O Arauto do Expurgo
Capítulo XI
Ascensão
A popularidade de Jean conseguiu elevar-se ainda mais no decorrer dos dez dias que se seguiram depois da morte de Alfred, antigo rei de Agkar. Ele era recebido com incrível respeito e admiração em qualquer canto da cidade-estado. Todos adoravam aquele espírito rebelde e carismático, naturalmente grosseiro, porém capaz de praticar incríveis ações humanitárias.
O chanceler não demorou a convidá-lo para morar no Palácio, insistindo para que o homem não deixasse a cidade. Jean adorou o enorme e luxuoso aposento, que acabou aceitando, depois de relutar com falsa modéstia.
O plano tinha tudo para dar certo. Porém, algo sombrio crescia em sua consciência. Ele não conseguia esquecer do terrível pacto que tinha com O Arauto. Naquele último dia antes do término do prazo, Jean acordou cedo e não saiu de casa. Sua inquietude crescia com o passar do tempo, pois sabia que era tarde demais para escapar.
Ao clarear de um novo dia, lá estaria o monstro, fitando-o com seus olhos nublados e gargalhando sem parar. Provavelmente recitaria as regras daquele acordo demoníaco, antes de fazer valer suas palavras. E então o fim estaria próximo.
Jean afastou aqueles pensamentos. Ele tinha de fazer algo, voltar ao jogo. Quando o sol ameaçava se pôr, finalmente saiu de sua pequena residência e encarou a rua. Precisava ir ao mesmo lugar em que ia todas as noites desde que chegou em Agkar.
***
– E mais uma vez, você conseguiu – disse O Arauto, assim que pousou em frente ao homem pálido que tinha as vestes sujas de sangue.
– Eu sou bom nisso – respondeu Tomas, com azedume.
Ambos estavam na base de um morro. Não havia mais ninguém vivo por perto, um pequeno casebre seria a única testemunha de qualquer ação suspeita.
O Arauto se aproximou do corpo de uma velha senhora que jazia no chão. Embaixo dela, uma grande poça de sangue. Foi morta a machadadas, vários golpes toscos foram aplicados horizontalmente em seu abdômen.
– Péssimo jeito de morrer, atacada pelo próprio filho... – provocou o monstro.
– Eu fiz bem. A velha já se queixava de dores a muito tempo...
– Então por que não a matou enquanto dormia, com um simples corte na garganta?
Tomas fitou-o com terrível ódio.
– Deixou para o último momento e a matou com sangue frio... Aposto que ficou todos esses dias deliciado com a idéia de matar a pró...
– SEU DESGRAÇADO! DEIXE-ME EM PAZ!
Depois do grito, veio o ataque. Tomas parecia um animal selvagem, brandindo o velho machado e correndo na direção do Arauto. Porém, não ofereceu nenhum perigo. O demônio flutuou alguns metros sobre o chão e lá ficou.
– Já tentaram me cortar ao meio, muitas vezes... – exclamou, rindo do esforço inútil de Tomas. – Você já deveria saber que tem de usar as mãos.
O homem largou o machado e se agachou no chão, debulhando-se em lágrimas e gritando xingamentos funestos.
– Por que você me faz matar e depois cobra hombridade de minha pessoa? Eu não agüento mais seu acordo e seus prazos malditos!
– Nunca. Você já aproveitou as vantagens de nosso pacto, está vivo graças a mim. Agora terá de arcar com as consequências. Se quiser ganhar esse jogo, fuja e tente não ser encontrado.
– É impossível. Você sempre acha... Não sei como, mas consegue me encontrar! – retorquiu Tomas, enquanto batia violentamente no chão com as duas mãos, seus olhos vermelhos ressaltando a ira estampada em seu rosto.
– Teve um que fugiu... Mas eu o capturei novamente, pois nunca perco – argumentou o monstro.
– Por que?! POR QUE?! – Tomas insistiu na vaga pergunta.
– Nova rodada. Levante-se para jogar os dados – falou O Arauto, enquanto descia para o chão e mostrava os objetos macabros na palma de sua mão.
***
Apesar do medo inicial de ter sido desmascarado, Jean já não pensava mais em Serena. Foi uma grande surpresa quando a moça apareceu repentinamente naquele fim de tarde, enquanto ele caminhava pelas ruelas estreitas de Agkar.
– Bom dia!
– Olá, Serena – respondeu Jean, apertando o passo. – Desculpe-me, mas eu tenho um compromisso.
– Eu preciso falar com você – disse ela. E sua voz soou carente como a de uma criança abandonada. – Eu não tive coragem de te procurar antes, mas eu preciso dizer algo...
– Serena, querida... Já se passou tanto tempo desde aquele terrível incidente, e a gente estava indo tão bem... Apenas esqueça o que você viu e tente não me procurar. Certo? – disse Jean com suavidade, virando-se e seguindo seu caminho.
– Mas eu estou apaixonada por você!
Foi a dose suficiente de romance para atrapalhar o dia de um homem determinado. Algumas pessoas que estavam por perto, transeuntes e donas de casa acotoveladas nas janelas de suas moradias, ouviram a declaração da moça e sorriram discretamente. Era muito fácil cair de amores por aquele grande herói, um dos homens mais famosos de Agkar, provavelmente foi o que pensaram.
– Bem... – começou Jean, forçando um sorriso e olhando para os lados. – Você é linda e eu realmente apreciei aquela noite, mas...
Ele fez uma pausa ao perceber que a mulher estava muita abalada, prestes a desabar em lágrimas. Nem parecia aquela moça confiante e cheia de vida.
– O que eu posso dizer? – perguntou ele, com seu tom de voz misturando confusão, rudeza e doçura de uma maneira singularmente curiosa. E se aproximou para que ninguém pudesse ouvi-lo falar. – Não vai dar certo. Você consegue entender isso? Vá para sua casa, Serena. Esqueça tudo que aconteceu entre nós dois, por favor.
A mulher o encarou pela última vez e foi embora, e ele nunca tinha visto nenhum olhar tão ultrajado, triste e digno de pena como aquele. Uma linha muito tênue separava ódio e amor, foi o que Jean pensou naquele breve momento.
Por um lado, ficou contente pelo fato de não ter sido mencionado nada sobre certo monstro alado ou conversa suspeita. Estava na hora de seguir em frente.
***
Tomas já estava acostumado com o jogo: prazo e assassinato. Apenas encarava o chão, esperando o monstro ir embora.
– Você realmente quer saber por que eu faço isso? – perguntou O Arauto, antes de levantar vôo. – Eu estou nesse mundo muito antes de você nascer, eu sou obra do Criador e faço parte da ordem natural de todas as coisas.
– E daí? – perguntou o homem, sem olhar para o monstro. Suas mãos mantinham-se entrelaçadas e sua garganta estava seca.
– É o meu imutável comportamento natural. É o que eu sei fazer – continuou a criatura. – Você é um assassino e mata por que gosta, tanto que gozou de sua primeira vida sem se importar com as conseqüências de ser o meu servo. A Grande Guerra acabou, e eu entendo que é muito difícil encontrar uma vítima hoje em dia... Mas nós não podemos controlar esses impulsos, não é mesmo? Temos de continuar fazendo, não importa a época e nem as dificuldades.
– Isso é patético. Você está arranjando desculpas para me fazer sofrer. Você tem mais sangue em suas mãos do que qualquer um...
– E você é um criminoso, mas está usando meus erros contra mim. Exatamente como eu fiz, assim que cheguei nesse triste cenário sangrento – redarguiu o monstro. – Está vendo? Somos iguais.
As enormes asas bateram rapidamente, espalhando poeira e obrigando Tomas a cobrir seus olhos. O Arauto do Expurgo voou para longe.
***
Jean não mentiu para Serena, ele realmente tinha um compromisso. Todo dia, pouco antes do anoitecer, visitava o discreto túmulo de Vincent. Não entendia por que era impelido até aquele lugar, mas sentia uma necessidade irresistível de estar no cemitério.
As lápides, fincadas no gramado mal cuidado, lhe saudavam de uma maneira macabra. Era como se pudessem prever a sua morte prematura. E ao encarar o túmulo de Vincent, ele se sentiu o próprio defunto.
Afinal, o que fazia naquele lugar? Jean não devia estar perdendo tempo, precisava tirar a vida de alguém para poupar a sua. Esse era o verdadeiro plano de uma criatura miserável, passar por cima de todos.
Enquanto estava submerso em pensamentos, um homem tocou em seu ombro. Jeff apareceu ao lado, discreto e silencioso.
– Sempre bom encontrar um cúmplice – brincou Jean.
Ambos ficaram quietos por um longo tempo, olhando para o túmulo de Vincent. Jean sabia que mais uma vez seria interrogado.
– Eu fiquei sabendo que você aparece aqui todas as noites e passa um bom tempo encarando o túmulo desse homem – comentou Jeff com sua voz juvenil.
– Privacidade é o preço que eu pago pela fama.
– Quem foi Vincent? – perguntou, finalmente encarando Jean.
O mundo daquele homem estava prestes a desabar. A triste verdade ocorreu em sua mente, tão real que parecia palpável.
– Ele fez um pacto com um demônio. Eu achei que Vincent poderia atrapalhar meus planos para essa cidade, pois eu fiz um pacto com esse mesmo demônio. Então eu o matei.
Talvez o desespero tenha lhe deixado sincero. Talvez tenha sido efeito da chuva fraca que começou a desabar e alimentou o tom melancólico daquele fim de tarde. Mas, de algum modo, Jean não parecia Jean. Estava oco por dentro.
– Mundo pequeno – completou, sorrindo abobalhadamente.
– Isso é mal... – respondeu Jeff, depois de pigarrear. Um medo inexplicavelmente intenso tomou conta dele. Algo estranho emanava de Jean, ele era um homem no limite de sua razão. – Como estão as coisas no... Palácio? – emendou, querendo mudar de assunto.
– Eu provavelmente vou me tornar rei. Isso é quase certo – falou Jean. – Gary disse que o meu nome é o mais cogitado entre o Conselho de Agkar. Aqueles velhos rabugentos nem imaginam que foi tudo uma farsa... Muito menos Alfred, um coitado sem descendentes que morreu envenenado...
– Fale baixo, Jean... – disse Jeff, olhando para os lados exasperadamente. Na estranha mente do jovem, falar sobre aqueles crimes era pior do que pratica-los.
Foi então que Jean encarou o rapaz com um olhar insano.
– Eu vou te matar, Jeff. Matar um assassino... Matar outro assassino. Talvez a pessoa mais parecida comigo nesse mundo. Eu sei que isso não serve como desculpa, mas eu me sinto melhor pondo as coisas dessa maneira.
Era seu comportamento típico em momentos premeditados de tensão, demonstrar calma e loucura. Ele não podia se irritar, pois tinha tudo sobre controle. Sua decisão estava tomada, os velhos tempos voltariam.
Jeff correu desesperadamente, mas não conseguiu ir muito longe. Jean pulou e conseguiu agarrar o homem que se debatia amedrontado. Um estrangulamento bem aplicado foi o suficiente para desacordar o rapaz. Fácil até demais, para quem já tinha arriscado sua vida em duelos. Não precisou lamentar a falta de seu revólver, pois uma pedra seria o suficiente para esmagar a cabeça do jovem.
Porém, uma idéia repentina cruzou sua mente naquele exato momento. E a pedra foi ao chão, sem machucar Jeff. “Não precisa ser ele”, afirmou Jean mentalmente, maravilhado com sua engenhosidade e ao mesmo tempo decepcionado por não ter pensado nisso antes.
Correu para o Palácio, sem se preocupar com o rapaz desmaiado. Tinha um novo plano em mente. Dessa vez, desejava a liberdade.
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