O Arauto do Expurgo
Capítulo III
Fuga
Quem adentrasse ao recinto naquele momento, pela porta principal da pequena casa do famoso guerreiro Sirius “Garra Negra”, provavelmente iria assustar-se. O anfitrião parecia uma ave de rapina, pronta para pegar uma presa descuidada. Nos seus olhos, havia sede de sangue e justiça.
Em uma fração de segundos, Vincent pareceu recuperar a consciência e conseguiu se desviar do ataque. Jogou-se para o lado esquerdo e caiu no chão com um baque surdo. As garras de Sirius atingiram a cadeira com grande força e ficaram presas na madeira escura.
Se a situação não requeresse altíssima adrenalina, Vincent acharia aquilo tudo bastante cômico. Levantava-se com dificuldade, apoiando-se na mesa redonda. Enquanto isso, Sirius lutava para desvencilhar o seu braço direito da cadeira.
Vincent ficou de pé. Um pensamento rápido surgiu em sua mente confusa, transparecendo em seu rosto no formato de uma expressão lancinante e cruel. Seria muito fácil sacar sua espada e decepar a cabeça do seu amigo e rival, enquanto ele se mantinha naquela situação embaraçosa. Não demorou muito para repugnar a idéia e sentir-se nojento, considerando o fato de Sirius estar correto. Talvez ele fosse realmente um verme digno de pena.
Sirius se encontrou em aparente desespero por alguns poucos segundos, até que conseguiu pensar em uma solução simples para o problema. Sentou-se na mesa, segurou a cadeira com os dois pés e a empurrou com toda a força de sua outra mão. Quando finalmente conseguiu se libertar, não perdeu tempo e atacou novamente.
Os braços de Sirius pareciam feixes de luz, movendo-se em alta velocidade e tentando atacar um alvo igualmente rápido. Vincent percebeu que teria de agir ou acabaria morrendo antes do tempo. Desviava dos ataques de maneira eficaz, deixava Sirius pensar que estava tomando conta da situação, enquanto apenas esquivava com um rápido jogo de pernas. Há uma distancia considerável, os dois pareciam estar dançando.
Além da cadeira de Vincent – que estava com quatro perfurações no encosto –, nenhum outro objeto foi tocado em toda aquela ação veloz e ininterrupta. Vincent ia vagarosamente para trás, pouco a pouco, aproveitando o amplo espaço da sala com pouca mobília. Preocupava-se em escapar daquelas garras velozes, que chegavam perto de atingi-lo a todo o momento, ao mesmo tempo em que tentava criar uma brecha para sua fuga. Pretendia pular a janela, na primeira boa oportunidade de sair ileso.
Entretanto, o seu plano não deu certo. Sirius aumentou a velocidade dos seus ataques e, quando menos esperava, Vincent foi atingindo. As garras penetraram profundamente em sua pele, logo abaixo do ombro esquerdo. Sentiu uma dor intensa e foi inevitável gritar. Os joelhos pesaram e o corpo cedeu. Ajoelhou-se, segurando o seu braço ensangüentado. Sirius mantinha uma expressão triunfal em seu rosto.
– Por que não me atacou quando podia? O que se passa com você, Herói? – grunhiu Sirius, em tom debochado. – Devido a sua imprudência, você irá morrer de forma dolorosa.
Sirius parecia ter enlouquecido, estava totalmente fora de si. Por um momento, Vincent o comparou com O Arauto. Percebeu, da pior maneira possível, que o tom de deboche dos dois era quase igual.
O sangue quente escorria lentamente, ensopando a manga de sua blusa fina e manchando a sua pele bronzeada. A cabeça de Vincent girava, ele não conseguia mais pensar ou agir. Só queria dormir, apagar... Ao mesmo tempo sentia que ainda precisava fazer algo para evitar a sua morte iminente!
– Eu não posso me redimir, ou consertar o que eu fiz... Mas eu peço perdão.
Vincent parecia falar para si mesmo, e não com seu amigo. Fechou os olhos por alguns instantes, Sirius achou que ele iria desmaiar... Mas, era o contrário, ele estava mais lúcido do que nunca. O seu espírito guerreiro tinha aflorado, tomando todo o seu corpo e ignorando a dor. Levantou-se com ímpeto devastador e, sacando sua espada, atacou fulminantemente em direção vertical. Não planejou fuga ou defesa, estava prestes a lutar pela sua vida.
O som de metal encheu o ar. A espada de Vincent e as garras de Sirius tinham se chocado e permaneciam próximas em terrível duelo. Os dois se observavam, olho no olho, esperando o próximo movimento do inimigo. Naquela mesma posição, passaram a girar lentamente pela sala, em busca de espaço para um novo movimento. Ambos tinham certeza de que a luta acabaria no próximo golpe.
Mesmo para os maiores guerreiros daqueles tempos, aquela seria considerada uma batalha memorável. Parecia incrível eles estarem tão próximos e ainda não terem se ferido novamente. As garras, acopladas nas mãos de Sirius, não eram muito longas, mas possuíam uma resistência inigualável. Muito suor escorria da testa de Vincent, ele já se encontrava ofegante.
– Seu canhoto maldito... – falou Sirius, cuspindo as palavras com grande esforço. – Essa batalha já está ganha desde que eu perfurei o seu braço.
Ele estava certo. Não demorou muito mais para Vincent ceder. Sirius aproveitou a deixa para forçar o seu ataque, empurrando seu rival brutalmente e lançando sua espada contra a parede. Vincent cambaleou para trás, desarmado e em crescente exaspero.
Aquele era o clímax da luta. O ar estava pesado, todo aquele ambiente parecia presenciar aquela infernal demonstração de habilidades. Mais um golpe e um dos combatentes iria cair, para nunca mais levantar.
Entretanto, Sirius não parecia estar disposto a continuar a luta.
– Você não foi o primeiro guerreiro de Doria, ambicioso o suficiente para fazer acordo com O Arauto – disse Sirius, em uma voz tremula. – Eu não sei por que ou como, mas sei que ele mata pessoas com a sua ajuda. Você traiu o código de honra, Vincent. Você entende o que isso significa?
– Desculpe– me... Eu sinto muito. Muito mesmo.
– Você sabe o que deve fazer. Vá embora! – Sirius gritava.
Vincent chorava. O suor e a sujeira misturavam-se com as lágrimas, dando-lhe uma expressão digna de pena. Sentiu a necessidade de morrer para redimir os seus pecados, ao mesmo tempo em que desejou nunca ter existido. Tentou se explicar:
– Eu não sabia o que estava fazendo... Agora eu sou um escravo dele. O Arauto me obriga a jogar os dados... Eu só tenho duas opções, continuar a compactuar com isso ou me tornar um dos seus ceifadores, uma criatura sem alma...
– Eu não quero saber, vá embora!
Sirius repetiu a frase, gritando a plenos pulmões. Vincent não demorou a sair correndo, sem olhar para trás. Arfava, o braço esquerdo latejava de dor. Mas a pior dor era interna. Sentia-se humilhado e sem vida.
***
Algumas horas após a luta, Vincent ainda mantinha-se consciente e muito distante de sua cidade natal. Apesar de ter saciado a sua fome na casa de Sirius, ainda estava sujo e suado. A parte superior do seu braço esquerdo estava envolvida por um pano ensangüentado, muito bem amarrado. Talvez o mais idolatrado guerreiro de Doria, nesse momento, parecia um reles refugiado de guerra.
Ele tinha fugido de sua cidade, para nunca mais voltar. No momento da saída, apenas alguns moradores espiavam timidamente pelas janelas, assustados com os gritos do respeitável guerreiro Sirius “Garra Negra”. Doria ainda demoraria muito para recuperar o seu movimento normal. Uma visita do Arauto causava essa sensação apática em qualquer lugarejo.
Enquanto caminhava com dificuldades, Vincent lamentou não ter pego a sua espada de volta. Estava desarmado e ferido. Seria um alvo fácil para assaltantes de estrada.
***
Já estava escurecendo, quando ele finalmente conseguiu encontrar uma pessoa para pedir informações. Não muito distante da estrada que ligava Doria a capital, encontrava-se uma pequena plantação de trigo e uma choupana. Um velho, que aparentava ter por volta de cinqüenta anos, gadanhava com afinco.
– Com licença. – disse Vincent, indo vagarosamente em direção ao homem. – Sabe em que direção eu chego ao deserto de Jafigz?
O velho levantou a cabeça, analisando o guerreiro ensangüentado que estava a sua frente. Depois de pensar um pouco, apontou para o sudoeste.
– Muito obrigado.
Vincent avançou, passando rente ao velho, sem dizer mais nada. Só pensava em chegar ao lugar mais distante possível. Pretendia andar sem parar, decidido a escapar do Arauto.
– Herói... Não gostaria de descansar um pouco? – perguntou o agricultor, com a voz rouca, levemente debochada.
Vincent não gostou do tom de voz, mas tinha aprendido a respeitar os mais velhos, apesar de tudo.
– Não, obrigado – respondeu, sem olhar para trás.
– Já que parece tão disposto... Gostaria de me ajudar aqui? – indagou prontamente o velho, estendendo a foice horizontalmente na direção de Vincent.
Os guerreiros de elite de Doria já estavam acostumados com a hostilidade dos povoados vizinhos. Entretanto, naquele dia, Vincent estava impaciente de mais para sustentar gentilezas.
– Desculpe, mas eu não faço trabalho de peão.
Ele tinha plena consciência do quanto fora rude, mas não havia tempo para se preocupar com isso. Não dizendo mais nada, seguiu seu caminho.
Depois de andar mais alguns metros, Vincent olhou para trás. O velho ainda o observava, com a testa franzida e expressão séria, parecia aborrecido com a passagem do jovem guerreiro. A plantação de trigo refletia a luz do sol poente. Pássaros migratórios cruzavam o límpido céu afogueado. O casebre do agricultor, observado daquela distância, parecia uma caixa de papelão.
Vincent deteve-se, admirando a vida em movimento. Esqueceu do aborrecimento que o velho lhe tinha causado. Com os olhos semicerrados, tentou sonhar acordado, com um lugar melhor e uma vida digna. Naquele momento, teve certeza de que nunca mais veria uma cena tão bela.
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