Ta aqui, Joxkyz.

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Capítulo VI - Cai a tempestade
Sara começou a correr pelas ruas de Liberty Bay, desnorteada. Não fazia ideia do que procurava, as ruelas e praças da cidade pareciam-lhe labirintos sem fim. Só queria fugir daquela insanidade de batalha, que era agora um mar de caos e gritos por todos os lados. E também, encontrar Jacques. O mordomo estava sumido desde que a bola de fogo quase a acertara. A aparição fantasmagórica, saída dos pensamentos de Sara, estava agora vagando à esmo pelas ruas da cidade, assustando e instigando os moradores e combatentes.
Pelos deuses, que tipo de monstro eu criei?
Mesmo distante como estavam, a criatura parecia poder ouvir seus pensamentos.
—
Monstro? Sou apenas o produto final de uma mente perturbada e perigosa, como a sua. Sou o mais profundo dos medos de todos os homens. Sou o inconsciente, conhecedor de seus piores pesadelos. Vim para causar o caos, desestabelecer a ordem e corromper as idéias e pensamentos de todos os que vivem. O medo é meu aliado, a esperança, minha inimiga. —Terminando com sua costumeira gargalhada, a criatura continuou sua tarefa.
Sara nada conseguiu responder àquilo. Não conseguia acreditar que um ser horrendo como aquele poderia ter sido criada por ela. Será que eu sou mesmo tão estranha? Talvez devesse ir morar numa ilha longínqua, longe de tudo, a fim de não causar mais mal à ninguém.
Céus, onde está Jacques?
No céu, os mensageiros da tempestade caíam com mais força do que nunca, e os trovões faziam estrondos memoráveis, capazes até mesmo de abafar os gritos da batalha. Logo, não aguentando mais seu próprio peso, as pesadas nuvens começaram a derramar-se sobre a cidade. Centenas de grandes cascatas de água caíam aos montes por toda a ilha de Vandura.
Já ensopada até os ossos, Sara continuou correndo. Era difícil ver qualquer coisa a sua frente; a chuva nublava quase completamente sua visão. Só desejava que não estivesse se aproximando da batalha mais uma vez, e continuou sua corrida sem sequer olhar para a frente. Perdida como estava, tropeçou em alguma saliência molenga em uma rua mais a diante, e caiu sobre ela, de bruços. A superfície mole amaciou a queda, mas ao ver o que era, Sara deu um pulo para trás, enojada. Havia tropeçado em um corpo.
Era um Libertário, de capa vermelha. Seu rosto estava completamente desfigurado. Passado o susto inicial, Sara começou a captar detalhes da rua. O corpo em que tropeçara era apenas um no meio de tanto outros jogados pela estrada, ensanguentados e encharcados. A batalha havia passado por ali e feito suas vítimas, soldados de Liberty Bay e Libertários. Fosse quem fosse, a luta não perdoava ninguém.
Continuando sua maratona, a garota enfim chegou à uma grande praça arborizada, mais ou menos no centro da cidade. Dali, ela poderia se localizar, pois conhecia o local, de várias vezes que já havia passeado por ali. As bonitas casas de Liberty Bay, o gramado e as árvores da praça, e o cheiro de cana e de rum que sempre impregnavam o ar da cidade ecoavam como lembranças na mente de Sara. Tudo isso parecia pertencer a um passado longínquo, que fora deixado de lado por uma nova realidade sombria.
Havia um ajuntamento de pessoas no meio da praça. Desejando não ser vista, Sara procurou algum lugar onde pudesse se esconder e observar. Queria ter notícias sobre a batalha, não sabia de nada desde que perdera Jacques. Aquela poderia ser sua chance de ao menos saber o que estava acontecendo.
O local apresentou-se logo à sua frente; uma macieira alta e com uma copa cheíssima, carregada de frutos. A garota subiu agilmente pelo tronco e posteriormente os galhos da árvore, um pouco atrapalhada por seu cajado. Era um lugar perfeito para ver sem ser visto, e também para fugir da tempestade, que não dava trégua. Na praça, Sara observou que o ajuntamento era feito por Libertários. Alguns vestiam capas azuis, mas a maioria estavam vestidos com branco. A garota só poderia imaginar qual era a função dos de branco. Eles pouco atuaram na batalha.
— Estamos perdendo. No leste, quase todas as nossas forças ja caíram perante os defensores da cidade. Isso pouco importa, mas reuni-os para fazer uma pergunta. Onde é que se enfiou o Silverhand? — Gritou um dos Libertários, para fazer-se ouvir através da tempestade que não dava trégua.
Ao ouvi-lo, os outros começaram a murmurar entre si, e, por fim, um outro falou:
— Aparentemente, ninguém o vê desde que chegamos à cidade. Deve ter fugido e se atirado no mar a fim de não precisar lutar. Sempre foi um covarde, aquele. — Alguns Libertários riram com o comentário do homem.
— Seja como for, precisamos do governador inteiro. Foi o chefe que ordenou. Não quero saber, procurem na cidade inteira, em cada beco, ruela ou porão que conseguirem até achar o patife. Se ele realmente se atirou no mar, se atirem vocês também e mergulhem até encontrá-lo. Não fazem idéia do que poderá nos acontecer se desobedecermos nosso líder. — Finalizou seu monólogo com uma expressão amedrontada.
— Estremeço toda vez que ouço falar nesse líder. — Comentou um outro. — Deve ser um tipo muito poderoso, pra ter gente como a Lianne e aquele feiticeiro ankramano sob seu comando.
Sara não entendeu o comentário.
Os Libertários não conheciam seu próprio líder?
Mas neste instante, uma outra figura adentrou a praça, sozinha. Mais um Libertário branco, mas Sara espantou-se ao ver que era uma garota, que deveria ser poucos anos mais velha do que ela. Ao prestar mais atenção, viu que ela de fato estava usando um vestido alvíssimo, e não uma capa. Em contraste, seus cabelos ondulados eram muito negros, e os lábios da mesma cor do sangue. Sara intrigou-se ao vê-la; a garota parecia-lhe estranhamente familiar, embora tivesse certeza de que não era uma habitante da cidade.
Curiosamente, todos os Libertários curvaram-se respeitosamente numa reverência ao vê-la, como se ela fosse uma espécie de líder.
— Senhora Lianne. — Saudou-a um dos homens, o mesmo que havia anteriormente feito o alarde sobre o governador. — Peço-lhe que...
— Sim, sim. — Cortou a garota, levantando a mão num gesto impaciente. — O Percy foi visto correndo pela cidade com sua guarda particular há apenas alguns momentos. Já já cuidaremos dele. Já esperamos tempo demais. Nossos vermelhos já estão quase todos mortos, e os azuis não são suficiente para tomarem a cidade. Isso era óbvio, mas está na hora. Além disso, vi um espectro flutuando pela cidade, assustando e matando homens. Não faço ideia de onde ele veio.
Os homens pareceram ter compreendido, pois assentiram sem mais perguntas. Imediatamente, todos se juntaram em um grande círculo, deixando Lianne no centro.
— Juntemo-nos, irmãos! — Entoou ela. Mesmo gritando, sua voz ainda era doce e melodiosa.— Que Urgith seja testemunha. Que ele nos veja e nos abençoe com sua graça e sabedoria. A dança da noite está prestes a começar! — Todos os homens que a circundavam assentiram e repetiram suas palavras.
Em seguida, deram as mãos e começaram a balbuciar palavras que Sara não pôde ouvir. Era uma prece arrastada e sinistra, quase um canto. No centro, Lianne falava mais alto do que todos. Após alguns minutos, eles terminaram e, sem mais palavras, cada um correu para um lado, e adentraram as ruas da cidade. Aturdida e sem entender nada, Sara esperou que todos saíssem para enfim descer de sua árvore, com câimbras pelo corpo de tanto ficar parada.
A garota começou a correr para o sul, a fim de chegar ao cais do porto. Esperava encontrar Jacques no caminho, pois ele dissera que haveria um navio que a levaria para longe da cidade. Seguiu por uma larga rua, ladeada por casas ainda milagrosamente intactas. À medida que ia se aproximando do porto, as moradias iam ficando mais e mais pobres; a pedra ia gradualmente sendo trocada pela madeira, e os casarões do norte da cidade foram por fim substituídos por diminutos casebres. O caminho estava abençoadamente deserto.
Não se via uma alma viva ali. Para onde foram todos os moradores? Não era possível que estivessem todos mortos, afinal, estavam ganhando a luta. A garota corria pelo que parecia ser uma cidade fantasma. No entanto, mais a frente, ela começou a distinguir uma estranha figura cinzenta parada no meio da estrada. A chuva e a falta de iluminação não a permitiam vê-la com clareza daquela distância, mas Sara apertou o passo, intrigada e cautelosa. Por via das dúvidas, manteve seu cajado preparado na mão direita.
A sombra parecia de fato ser uma figura humanóide, mas agia de forma estranhíssima. Contorcia os braços e as pernas em ângulos bizarros, por vezes caindo no chão e rolando pela estrada molhada. Quando isso acontecia, a figura olhava para cima e gemia para a noite, num som agoniante e triste, que causou arrepios em Sara. Em um momento, rastejou por alguns metros antes de se levantar novamente, cambaleando. Ao chegar mais perto, percebeu que era um camponês, provavelmente um trabalhador dos canaviais.
A garota teve medo ao vê-lo. Supôs que fosse algum aldeão louco que fora deixado para trás pelos outros moradores. Cautelosa, aproximou-se mais, e tentou chamar a atenção da figura, que berrava para a lua, de costas para ela.
— Ei, você aí? Quem é você? Consegue me entender? — O homem virou-se imediatamente ao chamado, e ao ver seu rosto, Sara sentiu um espasmo de medo percorrer seu corpo. Demonstrou seu horror pela figura com um grito agudo, e apontou seu cajado diretamente para o coração do homem, tensa.
Ele não possuía os dois olhos. Em seu lugar, via-se apenas uma massa sangrenta e úmida, que escorria por seu rosto. Sua mandíbula inferior também estava desfigurada e pendia molemente, presa à seu rosto por apenas alguns centímetros de músculo e pele. Por todo o resto do corpo, o homem apresentava hematomas e profundos cortes que sangravam sem parar. Como alguém assim poderia ainda estar vivo?
O horroroso aldeão ainda tentou pronunciar algumas palavras, esquecendo-se que não tinha mais língua, ou mesmo uma boca discernível. O resultado foram alguns horrendos gemidos. Em seguida, ele começou a avançar em direção à garota, estendendo uma das mãos a frente. Andava vacilando, e suas pernas bambeavam como se não suportassem seu próprio peso. Amedrontada, Sara não pensou duas vezes, e disparou uma raja de gelo de seu cajado druídico em direção ao homem. Ela nunca havia de fato matado uma pessoa, mas sequer sabia se aquele homem ainda era o que se podia chamar de humano.
Atingiu-o em cheio, e ele desabou no chão novamente. No entanto, sua magia pareceu surtir pouco efeito, pois o homem disforme já tentava se levantar novamente. Desesperada, ela tentou pensar no que fazer. Naquele momento de tensão, todos os ensinamentos e a sabedoria druídica que aprendera desde que escolhera se tornar uma mestra nas magias da natureza pareciam ter se esvaído de sua mente. Começou a andar de costas para trás, tentando lembrar-se de algum modo de conter o homem. Por fim, lembrou-se.
— Exori Tera. — Imediatamente, das palmas de suas mãos brotavam galhos e vinhas de árvores retorcidas, que viajaram imediatamente de encontro ao pavoroso ser. Rapidamente, prenderam-se firmemente em volta de seu corpo, contendo-o. Mesmo assim, ele ainda se contorcia e berrava, lamurioso. Parecia até mesmo um...
—
Morto vivo, garotinha. Mais precisamente, um zumbi. No entanto, nota-se que o necromante que o criou não era lá muito habilidoso. Ele apresenta alguns defeitos. A propósito, você talvez queira ver a situação de sua cidade neste momento.
Desconfiada, a garota não deu ouvidos aos pensamentos da criatura em sua mente.
—
Por que eu devo confiar em você? Você mata homens sem hesitar, aparentemente sem motivo algum exceto seu próprio divertimento. Quem é você afinal? Por que está aqui? E por que quer me ajudar?
—
Por que não te ajudaria? Sou criação sua, esqueceu? Devo obediência à minha criadora, que de tão boa vontade me trouxe à este mundo.. — Gargalhou. —
Quanto às suas outras perguntas, responderei-as em um momento mais oportuno.
A garota ainda permanecia cética e enojada pela presença do espectro em sua mente. Notando isso, ele acrescentou:
—
Ainda não acredita em mim. Pois bem, deixe-me lhe dar um vislumbre das coisas, da forma que eu as vejo...
Subitamente, Sara foi arrancada de seu próprio corpo, que caiu molemente no chão, como uma casca vazia. Estava agora no alto da cidade, flutuando. Entendeu, estava vendo as coisas pelos olhos do espectro. Ao olhar para a cidade, viu um absoluto pandemônio. Homens corriam para todos os lados, e outros homens... Outros homens capengavam pelas ruas, gemendo. Mortos vivos. Tudo estava claro em sua mente. Os Libertários brancos eram, afinal, necromantes, todos eles. Os de vermelho eram meras peças dispensáveis, trazidas apenas para aquele momento. Homens de ambos os lados estavam agora reerguidos dos mortos, prontos para violar e tomar a cidade às ordens de seus mestres.
Sara sentiu-se horrorizada com o que via. Como poderia um grupo utilizar-se de um modo tão vil de magia? Aquilo ia contra tudo que a garota sabia, tudo que aprendera como druida. Necromantes eram maldosos, criações do próprio Zathroth. Por isso a necromancia era proibida em quase todos os lugares. Os Libertários eram, enfim, um grupo muito mais perigoso e complexo que do ela poderia ter imaginado. Que outras táticas repugnantes e poderes demoníacos poderiam ter?
No entanto, ao ver aqueles homens correndo, berrando e sendo retalhados pelos zumbis, ela sentiu uma enorme vontade de rir. Eram todos tão patéticos. Tudo aquilo era apenas uma gigantesca brincadeira. Divertia-se vendo pessoas sendo dilaceradas sem piedade por aqueles que anteriormente haviam sido seus companheiros. Não aguentando, a garota abriu a boca numa gargalhada, mas a voz que ouviu não foi a sua, e sim a do espectro. Aguda, fria e sobrenatural.
O som despertou Sara, que voltou ao seu próprio corpo, horrorizada. Por um momento, viu-se na mente do espectro, viu-se
deliciando-se com o sofrimento daquelas pessoas. Sentiu-se mal consigo mesma, mesmo sabendo que não era de fato ela quem havia pensado aquelas coisas. Estava cercada por pessoas e seres que jamais imaginara existir, cujas idéias e objetivos eram tão horrorosos e repugnantes que a garota sentia vontade de vomitar. Como um mundo que há um dia trás era belo hoje poderia ter se tornado palco para que pessoas assim apresentassem suas atrocidades?
Perdida em seus devaneios, ela não percebeu quando alguém tocou seu ombro por trás. Imediatamente, virou-se, esperando encontrar algum Libertário, outro zumbi ou sabe-se lá o que. Mas quem estava ali era Jacques, o mordomo. Apresentava alguns arranhões pelo corpo e parecia cansado, mas de outra forma, inteiro. Sentiu-se imensamente aliviada ao vê-lo. Pelo menos, nele poderia confiar com certeza. Na ausência de seu pai, ele era seu mentor. Uma ilha de clareza em meio àquele mar de insanidades. Abraço-o rapidamente.
— Ahn... Acalme-se, senhorita. Fiquei terrivelmente preocupado. Por onde andou? Bom, agora não há tempo. Temos que ir imediatamente ao porto.
Sara não encontrou palavras. Ainda estava abalada depois de tudo. Começaram a correr novamente em direção ao sul. Com Jacques a seu lado, nada poderia machucá-la. Enquanto corriam, a garota por fim encontrou sua voz.
— Jacques... Aonde estava? Aconteceram tantas coisas... Você não vai acreditar, eu...
Mas descobriu que não conseguia falar nada. Narrar o que passara para o mordomo seria como reviver tudo de novo.
— Não se preocupe, senhorita. Teremos tempo quando chegarmos ao navio. Sou um tolo irresponsável, e estou extremamente envergonhado por tê-la deixado que sumisse de minhas vistas.
Correram por mais centenas de metros, desimpedidos. A salvação encontrava-se a frente, e a loucura parecia estar abençoadamente ficando para trás.