A primeira coisa que Ralf sentiu quando acordou foi náusea. Sua boca estava seca e sua cabeça lateja fortemente. O jovem ia pedir para Arthur trazer um pouco d’água, quando percebeu que não podia abrir a boca, sua mandíbula estava travada, amarrada, com um tipo de corda viscosa. Desesperado, Greenwood tentou usar as mãos para tirar o material nojento dali, mas suas mãos estavam atadas junto ao corpo.
Debatendo-se freneticamente, o rapaz rolou pelo que ele supôs ser o chão da floresta. Pelo menos ele conseguia ouvir algo. As folhas grudavam nas estranhas cordas viscosas e dificultavam a respiração do jovem. Ralf tentou gritar, mas sua voz saiu abafada, como se estivesse a centenas de metros de distância.
Subitamente, ouviu um barulho. Parecia um chiar baixo, acima de onde estava. Lentamente, ele levantou um pouco a cabeça, dificultado pelos fios que amarravam por todo o corpo. Uma grande aranha descia por uma fina teia da árvore mais próxima. Espiava Greenwood com seus oito olhos bulbosos. Suas patas se moviam rapidamente e do seu corpo desprendia um cheiro enjoativo.
A aranha tocou no solo numa lentidão terrível. Parecia se deleitar com o desespero de Ralf, que começou a tentar se desvencilhar com mais intensidade. Gritava e tentava mover os braços, para poder se defender, ou até mesmo correr. Mas os gritos saiam abafados e seus braços permaneceram imóveis, muito bem atados pelas teias viscosas.
Chiando, como se estive rindo do esforço inútil do rapaz, a aranha se aproximou mais. Seus olhos negros se fixaram no rapaz, e dois ferrões pegajosos saiam do baixo ventre da criatura. As armas eram finas, cruéis. Pingavam uma substância verde que Ralf tinha certeza que era veneno. O jovem parou, imóvel, aceitando a sua má fortuna. Seus pensamentos se dirigiram para sua vida anterior, tão pacata que parecia um sonho. Lágrimas brotaram dos seus olhos.
- Sssim, carrne fressca – chiou a aranha num thaisense lamentável – Nós gostarrr de carrne fresssca – depois do grande discurso, começou a soltar um barulho riscado que ecoou no espaço, como um riso medonho. Para surpresa desagradável do contador de histórias, o barulho foi respondido, em diferentes tonalidades e ritmos.
Horrorizado, Ralf percebeu que estava no centro de uma colônia, e das árvores em volta as aranhas desciam, chiando e rindo. Suas teias pegajosas cobriam o local de forma nojenta e vários ovos estavam agrupados num canto, perto da maior árvore, que ficava no centro da clareira, afastada das outras.
O dia já tinha raiado, e a claridade dos sóis iluminava o triste espetáculo. Da árvore central vinham aranhas maiores, enquanto da orla da colônia surgiam todo tipo de aranha imaginável. Aos pés da grande árvore, perto dos ovos, diversos ossos mostravam o que acontecia com forasteiros e o provável destino do rapaz.
De repente, a voz do oráculo veio a sua mente. “Quando todas as armas se mostrarem ineficazes, utilize a sua maior”. Mas qual era sua maior? Não tinha tempo para pensar, as aranhas estavam se aproximando, com suas múltiplas patas. O cheiro nauseante se intensificou e Ralf sentiu um líquido frio escorrer por seu pescoço. Uma grande aranha, gorda e fedida, estava a poucos centímetros acima de sua cabeça e babava uma gosma verde. Greenwood se encolheu e esperou pelo pior.
Mas o pior não veio. Um forte cheiro de queimado preencheu a colônia. Ralf abriu os olhos. As aranhas chiaram e se agitaram, confusas. A aranha gorda tinha caído, com suas pernas pateticamente viradas para cima. Seu corpo estava queimado e fedia como nunca. E, da orla da clareira, um outro projétil de fogo acertou a primeira aranha, a que falara, em cheio, entre os olhos bulbosos.
A aranha caiu, morta, enquanto suas irmãs corriam furiosas em direção de onde o projétil tinha partido. Estavam quase chegando na borda da colônia, quando Helidan apareceu. Estava paramentado para batalha e seu rosto sempre sorumbático se agitava numa ferocidade surpreendente. Sua barba balançava, conforme ele agitava a pesada maça de espinhos de ferro. Seu escudo estava descoberto aos sóis, refletindo luzes terríveis aos olhos aracnídeos e ele cantava em sua estranha língua enquanto matava.
Era primeira vez que Ralf via Helidan lutar, e ficou maravilhado com a habilidade do anão. O guerreiro simplesmente varria as aranhas com sua poderosa maça. Logo o solo da colônia tornou-se coalhado de corpos das criaturas. Helidan acertava as aranhas numa velocidade espantosa, como se sua maça fosse mais leve que uma pluma. O que não era verdade, já que nenhuma pluma abriria os animais do jeito que a arma do anão fazia. O sangue viscoso respingava pelo escudo do guerreiro.
As aranhas estavam furiosas e atacavam loucamente Helidan, que girava a maça, absoluto. Sua malha aparava qualquer eventual picada que seu escudo não defendia. Mas sua maça não era sua única arma. As pesadas botas de couro esmagavam as aranhas, assim como a bossa de ferro do seu escudo. Uma ou duas vezes, o anão até mesmo cabeceou um animal mais ousado que se aproximara muito com seu capacete.
Logo, restavam poucos aracnídeos na colônia. As poucas aranhas que não estavam mortas subiram nas árvores e fugiram da clareira. O cheiro nauseabundo diminuiu um pouco e agora a clareira não parecia tão amedrontadora assim. Ralf se mexeu, atraindo a atenção de Helidan e de Arthur, que tinha ficado na orla da floresta. Ele que tinha jogado as pedras de fogo nos primeiros animais.
O escudo e a malha de Helidan estavam cobertos da substância verde e pegajosa das aranhas. “As vezes usar uma maça pode te deixar meio sujo” pensou o rapaz, enquanto os dois salvadores se aproximavam. Não sabia porque estava pensando nisso. Começou a rir, num misto de alívio e desespero. Seus olhos estavam marejados de lágrimas, não sabia se de felicidade ou do terror anterior.
Arthur cortou as teias que prendiam Ralf com sua espada e ajudou o jovem a se levantar. Logo depois, Greenwood sentiu uma tontura e uma náusea se abateu sobre ele. Vomitou, caindo no chão, tremendo. O velho amparou o rapaz e foram capengando para fora da colônia. O ar se tornou mais respirável assim que saíram do lugar. O contador de histórias se sentiu melhor.
Sentou-se, com as pernas ainda bambas, num tronco meio apodrecido. Respirava rápido, enchendo seus pulmões de ar novo, ar puro. Estava mal, apesar de estar bem melhor do que dentro da clareira. Evidentemente os efeitos colaterais do veneno ainda debilitavam o jovem, mas só de ser salvo, sentia-se mais saudável.
- Ralf? Ralf? Como está? Consegue falar? – perguntou Arthur, preocupado. O velho se abaixou para ficar no nível da cabeça de Greenwood. O rapaz nunca tinha reparado que Arthur era realmente alto, apesar de ser um pouco curvado. As vestes vermelhas do mago pareciam perfeitamente adequadas ao marrom outonal da floresta.
- Sim – sussurrou o jovem, com a voz fraca. Sua garganta estava doendo horrores, assim como seu estômago. Sua cabeça latejava e seus olhos ardiam. Uma enorme vontade de beber algo tomou conta do seu ser. Arfou e gesticulou para seu companheiro. – Água, água, por favor!
Arthur prontamente pegou um odre de couro e, tirando a tampa, virou um pouco do conteúdo na boca de Ralf. Este agradeceu aos céus, silenciosamente, quando a primeira gota do líquido passou pela garganta ressecada. A dor diminuiu um pouco. Só depois de uns segundos bebendo, o contador de histórias percebeu que não estava bebendo água. O líquido que caía em sua boca tinha um gosto doce e agradável.
Olhou surpreso para o companheiro, que parou de verter a substância e tampou cuidadosamente o odre. Arthur olhou para Ralf ansioso, como esperando que o homem tivesse espasmos súbitos ou se transformasse em um temível dragão num piscar de olhos. Greenwood, sentindo-se melhor subitamente, se levantou.
- Está tudo bem com você? – perguntou o velho, ainda encarando o outro de forma atenta. Sua barba branca estava um pouco suja de terra, assim como várias partes das vestes. Estava com olheiras profundas e rugas marcavam seu rosto.
- Sim, estou me sentido muito melhor – respondeu o rapaz, com um que de surpresa. As dores no corpo tinham passado, assim como a sede. E, embora seu estômago estivesse roncando de fome, sentia-se pronto para andar quilômetros e mais quilômetros floresta adentro. E, além da fome, sua curiosidade se aguçara – o que você me deu para beber?
- Água – respondeu vagamente Arthur, sacudindo a cabeça um pouco. Ralf encarou o amigo com um olhar cético. O velho balançou a cabeça, como sugerindo que não explicaria o mistério do líquido. Greenwood levantou a sobrancelha e cruzou os braços. Arthur então fez um gesto resignado e falou – Não menti para você, Ralf, é realmente água. Mas é uma água especial, feita pelos elfos.
-Elfos? – inquiriu o jovem, ansioso por mais informações. Assim como nunca tinha visto um anão antes, jamais vira um elfo. Sabia que eles eram uma raça misteriosa, com estranhos hábitos e poucas histórias retratavam os feitos deles. Viviam nas florestas, nas árvores, já que amavam Crunor e toda sua obra. Tinham habilidades com cordas, seja de instrumentos musicais como o alaúde como as cordas dos seus arcos certeiros.
-Sim, elfos. E sim, eles bebem um tipo diferente de água. E sim, eu já me encontrei com um. E sim, existem elfos nesta ilha. E sim, vamos visitá-los agora. – disse rapidamente o velho, antevendo as perguntas que fatalmente viriam. Quando disse as duas últimas frases, Ralf soltou uma exclamação de assombro. Nunca imaginaria que veria elfos em Rookgaard. Mas também nunca tinha pensado seriamente em participar de qualquer aventura.
Greenwood ia perguntar mais sobre as estranhas criaturas quando os dois ouviram um resmungo, vindo da clareira. Helidan estava de volta, com a pesada maça apoiada no ombro direito e o escudo pendendo no braço esquerdo. Seu rosto parecia calmo e, estranhamente para Ralf, feliz. Sorria pela primeira vez desde que encontrara o contador de histórias, num anoitecer enevoado.
- Não acho que as aranhas vão incomodar mais. Estava quebrando aqueles ovos nojentos. – disse numa voz alegre. Depois riu, mostrando os dentes brancos por trás do bigode cerrado. Seu riso ecoou pela floresta. O local, depois da bebida e agora ecoando o riso do anão, parecia muito menos terrível e ameaçador. O silêncio já não era o mesmo. Inúmeros pássaros e outras criaturas faziam um barulho agradável.
- Estranho, ontem não vimos viva alma. E hoje a floresta parece transbordar vida. – falou Ralf olhando para um grande melro que parecia estar realmente alvoroçado. Ia de galho em galho, perto do grupo, e olhava para o rapaz com seus olhos pretos, enquanto piava estridente. Greenwood olhou atentamente para a ave e falou para os dois companheiros, com os olhos ainda fixos no melro – Parece que este pássaro quer nos contar algo.
- Devem estar felizes com a destruição da colônia das aranhas, só isso. – falou Arthur, prestando atenção nas outras aves. Ao ouvir isso, o melro se aproximou mais e piou estridente. Bateu asas e pousou no gramado perto dos três, piando. Era incrível o volume do barulho, vindo de criatura tão pequena. O velho continuava a olhar para os outros animais, como que procurando algo – Que lástima. Se houvesse aqui uma coruja ou uma águia, até mesmo um corvo, eu poderia entender o que este melro está tentando nos contar. Mas ele fala muito rápido e sua língua é muito diferente para que eu possa compreender algo.
O melro parou de piar e espiou Ralf mais um pouco, saltitando na grama. Aparentemente desistiu de tentar passar a mensagem e voou para a algazarra dos seus companheiros. Os três ficaram olhando para as aves por mais um tempo, e depois decidiram fazer seu desjejum ali mesmo, para a alegria do faminto contador de histórias.
- Então, me contem tudo o que aconteceu ontem a noite – perguntou Ralf, enquanto comiam. Não haviam feito fogueira, nem havia necessidade disso, já que comeram pão e frutas somente. Conseguiram encontrar um pé de amora e complementaram a refeição com várias destas frutinhas.
Helidan e Arthur se entreolharam de forma suspeita, como que com medo de tocar no assunto. Por fim o velho deu os ombros e decidiu contar.
- Você ficou duas noites e um dia sumido, Ralf.
Ralf estremeceu, incrédulo. Duas noites?? Esse tempo todo?
- Po... porque elas não me mataram antes? - perguntou, amedrontado e inseguro
- Não sabemos, talvez fosse necessário te transportar até aqui por alguma razão específica, como estar pertos dos ovos, mas talvez haja uma razão que só essas criaturas conheçam, ou ao menos quem muito sabe de seus hábitos. Quando eu acordei, vi que você tinha sumido. Imediatamente partimos em sua procura. Vimos restos de teias na orla da clareira, indo em direção a leste. Seguimos as malditas teias até o crepúsculo, quando fomos abordados pelos elfos – nesse ponto Helidan soltou um bufo e revirou os olhos, resmungando.
- Eles nos disseram que havia uma colônia de aranhas perto e nos mostraram o caminho, além de nos darem o odre de água e nos fazerem prometer que iríamos voltar para falar com eles.
- Mas não nos ofereceram arcos e elfos para matar as aranhas – rosnou o anão.
- Já te expliquei, caro amigo. Eles amam a floresta, assim como todas as crias de Crunor. As aranhas foram criadas por ele, presentes para Nornur, deus dos ventos. Matá-las seria ir contra seus supostos irmãos, já que os elfos mesmo veneram Crunor como pai. Bem, continuando. Chegamos na orla quando os dois irmãos estavam despontando no horizonte. E foi bem na hora. Consegui acertar algumas aranhas com minhas pedras de fogo e Helidan cuidou do resto. – continuou Arthur. Ralf estremeceu, ao se lembrar do líquido gosmento escorrendo por seus ombros.
Helidan fez um sinal de positivo, confirmando a história do velho. Depois pegou um pano e começou a limpar o resíduo dos aracnídeos da poderosa maça. Um espinho ou outro tinha entortado um pouco. Mas nada que comprometesse a eficácia do instrumento, já que a principal ameaça era o peso esmagador da bola de ferro. O anão, percebendo que o jovem prestava atenção em seus movimentos, levantou-se.
- Um dia, não poderá contar comigo, garoto, então vai ter que sujar as mãos - disse, sério, enquanto, balançava a maça e ajeitava o escudo no braço esquerdo – Vamos, arme-se.
Então Helidan, num grande salto, chegou perto de Ralf, e fingiu um ataque com a massa. O rapaz, desesperado, desviou por instinto e caiu nas folhas mortas do solo. O anão se afastou um pouco, deixando Greenwood pegar seu escudo oblongo e um pedaço de pau. Vendo a arma patética do jovem, o guerreiro jogou sua maça no chão e pegou ele também um pedaço de pau.
Ralf correu para o anão, e atacou com a madeira, visando acertar o espaço entre a malha e o capacete. Helidan simplesmente ergueu o escudo, aparou o golpe e acertou o adversário nas costelas com seu pedaço de pau. O rapaz então desceu o pau quase acertando o capacete do outro. Mais uma vez, Helidan se esquivou e, agora com um chute bem aplicado na bunda de Greenwood, fez o adversário cair pela segunda vez nas folhas mortas.
Arthur sentou-se no chão e pegou seu cachimbo. Olhou interessado para a luta e riu quando Ralf caiu pela quarta vez no chão. Bocejou e olhou para a floresta, que resplandecia nas cores de final de outono. Os pássaros ainda faziam um barulho dos infernos e os sóis estavam altos, embora não passasse das dez horas da manhã. Voltou sua atenção, então para os dois lutadores. Helidan estava corrigindo o posicionamento do escudo de Ralf. Ia ser um longo dia.