:O Valeu mesmo, Joxkyz!
Capítulo V - Lua Negra
— Exura Sio! — Exclamou Sara, apontando diretamente para o feio corte que Jacques apresentava no antebraço. Uma pequena lembrança da recente luta que tiveram nas ruas de Liberty Bay. O ferimento começou a se remexer, como se estivesse sendo forçado a uma cicatrização acelerada. No entanto, o processo parou na metade, e Jacques foi deixado com uma feia cicatriz, ainda meio aberta em uma das extremidades.
— Algum problema, senhorita? — Indagou ele, ao ver que a magia não havia sido completada. — Talvez esteja cansada, e não esteja em condições de realizar atos mágicos. Lamento senhorita, não deveria ter pedido que curasse o ferimento. — O mordomo imediatamente assumiu uma expressão de culpa.
Sara estendeu a palma da outra mão para o nada, e pronunciou:
— Exori Tera.
Absurdamente, de sua mãos brotaram algumas vinhas e galhos de plantas, que retorceram-se por alguns instantes entre si e depois desapareceram, sem deixar vestígios. Aquela era a natureza das magias druídicas. Sara suspirou, e respondeu:
— Essas magias de conjuração estão funcionando perfeitamente. Algo parece estar especificamente interferindo no processo das magias de cura.
— Lamento incomodá-la, senhorita. Deixarei-a sozinha para que possa descansar. — E imediatamente o mordomo virou as costas para ela e saiu de seu quarto.
Sara olhou para as grandes janelas de vidro de seu quarto, que estavam fechadas devido a uma brisa gelada que corria lá fora. Enfeitando o céu cinzento e nublado, encontrava-se uma lua cheia, anormalmente avermelhada. Nos breves momentos em que as nuvens rareavam e à deixavam a mostra, Sara percebia o brilho escarlate que emanava do satélite.
Um arrepio correu por sua nuca ao observá-la. Aquilo não era normal. Parecia um presságio de tempos ruins, como se a lua esperasse contemplar um massacre, e mudara seu brilho para combinar com a cor do sangue. E agora ainda havia essa força interferindo em suas magias de cura, e a iminência de um ataque a Liberty Bay. Decididamente, os tempos não eram dos melhores.
Ela já havia feito o máximo que podia, que era avisar o maior número de pessoas que encontrasse. A cidade precisava ser mobilizada, ou os Libertários a encontrariam de portas abertas e completamente vulnerável. Mas, naturalmente, ninguém acreditou numa “garotinha”, cuja única prova do que falava eram seus próprios sonhos. Nem mesmo Jacques. Tudo aquilo a inquietava profundamente. Os Libertários poderiam muito bem estar as portas da cidade agora, e ninguém sabia de nada, a não ser ela.
Eu, e aquele ser.
Agora, já estava quase desejando que a entidade em sua cabeça realmente cumprisse a palavra e se libertasse. Quem sabe então as pessoas acreditariam. Mas estava com medo do que poderia ver quando ele de fato se apresentasse no mundo real. Não tinha ideia de sua aparência ou de sua origem, muito menos de suas intenções.
Perdida em seus devaneios, Sara acabou por se deitar na cama e adormeceu em breve, daquela vez esquecendo-se de resistir ao sono. Daquela vez, milagrosamente não sonhou com nada. No entanto, o que prometia ser um sono agradável e reparador para ela acabou por ser interrompido poucas horas depois.
Ela despertou com um sobressalto, ouvindo muitos gritos nas ruas. Seu quarto estava sombrio e gelado, e ainda era noite cerrada. No céu, a lua havia sido completamente obscurecida pelas pesadas nuvens cinzentas, que agora ameaçavam derramarem-se sobre a cidade numa tempestade memorável. Os relâmpagos, arautos da tempestade, já caíam aos montes.
A garota correu até as janelas, a fim de observar a origem do barulho. Não conseguiu discernir muito com a pouca luminosidade, mas os gritos agora eram mais altos do que nunca. Conseguia ver vultos em pânico correndo pelas ruas, para todos os lados, como formigas desnorteadas. De súbito, alguém abriu com violência a porta de seu quarto, e, por trás de si, ela ouviu a voz apavorada de Jacques:
— Senhorita, devemos partir imediatamente. Aqui já não é mais seguro. — Seu tom de voz deixava claro que as coisas estavam terrivelmente erradas lá fora.
— O que foi, qual é o problema? — Embora já soubesse a resposta. Eles haviam chegado, quer os habitantes da cidade acreditassem ou não. E agora estavam todos desprotegidos. Ela apenas rezava que a guarda militar de Liberty Bay já estivesse se mobilizando para defender a cidade. De qualquer forma, estariam em grande desvantagem.
— Navios, com velas vermelhas. Estão neste momento aportando na costa leste de Vandura. Aparentemente vieram de Darama, embora eu não faça ideia de quem sejam. Não é nenhum aliado do reinado de Thais, disso tenho certeza.
— Eles... Eles são quantos?
Ao ouvir a pergunta, Jacques fez uma expressão de absoluto medo.
— Senhorita, não são muitos, veja bem. São menos numerosos do que os soldados da cidade, mas eles tem... Céus! Por que estou perdendo tempo aqui? Vim busca-la. Liberty Bay já não é mais segura.
— E vou para onde?
— Para Thais. É a cidade mais próxima e a mais segura neste momento. Já temos um navio providenciado, onde irão também várias outras pessoas importantes. Não vai querer estar aqui caso a cidade caia, senhorita. — Sara não fez mais perguntas, entendia a gravidade e urgência da situação. Sem mais delongas, foi até seu baú, de onde retirou seu cajado. Jamais viajaria sem ele.
Jacques a puxou pela mão e ambos correram até o hall de entrada. Ao abrirem a porta da frente, o ar gelado encheu o interior da casa, causando-lhes arrepios. Sem hesitar, trancaram a porta e correram para a noite. Sara deu uma última olhada para sua enorme casa, e sentiu um aperto no coração. Estaria deixando-a, e deixando Liberty Bay, sabe-se lá por quanto tempo. Talvez jamais voltasse a vê-las.
Os ruídos noturnos ficaram ainda mais altos. Misturados aos gritos e aos trovões, ouviam-se também estrondos ensurdecedores de explosões e de fogo. Em vários lugares, casas ardiam em chamas. A parte leste da cidade era aonde o tumulto era maior. Soldados de Liberty Bay, vestidos em armaduras completas, lutavam contra os invasores Libertários.
Estes não possuíam nenhum uniforme definido, vestiam-se da forma que desejassem. A única forma de identifica-los era pelas capas vivamente coloridas que utilizavam por cima das outras roupas. A grande maioria era vermelha, mas alguns usavam capas azuis, e raramente via-se algumas brancas.
Era um grupo curioso, aquele. Invadiam uma cidade sem sequer estarem vestidos de armaduras, ou possuírem qualquer plano tático aparente, ou mesmo um comandante de batalha. Pareciam um tanto indisciplinados e inconsequentes, até mesmo no manejo de suas armas. No geral, não eram tão diferentes dos dois encapuzados que haviam encontrado anteriormente.
A balança da luta parecia estar pendendo para o lado de Liberty Bay. Haviam alguns magos entre eles, mas pareciam muito poucos para fazerem a diferença. Sara não entendeu porque Jacques parecia ter tanto medo deles.
Enquanto seguiam por uma grande rua central, em direção ao porto do Sul, ela deu voz as suas dúvidas:
— Parece que estamos ganhando, pelo que vejo da luta no leste. O que é tão terrível nesse grupo de invasores?
— São meros peões, senhora. Se tivesse visto o que eu vi, não pensaria assim. Creio que... Creio que eles
não se importem que seus próprios homens sejam mortos, assim como os de Liberty Bay. São meras peças dispensáveis, por trás da sua real força de batalha. Se realmente estiverem planejando o que penso... Não. Seria vergonhoso e maligno demais.
Curiosíssima, Sara quis saber o que havia de tão tenebroso, mas antes que pudesse novamente dar voz as suas dúvidas, foi interrompida por um barulho ensurdecedor. A batalha havia chegado à rua central onde estavam. Uma das casas que a ladeavam explodiu num show de estrondos e fogo sensacional, e seus destroços de pedra se espalharam por toda a rua. Soldados de ambos os lados começaram a fluir para a estrada, e o barulho de aço batendo em aço pode ser ouvido em todo lugar. Subitamente, e sem querer, estavam no meio da batalha.
— Fique próxima a mim, senhorita! — Berrou Jacques, a fim de ser ouvido por sobre a algazarra.
Agarrando a mão de Sara, ele começou a puxá-la para uma rua lateral deserta, a fim de escaparem da luta. Parecia que seriam bem sucedidos, mas então, ela o viu. Alguns metros a frente dela, no meio de outros soldados que lutavam entre si, um dos Libertários de capa azul. O homem olhava fixamente para ela, e quando Sara retribuiu seu olhar, ele ergueu a palma da mão em sua direção, pronunciando algumas palavras que ela não pode ouvir.
Só o que se lembrou de ter visto em seguida foi uma luz de cegar os olhos, e o calor... Por puro reflexo, ela abaixou-se, e as chamas passaram por sobre sua cabeça, chamuscando a ponta de seus cabelos. A bola de fogo errante encontrou alguma construção atrás dela, e ela ouviu um estrondo quando outra casa veio abaixo, sucumbindo perante a força da magia. Imediatamente percebeu que Jacques já não segurava sua mão.
Desesperada, procurou por ele, mas não conseguiu encontra-lo no meio da confusão. No entanto, percebia o homem de capa azul, que ainda parecia ter ela como alvo. Ergueu a palma da mão a fim de preparar outra bola de fogo, mas Sara correu na direção contrária, e entrou por uma ruela lateral, abençoadamente deserta. Continuou correndo por ruas e mais ruas, cada vez mais para longe da confusão. Estava apavorada.
Por favor, que ele não esteja atrás de mim...
Parou por alguns instantes, para retomar o folego. Foi o suficiente para o homem de capa azul reencontrá-la. Sara não entendia porque ele ainda a perseguia. Que diferença ela poderia fazer na batalha? Voltou a correr com todas as forças que tinha, sem olhar para trás. Por fim, sua corrida chegou ao fim quando percebeu que havia entrado por um beco sem saída. Desesperada, tentou escalar o muro de pedra que impedia sua passagem a fim de continuar fugindo, mas escorregou no meio do caminho e estatelou-se no chão, dolorosamente.
Aterrorizada e a beira das lágrimas, Sara olhou para o fim da rua, onde o homem apareceu novamente. Numa tentativa desesperada, ela apontou seu cajado para ele, e de sua ponta saiu uma rajada de gelo que correu velozmente em sua direção. O homem limitou-se a rir de sua fraca demonstração mágica.
— Utamo Vita. — Entoou ele. Em seguida, sua rajada de gelo encontrou o alvo, mas não produziu efeito algum. Pareceu ser absorvida por alguma espécie de campo de força que o homem colocara em volta de si próprio. Ele voltou a erguer a palma da mão. Daquela vez, estavam muito próximos. Não erraria o alvo.
Naquele breve momento, Sara percebeu que seria o seu fim. Da mão do homem, surgiu a característica luz de cegar os olhos, e a garota observou, impotente, enquanto a bola de fogo atravessava o ar e vinha diretamente em sua direção.
Um segundo depois, um sol brilhante e extremamente quente a atingiu em cheio. As chamas a engoliram, e a dor que ela sentiu naquele momento foi indescritível. Não suportando, Sara gritou para a noite, num clamor inumano, de gelar os ossos, enquanto seu corpo era consumido pelo fogo.
—
Você é idiota?
Em seus instantes finais de vida, sua mente foi novamente invadida por aquela presença misteriosa e indefinida.
—
Cure-se, garota estúpida! Seria péssimo para mim se você morresse agora. Parece que já é hora de interceder...
Naquele instante, Sara atreveu-se a ter esperanças. No entanto, se sua magia ainda estivesse sendo bloqueada...
— Exura Vita! —Exclamou, com todas as forças que tinha.
O alívio que sentiu em seguida estava além de qualquer descrição. Foi a melhor sensação que alguma vez sentira na vida. Sentiu que estava mergulhando em água gelada, e as queimaduras de seu corpo estavam curando-se milagrosamente. Enfim, sua magia voltara, embora sequer entendesse porque ela havia sido bloqueada anteriormente.
Mas antes que pudesse alegrar-se por afinal estar viva, a presença em sua mente começou a debater-se terrivelmente, como se estivesse dando marteladas no próprio crânio de Sara. Sentiu-se desorientada, e a cabeça latejava horrivelmente. Em seguida, a sensação espalhou-se pelo resto do corpo. Era como se ganchos a estivessem puxando de todas as direções.
Então, alguma coisa... Pareceu sair de dentro de sua cabeça, e apresentou-se ao mundo. Viva, enfim livre de sua prisão.
A entidade parecia incorpórea, quase transparente, mesmo agora que se encontrava no mundo físico. Era mais uma figura abstrata e colorida do que um corpo propriamente dito. Suas “mãos” eram roxas, e quase do tamanho do resto do corpo. O próprio corpo da criatura parecia um emaranhado de fios verdes que entrelaçavam-se entre si, culminando na cabeça, da mesma cor das mãos. Não possuía pernas, ao invés disso, flutuava alguns metros acima do chão. Mas o pior eram os olhos. Eram de um azul muito vivo, e pareciam estar sempre vidrados, como se vissem coisas que outros olhos não pudessem ver.
O homem de capa azul observava tudo aquilo, abobado. Aparentemente ele também podia ver a entidade que se originara de Sara, pois olhava fixamente para ela, com os olhos esbugalhados. Sem avisos, a criatura voou na direção dele, e soltou um grito extremamente agudo. O homem assustou-se terrivelmente, mas logo recompôs-se e apontou sua mão para a criatura, pronto para lançar sua costumeira bola de fogo.
— Tsc tsc, hoje não. — Disse a criatura. Sua voz era a mesma que Sara ouvira em sua mente, aguda e zombeteira. Imediatamente, ele agarrou o homem com suas enormes mãos, e subiu com ele para os céus. O homem gritava e debatia-se, impotente. Quando já estavam a pelo menos uns duzentos metros de altura, tornaram-se apenas um ponto indistinto no céu noturno. Mesmo a essa distância, a criatura fantasmagórica gritou, e seu grito pôde ser ouvido por toda a extensão de Liberty Bay.
— Eia, soldados de Liberty Bay! Libertários! Por que estão tão parados? Quero ver o caos. Não vim a este mundo para ver uma batalha tão entediante. — Em seguida, gargalhou, e continuou. — Quem sabe isto não os anime!
E o que fez em seguida, Sara não esqueceria tão cedo. Daquela altura, jogou o homem de capa azul, como se ele fosse um saco de trapos. O homem caiu velozmente, berrando e debatendo-se no ar. Toda a cidade parecia ter parado para ver o espetáculo. Sara preparou-se para o que viria a seguir, mas mesmo assim chocou-se com o som que o homem fez quando encontrou o chão. Não pode vê-lo, mas a julgar pelo barulho, havia se espatifado como uma gelatina.
— Que esta luta comece de verdade, para o bem ou para o mal. — Terminou gargalhando novamente.