Capítulo 14 – Os Ventos do Norte: Os Lamentos de um Xamã
Dia em que Ireas Keras descobre mais acerca de suas origens...
O bárbaro fez uma pausa, e bebeu um rápido gole de hidromel. Pelo andar da carruagem, percebi que o homem não me contaria coisas boas.
— Um dia, porém, ela descobriu que estava grávida... E foi nesse momento que o relacionamento deles começou a ruir — Eirik entrelaçou os dedos das mãos e apoiou os cotovelos na mesa — Seu pai queria constituir família... E sua mãe não partilhava de mesmo sentimento. Ela era fria e distante, apesar de ter excelentes modos. Seu pai ficou muito tempo insistindo que ela desse uma chance a você, Keras, de existir. — Eu arregalei meus olhos, surpreso — Não fosse seu pai, acho que não estaria falando com você hoje.
Ele respirou fundo, e mais lembranças vinham à sua mente.
— Ela vivia enfurnada em um laboratório, fazendo pesquisas e mais pesquisas... Eu me lembro de que ela teve muitos desmaios durante a gravidez, e que ficava no hospital com frequência. A verdade é que ela nunca gostou daqui; e tentou fugir daqui antes de você vir ao mundo.
Um sorriso melancólico veio às faces do homem.
— Ela teve uma discussão horrorosa com seu pai perto das tribos de Chakoyas. Sua mãe costumava pegar peixes e ervas com eles para fazer algumas poções e tentar desenvolver feitiços, e tanto trabalho fazia com que ela se descuidasse da saúde. Gestantes não deviam submeter-se a tanto esforço, ele dizia. Infelizmente, ele não sabia, mas irritar aquela mulher e tentar-lhe pôr rédeas custaria caro. — Ele bebeu outro gole de hidromel, faltando apenas um copo para acabar a bebida que comprara — Ela o levou a um local em Tyrsung, que conhecemos com Trincheira Gelada... E jogou-o lá. Quando soubemos do assassinato, tentamos prendê-la, mas ela criou um campo de força impenetrável na casa deles em Nibelor, e deu à luz a você naquele mesmo dia. Se tivéssemos a capturado, ela teria morrido por nossas mãos e você teria sido criado como um dos nossos. Quando conseguimos passar pelo campo de força, ela já não estava mais lá... Tampouco você. Concluímos que ela havia te matado também e que fugira de Svargrond para nunca mais ser vista.
Eu fiquei horrorizado; minha mãe era, no fim das contas, uma vilã... Uma assassina, fora da lei e desalmada, tão fria quanto os ventos daquele local. Ela havia se corrompido. Sim, era uma druidisa que havia perdido sua missão primordial ao assassinar aquele que a amava. Mas por quê? Não havia sentido algum nisso...
— Eirik, há mais alguém que saiba como era a vida deles? — Indaguei, tentando conter meu horror — Digo... Há mais xamãs aqui em Svargrond?
— Sim, meu rapaz — Respondeu-me o bárbaro, sem bebidas — Em Nibelor, existe um homem chamado Hjaern, que substituiu seu pai após sua repentina morte. Fale com ele e sua companheira, eles poderão dar-te mais informações. Sinto muito...
— Não sinta... — Disse a ele pondo a mão em suas costas em gesto carinhoso — Você já me deu mais peças para solucionar meu quebra-cabeça pessoal do que pode imaginar. Bem, eu agradeço por sua companhia — Levantei-me e acompanhei o homem até o local onde ele ficava de guarda. Despedi-me e segui meu caminho a Nibelor.
Sven me havia dito que um dos donos de trenós da região estava tendo problemas com um de seus cães, que havia se perdido da matilha e estaria faminto. Subi em direção à mesma montanha onde encontrei o Grande Urso e segui para o sudoeste, onde ouvi rumores de que o cãozinho estaria por lá. Não encontrei grandes dificuldades no caminho, e logo achei o pobre animal.
Iskan, o dono dos trenós, me havia dito que era um dos mais novos huskies de sua matilha, e que não possuía um bom senso geográfico. O coitadinho tremia e chorava do modo que apenas os canídeos sabem fazer. Sua fome era tanta que conseguia ouvir o estômago do pobrezinho roncar. Chamei-o por seu nome, e ele vagarosamente veio até mim, e dei a ele o tanto de carne que necessitava para saciar sua fome.
Em seguida, pus uma coleira improvisada no pescoço do pequenino e guiei-o até seu dono. Iskan aprovou minha atitude, pois queria que seu mais novo amigo canino aprendesse a ater senso de orientação espacial, e eu o ajudei a fazê-lo. Sem muitas delongas, ele me deu acesso à Nibelor, e por uma dose generosa de presunto ele me levou à ilha do Xamã... A antiga residência de meu pai.
O trenó locomovia-se rápida e majestosamente pelos campos de neve eterna; os cães corriam ao sabor das rédeas de Iskan, e eu admirava a paisagem com um sorriso. Eu via pinguins de vários tamanhos andando sob a neve, e logo vi o templo de Hjaern aparecer no horizonte. Despedi-me de Iskan e afaguei cada um dos cães, agradecendo por seus serviços. Ele me disse que, caso desejasse retornar a Svargrond, era só requisitar a Nilsor, que ele faria o trajeto de volta.
Eu segui em direção às pedras negras, e subi uma das escadarias, dando de cara com o xamã. Sua máscara tribal não me permitia vê-lo. Contudo, ele fora bem receptivo e, ao contar que eu era o filho supostamente morto de Kaisto, ele me abraçou fortemente e me ofereceu algo para comer. Em seguida, ele contou o que sabia sobre meu pai — um rapaz que,assim como eu,em nada se parecia com os brutamontes e truculentos bárbaros; um homem de paz, dedicado a curar e proteger as pessoas da cidade. Era dedicado ao trabalho que fazia, e tinha te conseguido um temporário tratado de paz com os Chakoyas, obtendo deles peixes e várias ervas raras para medicamentos e afins. O maior sonho dele era ter um filho que pudesse continuar o trabalho da vida dele, junto à esposa que tanto amava.
— Eu seria teu irmão mais velho, Ireas — Declarou Hjaern, comovido — Ele me havia encontrado pouco antes de sua mãe engravidar, e me criou como um filho. Ela até me tratava bem, apesar de sua frieza atípica. Ela era assim, distante e imponente; extremamente inteligente e perspicaz, nada escapava a ela. Nada. Ela me ensinara a extrair o máximo de cada ingrediente que encontrava. Para ela, não havia nada inútil, e ela descobrira um poção poderosíssima feita com o néctar das rosas azuis... Depois da morte de meu pai Kaisto e da fuga dela, que também chamo de mãe... Eu fiquei sozinho, e fui obrigado a continuar meus estudos na solidão. Até conhecer Silfind e... O resto... Bom... Você já deve ter deduzido, meu caçula — Ele disse com um sorriso triste — Posso te chamar assim, não posso?
— É claro que pode! — Declarei, emocionado — E porque não, irmão? — Eu apertei a mão direita dele com força — Prometo que acharei nossa mãe... E pedirei explicações a ela... Mas me diga uma coisa — Minha curiosidade era muito grande acerca das habilidades dela — Que vocação era a de nossa mãe?
— Não tenho certeza — disse Hjaern reflexivo —, mas creio que era uma druidisa, sabe? Ela tinha tanto conhecimento sobre runas, sobre a natureza, poções e medicamentos... Ela nunca falou muito sobre sua vida antes de conhecer nosso pai, e nem mesmo ele sabia ao certo.
Eu fiquei um tempo pensativo. Pouco depois, agradeci ao meu irmão mais velho pelas informações dadas e perguntei se havia algo que ele necessitasse de mim. Ele me pediu para quebrar umas passagens usadas pelos Chakoyas, e deu-me uma picareta para fazê-lo. Desde a morte de nosso pai, o acordo de paz fora rompido e os chakoyas estavam dispostos a atacar Svargrond. Eles se multiplicavam rapidamente, e alguns deles possuíam habilidades mágicas, então não poderíamos nos levar apenas pelas aparências.
A cada local marcado que eu quebrava, surgiam algumas dessas fofas, porém perigosas criaturas. Eles eram imunes aos poderes de gelo que eu tinha, então tive que apelar para as magias arcanas — simplesmente atirei bolas de fogo e rajadas de energia sobre eles, impedindo-os de me ferir. Quando cumpri com meu dever, falei com meu irmão novamente, e foi sua esposa Silfind que requisitou meus serviços.
Ela queria que eu buscasse algumas formigas especiais no Porto Esperança, no mesmo continente de Ankrahmun, a fim de sabotar os planos de alguns piratas. Eu prometi que faria o que me pedira. Contudo, não o fiz de imediato, pois tinha que ir a outro lugar em busca de respostas.
Hjaern, assim como eu,acreditava que minha mãe era uma druidisa, e que estaria viva em algum lugar... Talvez ela tivesse ido se juntar aos outros renegados e foras da lei de nossa terra, em um local que Sirio Snow conhecia bem: Baía da Liberdade. Preparei meus equipamentos e segui viagem. Talvez eu passasse em Porto Esperança para cumprir com algumas tarefas... Mas a terra dos piratas e escravos da cana me parecia o local perfeito para iniciar a fase mais agressiva de minha busca...
Continua...