LIVRO UM
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Capítulo Um
O Céu Está Caindo
A NEVASCA ERA INTENSA NAQUELA MEIA-NOITE. O branco que despencava dos céus pintava a paisagem fantasmagoricamente, transformando a cidade num palco de assombrações. Poucos vultos transitavam pelas vias cobertas de gelo naquela noite. A grande maioria eram mercadores ou andarilhos de passagem pela cidade, que encontraram logo naquela noite o momento perfeito para a fuga perfeita.
A figura tremulante mais notória àquela hora era a da jovem andando curvada pela neve. Coberta com um material sujo, esfarrapado, que combinava com o estado deplorável de suas roupas. Começara a chover granizo dos céus. O gelo afiado que cortava a costumeira calmaria das noites thaienses perfurava as vestes da jovem e a transformava em uma mendiga congelada. Lentamente, as extremidades do corpo começaram a ficar duras e insensíveis. A visão foi ficando turva, embaçada e o andar trôpego. A respiração estava difícil, e cada vez menos ar era puxado para o corpo. O sangue quase dormia nas veias e a pele assemelhava-se a uma borracha sem vida. Se continuasse ali, em poucos minutos Dawn Evans morreria de hipotermia.
Andara poucos metros desde que saíra da enorme mansão de Sir Isaac Evans. Provavelmente ele nem notara que ela fugira. Só notaria na manhã seguinte, quando fosse chamá-la para o suntuoso café da manhã.
Por que fui abandonar os luxos da minha vida? Questionava-se em pensamento. Mas sabia exatamente a resposta. Não podia continuar vivendo sob o teto de um homem que não a amava, que apenas a via como instrumento para a escalada social. “O ricaço que acolheu a órfã.”. Não houve sentimento em seu resgate dos corvos sociais dez anos antes.
Começava a morrer por dentro. E por fora também. As pernas fraquejantes não aguentavam mais o peso do corpo. Vacilava a cada passo. Se não alcançasse logo um estabelecimento aquecido, morreria. Foi então que, por uma janelinha de pedra, viu o fogo dançante dentro da igreja. Seria tolice fugir da mansão para o estabelecimento religioso que ficava exatamente ao lado, mas não podia esperar algo melhor. Se a nevasca melhorasse pela manhã, fugiria de Thais. Iria tentar a vida na distante Carlin, nova colônia do Rei Tibianus I. Fora construída para servir como bode expiatório aos Orcs que moravam por ali. Eram tempos difíceis, tempos de guerra.
Arrastou-se mais alguns metros antes de despencar à soleira da grandiosa porta de madeira ricamente decorada em ouro. Sem forças para bater, jogou o peso de seu corpo contra o portal, provocando um baque longínquo, quase inaudível. Mas o “iluminado” do seu destino agiu pela segunda vez, e a porta abriu-se de leve. Pela fresta, um velhote com expressão dura na face a examinou.
- Não há futuro para você. Apenas ser uma pobre mendiga. Não há lugar para você na casa dos deuses sua infame! Vá definhar no inferno de gelo que se constitui aí! - Disse ele cruelmente, batendo a porta e deixando-a para morrer.
***
Acordou já em um ambiente mais aquecido, aconchegante. Era uma ampla casa de um cômodo só, feita aparentemente de mármore e decorada com um bom gosto exemplar. Piso reluzente, paredes ricamente embelezadas com quadros de artistas famosos expressando os mais diversos estados de espírito e com tapeçarias luxuosas de várias cores e com muitos detalhes, geralmente dourados. O espaço central era ocupado por infinidade de balcões e criados-mudos cobertos por folhas e mais folhas de papéis. Muitas e muitas camadas de tecidos diversos cobriam o mais longo dos balcões, que cortava transversalmente o ambiente. Estava ela deitada sobre uma confortabilíssima cama de casal com lençóis de linho e grossas cobertas caríssimas. Ficava em um canto à parte do cômodo, junto à estantes de livros e mesas com mais e mais papéis. O “quarto” era cercado em três lados com paredes, o que a impossibilitava de ver o resto da casa.
Pela janela fechada com uma cortina pôde ver o ambiente externo - ou parte dele: um longo pátio situado em uma península, aparentemente com uma horta vazia. Um poço de pedra e uma fonte simples com uma ciranda de anões enfeitavam a imensidão de neve. Havia uma cabana do outro lado, com algumas árvores supostamente frutíferas já sem folhas. Por outra janela, logo à sua frente, viu a entrada com dois colossais pilares de mármore com trepadeiras secas enroladas. Uma trilha de árvores demarcava o caminho central e levava o visitante até a cerca de carvalho que delimitava o terreno.
- Vejo que acordou. - Trovejou uma voz forte logo atrás dela. Virou-se de sobressalto com o coração em disparada. Em pé, logo atrás da cama, viu um homem extremamente alto, elegante. Não era muito jovem, os cabelos grisalhos e algumas rugas na face já demonstravam isso. Trajava um longo robe arroxeado com detalhes em ouro e com as iniciais “AF” bordadas no peito. Nos pés, pantufas de coelhinhos rosas quebravam a seriedade transmitida pela face dura. Os olhos castanhos estavam sem brilho.
- Onde... Onde estou? - Indagou, a voz meio rouca e não passando de um sussurro. Forçou a garganta e sentiu um despejo de catarro descer por esta. O homem a encarou por alguns minutos.
- Está em minha suntuosa residência, nos campos ao sul de Thais. Teve muita sorte de eu estar passando pela frente da igreja quando desmaiou.
Sorte... É o que todos dizem.
- Por que... Por que me acolheu?
- Não se acostume. Apenas não consigo ver uma bela jovem com muita vida pela frente como você largada à soleira de igrejas de uns velhos ridículos com suas crenças surreais.
- Bela?
O homem pareceu surpreender-se com a resposta da jovem. Ergueu uma sobrancelha e a examinou bem. Tinha os cabelos negros muito longos, caindo pelo corpo. Eram extremamente lisos, assim como sua pele tão branca quanto a neve que caía do céu. O nariz curto enfeitava a face com os lábios humildes. Tinha belos olhos claros como as águas que rodeavam seu jardim. Os cabelos que desciam em sua face lhe davam um charme à parte, um mistério sedutor e ao mesmo tempo torturante. Os seios não muito pequenos nem muito grandes eram exuberantes e o corpo era muito bem moldado. Por baixo das cobertas dava para se ver as vestes esfarrapadas e imundas que usava, que lhe davam um ar mais selvagem, de indiferença.
O que essa garota tem de tão mágico?
- Ninguém nunca chamou-lhe de bela antes?
A pergunta pareceu fixar-se na mente de Dawn. Titubeou por alguns instantes antes de balançar a cabeça de leve, indicando uma negação. Os cabelos tremularam tal como fazem as cachoeiras.
- Onde andou por todos esses anos que nunca a vi pelas ruas de Thais?
- Eu... Não tenho saído de casa muito... - E acrescentou em sussurro: - Pelos últimos dez anos...
- Ou sua família buscou preservar sua aparência angelical, ou temia uma nova invasão dos Orcs. Á julgar pela sua anterior negação, posso dizer que foi o temor que a aprisionou em seu lar, não é?
Ela não respondeu. Ergueu seus olhos sem fazê-lo com o rosto, fitando as letras bordadas no robe.
- O que é “AF”?
- Arthur Fletcher. Meu nome. - Disse com um breve orgulho na voz, o peito inchando-se, como se esperasse ser reconhecido. - Já deve ter visto meu nome nas mais belas grifes da capital.
- Na verdade... Não.
O argumento murchou o ego de Fletcher.
- Esqueci que não anda muito por aí. Ao menos conhece Hugo Carville?
Ela assentiu, de leve. Provavelmente Sir Isaac citou-o uma ou duas vezes nas rodas sociais que freqüentava, onde exibia Dawn como seu troféu majoritário de preocupação social. Hugo Carville era o maior estilista da longínqua cidade de Venore – que na realidade nada mais era se não um forte de guerra cercado por uma vila boba. De renome mundial, Hugo produzia as mais finas peças de vestuários que se permitiam ser usadas pelos ricaços das mais altas classes. Conhecido por sua aspereza, Hugo era reservado e pouco saía de seu estabelecimento na cidade onde nasceu.
- Pois então. Eu o ensinei tudo que sabe. - Disse, buscando uma cadeira ali próxima e sentando-se nela, cruzando as pernas. Dawn fechou rapidamente os olhos, o que provocou um risinho forçado no estilista. - Pode abrir, estou devidamente vestido por baixo.
- Ok... - Hesitou. Abriu-os aos poucos, fechando-os repentinamente vez ou outra. Após algum tempo manteve-os escancarados. Arthur sorria. - Sério? - Não estava muito interessada nisso.
- Claro! Eu o conheci logo no começo da carreira, numa taberna na periferia venoriana. Papo vai papo vem, acabamos fazendo uma sociedade, e foi graças a mim que ele chegou à fama. -
Ou foi quase isso... Pensou ele. - Enfim, já faz uns anos que nos desentendemos e aí resolvi romper. Vim pra cá recomeçar, sabe.
Manteve-se um cruel silêncio, enquanto ambos buscavam um assunto. Ele resolveu disparar primeiro.
- O que fazia largada lá?
- Não tenho família. - Apressou-se em responder.
- Órfã?
- É. - Era impressionante como sua imagem de “a órfã mais famosa de Thais” sumiu da noite para o dia. Hoje em dia ninguém sequer a reconhecia quando ia comprar leite. Isto é, quanto Sir Isaac a deixava sair. Parecia ter medo de perder sua garantia de sucesso.
- Que lastimável. Onde morava?
- Com eles. Em Fibula, conhece?
- Sei, já ouvi falar. Aquela ilha na costa sul, não é? Soube que foi atacada recentemente pelos Orcs. Malditos, não se cansam...
- Isso. Morreu toda minha família. Aí vim pra cá tentar recomeçar. Tentei buscar abrigo na igreja, mas não consegui... Fui expulsa por um velhaco e... - Sentiu como se estivesse se abrindo demais com o estranho.
- Eu sei quem é. É um eremita esquisito... Vem de outra cidade, só não sei dizer qual é. Veio passar uns tempos aqui na capital. Tem fama de bondoso, mas na prática deve ser um ríspido.
Ela nada disse.
- Bem... - Ele encarou as pantufas e brincou com as orelhinhas dos coelhinhos com os dedos dos pés. - Já que estamos em pleno inverno, enfrentando uma guerra e você é órfã... Acho que posso lhe ceder abrigo aqui por algum tempo. Quer dizer, até arrumar um lugar melhor. E se quiser é claro.
O rosto dela iluminou-se um pouco, e a sombra de um sorriso formou-se no canto de sua boca. Até esqueceu-se de que nem sabia como fora parar ali.
- Terá comida e tudo mais que precisar. Mas não será de graça. Terá de trabalhar para mim.
Era a mudança nos ventos! Finalmente a luz de sua estrela brilhava para algo útil. Sua vida enfim tornar-se-ia algo, enfim teria um rumo a seguir! Seria modelo de um dos mais famosos estilistas do mundo!
Arthur foi ao balcão maior e buscou alguns folhetos, largando-os sobre a cama, ao lado dela.
- Amanhã bem cedo pegue esses papéis e vá até a rua principal de Thais e entregue aos passantes. São propagandas. Vai espalhar por aí a notícia de que vou abrir uma alfaiataria por esses lados.
E o sorriso em sua face murchou.