Capítulo VI
Maquinário para a Guerra
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Mais um voluntário para a guerra! - Bradou Baxter em meio à multidão que o cercava, interditando a pequena ponte de pedra que fazia o acesso a Ilha da Monarquia, donde se erguia o imponente Castelo de Thais. Homens, mulheres, cavaleiros, arqueiros, feiticeiros, druidas, velhos, jovens, anônimos, heróis consagrados, todos os cidadãos mais corajosos de Thais o cercavam, comentando e estendendo o braço para assinar o documento que este mantinha sobre uma mesa de madeira. Aquela lista carregava as esperanças thaienses de uma nova vitória contra os orcs. O rei queria voluntários para a guerra, precisava deles. E o povo, que amava sua bela cidade, não protestou nem pensou antes de ir servir ao seu mandante. Baxter esboçava um sorriso em ver tantas pessoas dispostas a lutar, ou até a morrer por sua cidade. Era um sentimento fantástico!
Em pé ao lado da mesa, anotava na lista o nome e as habilidades de cada soldado. O documento seria entregue à TBI, que se encarregaria de treinar e preparar todos os voluntários para o maior combate de suas vidas. Mal podia esperar para ver a cara que os orcs fariam quando vissem todo aquele exército altamente qualificado marchando contra suas pequenas forças de guerra, mínimas. Pensava se seria consagrado por ser o comandante daquelas tropas, se receberia honras e seria chamado de herói. Esperava há anos por aquele momento. Não seria só mais um guarda do castelo, seria o maior herói que Thais já vira desde Banor.
- Baxter - Trovejou uma voz sombria e grave, forte como mil tufões nas terras do Tíbia, em meio a multidão. As pessoas abriram o caminho da ponte para a passagem do lendário cavaleiro com sua armadura reluzente, prateada e marcada pela guerra. Sua longa capa azul e branca esvoaçava pelo forte vendaval do dia e o tilintar de suas proteções ecoou pelas alamedas e becos da cidade. Sua espada embainhada transmitia poder, ninguém ousaria desafiar o homem que usava aquela espada. Era um grande homem, uma lenda viva. Era o chefe da TBI, era Chester Khas - Podemos conversar?
Ninguém ali pareceu respirar. Alguns tinham como um desacato mover qualquer músculo na presença daquele homem. Outros sequer olhavam, com medo de terem os olhos arrancados. Outros, em contrapartida, pareciam querer pular sobre ele, não acreditando que estavam o vendo ali, a poucos metros de seus corpos. Baxter prendeu a respiração e tremeu. Detestava quando tinha que falar com seu superior, se sentia um pobre cavaleiro sem forças perto dele. Mas engoliu em seco seu medo de ouvir umas verdades e seguiu o cavaleiro, que simplesmente virou-se sem dizer mais anda. Baxter o seguida com uma leve distância, não ousando olhar pra trás, mesmo ao ouvir o alarde que as pessoas faziam, comentando a cena e tentando preencher a lista.
***
- Que houve? - Disse Khas, sentando-se em uma cadeira estofada avermelhada com detalhes em madeira reluzente, descansando os pés sobre sua mesa de aço puro na qual deixava papéis, tinta, penas e candelabros. Desembainhou a espada e escorou-a na cadeira, olhando firmemente para o trêmulo guarda - Parece que viu um fantasma.
- N-não é n-na-da - Gaguejou Baxter, engolindo litros e litros de saliva e suando frio por todas as partes de seu corpo. O outro riu alto, quase caindo da cadeira.
- Não sou um demônio, não precisa quebrar-se todo perante minha pessoa.
- Sim senhor - Disse o guarda tentando se comportar. Khas ergueu-se e deu várias voltas na mesa, parando diante um quadro feito em pele presa a bambus que jazia pregado a parede atrás deles. A pintura retratava um monte de terra em meio ao mar, cortado por linhas vermelhas e assinalado com “X” e “O”.
- Isto é o nosso plano de guerra - Khas puxou uma gaveta em sua mesa e dela tirou uma maçã enrolada em um pedaço de papel fedorento e ligeiramente marrom - “X” somos nós, “O” são eles - Deu uma grande mordida na maçã.
- Não seria o contrário?
- Queremos confundir eles.
- Ah claro - Ele que estava confuso. Espichou-se e olhou o alvoroço na rua - Olha senhor, preciso checar lá e...
- Não vou me demorar - Andou de novo em círculos pela mesa, mordendo a maçã com gosto. Baxter só olhava. Passou a encarar o mapa e observou a presença de uma linha pontilhada azul na altura dos “O”- Que é isso?
- Ai é que está - Argumentou Khas com um pedaço grotesco de maçã na boca - Tenho um espião na Pedra.
Se fosse Baxter que tivesse com a maçã na boca teria engasgado naquele momento. Na Pedra? Na Pedra de Ulderek? Só podia ser loucura! Nenhum humano jamais regressara vivo de lá! Como Khas conseguira mandar um espião para as entranhas daquela fortaleza tão bem guardada?
- Mas como... - Baxter engoliu em seco - Como um humano entrou lá?
- Eu disse que era humano? - Khas riu da cara de baxter e jogou os restos da maçã pela janela.
- Um traidor? - Baxter ergueu de leve as sobrancelhas, levemente desconfiado - Um orc?
Khas fechou os olhos e riu em pensamento. O impacto que causara tal informação era surpreendente, o que ele realmente esperava. Talvez por isso confiara tanto naquele orc... De qualquer jeito, sabia que ninguém poderia suspeitar dele, era um mestre no disfarce e não seria tolo para ser reconhecido. Sentiu-se extremamente orgulhoso da idéia, estufando o peito e olhando com superioridade ao guarda, como se indicasse que ali ele mandava. Nunca em toda sua vida tivera um plano tão brilhante.
- Mas como conseguiu o apoio de um orc? - Baxter tremeu quando o pensamento de que o orc poderia estar enganando a TBI chegou à sua mente. Adoraria ver Khas quebrar a cara, era convencido demais e acreditava veemente em sua superioridade, logo merecia se dar mal. Mesmo assim, um erro daqueles poderia estragar toda uma operação.
- Não há o que o dinheiro não possa comprar - Disse Khas, ainda com o peito estufado e esboçando um sorriso enorme, de orelha à orelha.
- Certo... - Outro problema de Khas: a cega submissão ao dinheiro. Aquele era o veneno que certamente o mataria um dia - Mas pra que isso? Só por uma guerra?
- Me pediu que traço era esse - Disse o líder da TBI indicando o risco azul. Khas olhou-o com um ar sombrio nos olhos e voltou a ser o frio e calculista Khas de sempre. Pela cara, o que ele tinha a dizer era muito sério, na verdade extremamente sério e preocupante. Nunca antes vira um oficial com tal expressão, logo espantou-se. O que ouviria certamente era uma bomba e tanto - Os orcs estão se preparando excepcionalmente bem para a guerra.
- Eles sempre se prepararam - Lembrou-se Baxter das catapultas da última invasão e da fantástica organização dos orcs quando o tema era guerra. Se fossem mais fortes significariam um problema maior.
- Mas desta vez tudo mudou - Ele mantinha o tom enigmático. Andou lentamente pela sala, pensando e remoendo como tratar de um assunto tão delicado. Nunca tivera receios, então era melhor falar tudo de forma rápida e direta, para encurtar o caso e acabar com aquele papo vago de uma vez por todas. Detestava falar com inferiores, e não queria que aquele ser continuasse ali poluindo seu ar. Engoliu em seco e falou, sem rodeios. - Eles têm um impressionante maquinário para guerra.
Baxter só ergueu as sobrancelhas. Como assim maquinário? O que poderia ser tão tenebroso a ponto de arrancar um receio de Chester Khas? Tinham catapultas de novo? Construíram armas melhores? Domaram dragões? O que raios eles estavam preparando? A cara do oficial era um indicador perfeito de que o que vinha por ai era um fator realmente preocupante que arrancou idéias mirabolantes e preocupações do pobre Baxter, que suava frio imaginando orcs domando demônios e serpentes gigantes destruindo as casas da cidade. Pensou em cada habitante que perderia a vida, cada casa erguida com esforço que seria destruída...
- O que eles têm? - Disse, com um enorme receio na voz, temendo o que ouviria em resposta. Fechou os olhos e suou para se preparar para ouvir as duras e diretas palavras de Khas, sabendo que teria mais trabalho por ai.
- Torres gigantes, de um tamanho colossal, maiores que os pórticos de nossa cidade - As palavras saíram deliberadamente, sem que ele mostrasse qualquer reação ou temor ao falar daquilo. Mas não mudara a expressão facial, que permanecia sombria e séria, transmitindo um temor fora do comum em baxter, que estava a ponto de sair gritando - Torres equipadas com rodas de madeira munidas de pontas de aço, capazes de moer o mais duro dos aços em um piscar de olhos, torres resistentes ao mais afiado dos cortes de um machado, torres munidas de atiradores de elite e feiticeiros capazes de explodir construções inteiras em segundos. Eles têm sete ao todo, o suficiente para entrar aqui e fazer um extremo estrago.
Baxter levantou-se, derrubando a cadeira. Seu queixo caíra, seu corpo tremia e suava e ele não sentia os músculos. Um frio na barriga vinha acompanhado de imagens e pensamentos sobre mortos e caos, um imenso remorso de incapacidade o tomando. Sentiu que seus esforços eram insignificantes contra tal monstruosidade. Imaginou monstros de madeira e aço de vinte metros correndo em sua direção, destruindo tudo a sua volta. Sentiu-se no fundo do poço, com um desespero enorme dentro de si. Se era verdade, os orcs estariam com a faca e o queijo na mão. E já o teriam cortado.
- O seu espião precisa destruir as torres, é nossa única salvação! - Baxter disse, atropelando as palavras com seu desespero. Não tinha tropas suficientes para lutar contra os exércitos e contra as torres. Thais seria destruída, a menos que um orc fizesse o que fora pago para fazer.
- Não é tão simples assim... - Khas retrucou pausadamente, com um tom frio e extremamente calmo, como se tentasse raciocinar sobre aquela situação tão difícil. Era um caso de vida ou morte, e certamente se conseguisse assegurar a vida iria ganhar uma gorda recompensa - Preciso zelar pela segurança de meu informante, toda operação depende disso!
- QUE SE DANE A OPERAÇÃO! - Baxter gritou em fúria, ignorando a autoridade do oficial - Temos vidas em perigo! Precisa zelar pelo bem dos habitantes dessa cidade que você ajuda a proteger, e não por uma operação!
- A operação é a nossa salvação! - Ele respondeu, sem perder a calma. Era fundamental estar de cabeça fria para pensar em uma solução. Baxter precisava entender que não era tão fácil se comunicar com um orc, principalmente se este estivesse na Pedra de Ulderek. Era realmente algo mundo complicado, mas decisivo - Não posso me precipitar. Mandar o orc destruir as torres pode não ser tão simples, não tenho como saber se ele possui acesso às torres nem se tem poder para destruí-las. E ainda se o mandar para tal ato, ele pode ser descoberto e morto.
- MAS AS TORRES TERÃO SIDO DESTRUÍDAS! - Gritou Baxter em desespero, como se clamasse por cada vida da cidade. Não conseguiria ser tão frio como Khas.
- E NOSSO ÚNICO INFORMANTE TERÁ MORRIDO! - Pela primeira vez ele se alterou, berrando. Estava vermelho, bufando e com os olhos envolvidos em chamas. Era impressionante como aquele guarda conseguia ser um retardado mental. Não tinha seu sangue frio para perceber o quão era importante que o orc continuasse vivo. Acalmou-se, pensando na única saída que tinha. - Vá recrutar mais gente, eu sei o que fazer - Mas para o sucesso daquela sua idéia, precisava que tudo tivesse corrido decentemente no Colosso.
***
No andar inferior, sentado em sua cadeira na delegacia. Harkath Bloodblade lia e relia atenciosamente a carta que acabara de ser entregue.. Sua informante era muito profissional, pois soube disfarçar bem o que realmente queria dizer. Se tudo que estava expresso ali fosse verdade, podia começar a ter perspectivas de um futuro melhor. Não importava Khas, guerra, orcs, Thais, Tibianus. O que importava era o poder que teria em mãos, seria o homem mais poderoso de todos, mais que um deus. E tudo dependia daquela mulher, estivesse ela onde estivesse.
Caro papai.
Não gostei de Edron, as bibliotecas são muito vagas e incompletas, não pude fazer uma pesquisa decente. Ouvi relatos de que o Eremo, um grande conhecedor que mora em uma ilha próxima a Cormaya, possui um vasto acervo de livros e que posso tê-los a minha disposição, basta você usar seus contatos. Espero coletar material suficiente para sua pesquisa.
Beijos, sua filha amada, Sofia.
Sorriu. Ela tinha muita criatividade. De onde tirara “Sofia” não sabia, mas era o disfarce perfeito. Chamou um guarda que estava na porta de sua sala e lhe passou as informações. Era hora dele “usar seus contatos”. Sorriu mais ainda, percebendo a inteligência de sua agente. Era fantástica!
Mas ele mal sabia que Sofia era muito mais esperta do que mostrara na carta.