, atirou seu peso contra a alavanca, que estalou, mas resistiu. Ofegante, o bibliotecário se afastou. Parecia que estava tomando impulso para um salto. Foi quando Helidan pousou sua mão, enluvada com couro, na madeira. Empurrou a alavanca, que gemeu sobre a força do anão. Este resmungou algo sobre bibliotecários fracos e alavancas emperradas. Empurrando com as duas mãos Helidan conseguiu que a alavanca saísse do lugar. Se anteriormente estava inclinada para a esquerda, agora estava quase a noventa graus do chão. De repente, a corrente de ar aumentou.
Ralf desviou os olhos do anão e se olhou para a provável origem do ar. Abriu a boca, espantado. O que anteriormente era uma parede sólida, agora era um vão sombrio. E, conforme Helidan ia empurrando a alavanca, o vão aumentava. Ouviu-se um barulho forte de algo se chocando e a parede parou de deslizar. O anão parou de empurrar e se juntou ao grupo, com um pequeno sorriso no rosto. Seymour sacudiu os ombros, como se dissesse “tanto faz” e entrou na próxima sala.
O grupo seguiu-o e viram, espantados, o arsenal que o bibliotecário possuía. Espadas, machados, lanças e maças estavam arrumados em prateleiras e expostos em estantes. Escudos, dos mais variados brasões, estavam pendurados nas paredes. Elmos estavam empilhados num canto, como uma pilha de crânios. Armaduras dos mais variados materiais estavam penduradas em postes de madeira. Na parede da direita havia enormes armários. E eles estavam atulhados de equipamentos, de cordas e pás a pederneiras, chaleiras e mochilas.
Seymour riu da cara de espanto de Ralf e apresentou os objetos para os aventureiros, pedindo que escolhessem o que eles quisessem. Helidan não pegou nenhuma arma nem armadura, não precisava. Entretanto, se serviu com gosto dos equipamentos, aumentando seu sorriso. Arthur escolheu uma bela espada afiada e pegou um pequeno escudo de madeira. Já Greenwood pegou um escudo oblongo, feito de madeira também, embora fosse recoberto com finas placas de metal. Escolheu também uma espada longa e fina, com estranhas runas gravadas no cabo.
Depois de testar a espada, Ralf viu, jogadas num canto, arrumadas em feixes de dez, centenas de flechas, todas de uma madeira estranha de tonalidade vermelha, e emplumadas com penas de uma criatura desconhecida ao jovem. Com espanto, pegou um bocado delas, e amarrou-as num saco, junto a bainha da espada. Havia alguns arcos pendurados na parede esquerda, mas o jovem preferia usar o seu próprio.
Após agradecerem imensamente ao bibliotecário, todos saíram dali e foram para o salão de festas. Quando passaram pelo terceiro cômodo, Helidan fechou, com outro estrondo, a porta-parede. O salão em si não era muito suntuoso. Havia duas grandes mesas paralelas, entre elas, no centro, uma grande fogueira apagada. Os archotes, ligados, iluminavam as paredes, de tijolos vermelhos. De quando em quando, grandes tapeçarias que retratavam diferentes histórias desciam do teto e davam certa vida as paredes monótonas.
Ralf se lembrava dali, já tinha vindo diversas vezes em festas e comemorações. Normalmente, ficava numa das duas mesas, junto ao povo. Mas hoje estava sentado numa mesa separada, que era quase encostada na parede norte. Esta mesa, a única que tinha toalha, estava num estrado, que deixava os ocupantes num nível superior aos outros. Normalmente, só os habitantes que faziam a pequena nobreza do vilarejo sentavam ali, mas hoje todos jantaram na mesa.
O jantar não foi muito animado. Tinha mel, pão, carne de galinha, coelho, cervo, um pouco de peixe defumado e um caldo nutritivo feito da mistura de trigo com carne de porco e raízes muito popular na vila. Ralf e Helidan beberam cerveja, enquanto Arthur e Seymour tomavam vinho. Durante a refeição, Arthur e Seymour trocaram informações sobre a geografia da ilha, e sobre as criaturas que provavelmente encontrariam pelo caminho. Começaram então a traçar planos para chegar no objetivo. Helidan não pareceu muito interessado na conversa, e ficou bebendo cerveja e olhando para as tapeçarias, atento.
Quando Ralf começou a cambalear de sono, Seymour parou de conversar e indicou para o jovem um colchão de palha, perto da parede. Greenwood deitou, e quase imediatamente dormiu. A última imagem que lhe veio em mente era de Arthur acendendo o cachimbo e soltando fumaça, conversando com Seymour.
Naquela noite, Ralf teve um sonho muito estranho. Sonhou que se levantava do colchão de palha e passava por seus companheiros adormecidos. Subia lentamente as escadas até o andar superior. Com um átimo de hesitação, subia o outro lance de escada lentamente. Sua respiração estava pesada e fazia pequenas nuvens de vapor à sua frente. O ar frio de uma noite de outono quase inverno comprimia seus pulmões.
O andar de cima era um corredor que dava numa varanda, virada para a praça, ao sul. Ralf se encaminhou para a sacada. Uma brisa gélida fustigava as faces pálidas do jovem, que olhou para a praça deserta e, forçando a vista, viu o templo, magnífico sob a luz da lua, ao sul. Fechou os olhos, deliciado com o vento e o momento mágico.
Depois de um tempo, virou-se para ir embora, quando notou um arco a direita. Um tapete vermelho fofo ia da escada para o arco, e continuava para a outra sala. Greenwood parou, curioso. Uma estranha sensação tomou conta dele, e ele cruzou o arco. O tapete virava para o norte. Lá, no fundo da sala, estava uma estátua soberbamente esculpida. Era uma figura humanóide de tamanho real, mas tinha enormes asas abertas. Esculpida em mármore branco, passava tal majestade que o rapaz se ajoelhou ante ela.
Ficou um momento parado, olhando para o chão, sem coragem de encarar os olhos de mármore a frente. De repente, uma voz imponente, como o som de mil trombetas douradas saudando o amanhecer dos sóis, ecoou pela mente de Ralf.
- A profecia d’O Lobo está preste a se cumprir. O ferreiro espera ansioso por ti. Não procures por quem já morreu. Quando todas as armas se mostrarem ineficazes, utilize a sua maior. Cuidado com o que vem do Oeste! Pois pode ser tua ruína!
A voz se calou, e Ralf Greenwood, o contador de histórias, tinha um destino.