Aqui estão os textos.
O tema foi orfãos.
Spoiler: Texto 1Minha Vida em uma Fortaleza
Me chamo Djema. Hoje, completo meus dezoito anos. Sou a bibliotecária de Ashta' daramai, conhecida pelos demais humanos como Fortaleza dos Djinns Azuis, ou Marids, esses doces seres que me criaram como um deles...
Sou uma moça de cabelos lisos ruivos que batem em meus ombros. Minha pele é da cor dos botões da rosa rosada, e meus olhos são dois pares de avelãs em minhas faces sardentas. Minha boca é pequena e ligeiramente carnosa, em formato de coração. Meu nariz é ligeiramente avantajado e bem desenhado, como o de uma típica árabe. Meus braços e pernas são finos, e aparento delicada. O que não tenho em meu físico compenso com minha brilhante mente. Afinal, quem mais nesse enorme mundo conseguiu tornar-se astrólogo, cientista, alquimista, tecelão e escriba em tão pouca idade, e com tanta qualidade. Certamente, ninguém mais além de mim.
—Ora, ora, que temos aqui? — Era o sempre sorridente cozinheiro Bo'Ques quem falara, abrançando e me apertando as bochechas como se ainda fosse um bebê — Mas que beldade, nossa flor do deserto está completando dezoito anos... Estou ficando velho... — Ele se interrompeu para olhar seu livro de receitas festivas, o qual consultava em eventos de suma importância — Tenho que fazer algo especial para você... Que vai querer?
—Não sei ainda.... — Respondi evasiva — O que você achar adequado, está bom... Você é o melhor cozinheiro do mundo, sabe disso. Preciso falar com Tio Fad... Você o viu por aí?
—Bem, ele está na sacada, naquele local de sempre... — Apontou-me o Djinn cozinheiro.
Obrigada! — Respondi tascando-lhe um beijo em suas gordas e celestes bochechas.
A verdade é que eu não estava tão animada com meu aniversário como de costume. Algo me inquietava... Sombras de algo em meu passado que nunca compreendi ao certo. Fah'rahdin me disse que sempre estive com eles, e que sou uma djinn... Diferente, ainda que essa desculpa nunca me tenha convencido de verdade. Olho para meus familiares e vejo o quanto são nítidas as diferenças entre eu e eles — e não é só a cor da pele que chama a atenção.
Nunca tive os dons para magia, a habilidade de dormir em lamparinas e o porte físico de um Djinn. Sempre li a respeito de meus parentes, sobre suas características, história e comportamentos, e em nada me assemelho a eles. Sempre quis indagar a meu pai Gabel acerca de minhas origens, mas nunca tive coragem. Em se tratando de minha timidez natural e de nutrir um grande respeito pelo meu pai e rei, sou tão Djinn quanto Bo'Ques ou Fah'rahdin.
Finalmente eu tinha chegado a uma idade em que teria minha voz reconhecida... Não mais como a filha de Gabel, mas como um indivíduo amadurecido e que precisava saber da verdade. A questão era: como iria indagar a meu pai sobre tudo isso que me inquietava há tanto tempo sem ferir seus sentimentos? Eu não estava pronta para encará-lo sem antes falar com tio Fad. Por isso fui até seu recinto predileto: o balcão de mármore de Ashta'daramai.
Meu tio estava recostado na sacada, fitando a montanha à sua frente com um olhar perdido. Certamente estava revivendo os dias de glória em que combatia junto a Malor, o senhor dos Djinns Verdes, “traidores de sua própria gente, rebeldes sem causa” segundo meu querido tio.
—Sinto que há algo que te inquieta, querida Djema — Ele disse virando-se lentamente em minha direção — , e sei que não se trata da passagem dos anos. — Ele pousou suavemente seu dedo indicador esquerdo em minha face, acariciando-a — O que se passa em sua mente, minha doce flor?
—Sei que sou diferente de vocês. — Disse-lhe sem rodeios e com os olhos quase que marejados— Bem diferente, não há dúvida. Todos os dias em que me vejo no espelho, sei que não sou uma de vocês no que diz respeito ao físico...
—Mas você é uma de nós! — Replicou meu tio com uma doçura indescritível, ainda que houvesse lágrimas em seus olhos — O que te faz pensar o contrário?
—Tudo, meu tio — Respodi-lhe com leves lágrimas escorrendo por minhas faces — Desde minhas feições aos meus mais íntimos pensamentos. Não possuo essa bela pele azul que vocês ostentam, nem a habilidade de converter-me em vapor e dormir em lamparinas, tampouco dons para a magia, por mais que tenha me esforçado ao longo dos anos... — Deixei meu tio usar seu dedo para limpar-me as lágrimas — Quero respostas, meu tio. Respostas tuas e de meu pai Gabel. — Ele me fitava com os olhos negros e de traços arábicos muito arregalados, em sinal de grande surpresa — Quero saber... Quem sou eu? De onde vim? Quem são... Ou eram... Meus pais biológicos?
Vi meu tio tremer em sua base, com todo o perdão de meu trocadilho. Ele empalideceu rapidamente, e seu semblante tornou-se triste e pesaroso.
—Cedo ou tarde, esse dia chegaria — Disse-me o general dos Marid com tom de tristeza — Sabia que não poderíamos ocultar a verdade de você, doce Djema... — Ele virou o rosto para fitar uma flor amarela que havia na sacada — Eu havia dito a Gabel que deveríamos ter-lhe contado a verdade, mas você era tão pequena.... Seria muita maldade nossa...
—Eu preciso saber, tio Fad! — Exclamei chateada — Dói muito ver que sou tão diferente, e que me iludem dizendo que sou sua semelhante! Não estou dizendo que não os amo... Mas digo que me falta algo.... — enrelacei meus dedos em sinal de súplica — Esse é o presente que quero de aniversário: a verdade sobre meu passado. Você pode me conceder esse desejo, querido tio?
—Está bem, está bem... — Disse-me meu tio com um suspiro — Minha flor do deserto, seu desejo é uma ordem... Contudo,não ouvirá de minha boca a verdade: ela será dita por Gabel, seu pai.
Assenti e segui-o até os andares superiores da fortaleza; sentia meu coração disparar à medida em que subíamos as escadarias de mármore e arenito. Meu pai estava sentado em seu majestoso divã, com uma expressão de triste alegria. Era um ser onisciente o meu pai. Creio que ele ouvira minha conversa com Tio Fad, pois me olhava com uma expressão tão tristonha.
—Perdão, querida filha — Disse-me ao se levantar de seu divã — Perdão por não ter-lhe dito a verdade... Nunca quis que você se sentisse marginalizada. — Ele sinalizou para que Fah'rahdin saísse e para que eu me sentasse ao seu lado — Sabe, desde que Malor fundou Mal'oulquah e abandonou a mim e Fah'rahdin... Você foi a melhor coisa que nos aconteceu... Te havíamos encontrado no deserto, abandonada à sua própria sorte, exposta ao implacável sol de Darama... Eu e Fah'rahdin não resistimos à doçura de seu olhar, e pela graça de Darama decidimos que você deveria viver entre nossa gente como uma de nós.
—Mas... — Indaguei-lhe com timidez — Você não viu meus pais?
—Em parte alguma — Afirmou meu pai com um negativo movimento de sua cabeça — Não quero julgá-los sem ao menos conhecer, mas suponho que eram nômades que foram atacados durante a travessia do deserto... Ou então eram habitantes de uma das cidades desse continente que, por alguma razão que desconheço — talvez falta de dinheiro ou de estabilidade emocional — te deixaram para morrer sem que houvesse efeitos colaterais dessa atitude... — Ele fitou meus olhos — Creio que você seja uma nômade... Seu olhar mostra um desejo de liberdade e de descobertas inerentes a esse povo. Sei que deve ser horrível passar uma vida toda sendo diferente... Lamento por não ter-lhe contado a verdade antes...
—Obrigada, paizinho — Disse a Gabel, abraçando-o — Sabe, ainda sinto que falta algo... Ao menos você me deu um ponto de partida para buscar... Talvez eles já tenham morrido, mas posso saber mais sobre os nômades... — Sorri timidamente para meu pai — Você me acha parecida com alguma delas?
—De modo algum... — Ele me disse com um sorriso melindroso — Você é mais bela e inteligente que elas... — Ele me abraçou — Feliz aniversário, meu doce amor. — Ele me deu uma leve cutucada nas costas a fim de que eu me levantasse — Vá se arrumar, meu bem. Logo será a hora de jantar. Certamente, nosso amado cozinheiro terá preparado algo excelente.
Com toda a certeza, ele assim o terá feito. Bo'Ques tinha, tem e sempre terá mãos abençoadas. Fui até meus aposentos para me arrumar. Meu nome é Djema, bibliotecária de Ashta'daramai. Uma nômade abençoada por Daraman. Princesa dos Djinns azuis, e uma eterna cigana em busca de suas raízes.
Spoiler: Texto 2Circenses
Eu olhei para Anne, a única menina de nosso grupo. Seu rosto e seus cabelos outrora loiros, estavam agora escuros de imundície. Ela e os faqueiros, Bert e Jon, haviam acabado seu número e agora voltavam para o barraco; olhar para eles não era lá muito agradável. Todos tinham aparência de maus tratos, fundas olheiras no rosto e hematomas em diversos estados de cicatrização pelo corpo. Nem mesmo a garota era poupada da violência.
— Você tinha que ter visto o nosso número, Edd! — Disse Anne alegremente para mim quando entrou em nosso barraco improvisado. Era impressionante como conseguia aparentar estar feliz, apesar de tudo.
— Bert quase assassinou a Anne. — Disse um dos faqueiros, Jon, em tom irônico.
— Bobagem, só errei o arremesso por alguns centímetros. Os piratas gostaram. — Respondeu Bert, referindo-se aos piratas de Nargor, nosso público atual. Nargor era um porto clandestino e sem leis, local perfeito para o nosso grupo, que só atuava no submundo.
— Estou com fome. — Continuou a garota. — Não comi quase nada hoje. Mas com certeza ganharemos pão por termos nos saído bem! Quem sabe até um pouco de carne. — Era impressionante como ela poderia ser otimista. Eu duvidava que receberíamos mais do que algumas migalhas velhas.
Nós fazíamos parte de um grupo "circense", por assim dizer, e todos tínhamos uma coisa em comum. Éramos todos órfãos de guerra e não tínhamos ninguém, a não ser a nós mesmos. Eu cheguei a viver alguns anos na presença de meus pais, mas quando a guerra caiu sobre Carlin, perdi ambos. A maioria de nós costumava viver nas ruas, mendingando, até o dia em que aquele homem nos recrutara em seu grupo. Naquele dia, pensei que minha vida melhoraria, mas o que se seguiram após isso foram anos que prefiro esquecer.
O dono do circo entrou no barraco logo em seguida, precedido por sua enorme barriga. Era um homem grotesco, careca, obeso. Possuía um olhar malicioso, e carregava sempre um chicote nas mãos. Ele nunca havia nos dito seu nome, mas nós o chamávamos de Cócegas, devido ao fato de ele gostar de nos presentear com generosas e prazerosas doses de seu chicote.
— Por favor, senhor, estou com fome. — Anne foi logo pedindo, em tom de súplica. Teria sido mais sábio ficar calada, mas, em sua inocência, sempre acreditava no melhor das pessoas. A resposta do dono do circo foi um gesto totalmente odioso.
Chutou a barriga da garota, fazendo-a dobrar-se de quatro, ofegando. Lágrimas começaram a cair de seus olhos, e de sua boca nada mais saiu, exceto gemidos de agonia. Quando vi aquilo, a raiva subiu-me a cabeça, embora não tivesse ficado de todo surpreso com o gesto. Aquele gordo era um completo covarde e imbecil, e estava ficando cada vez pior.
— Fica quieta, sua burrinha. — Disse ele, com um tom de desprezo. — Se continuar falando, fica sem comer hoje e amanhã também.
Eu sempre achei que aquele obeso ficava por demais a vontade perto da gente. Todos os órfãos o odiavam, e logo alguém poderia se exaltar e acabar causando um acidente. A única coisa que assegurava a odiosa vida do Cócegas era o medo que os órfãos sentiam dele. Eu tinha certa experiência em lutas contra humanos, da época em que perdi meus pais na guerra de Carlin, e adoraria enfiar uma lança por entre as entranhas inchadas daquele verme.
— Seu imbecil! Dê-me uma lança e eu enfio ela em sua pança gigantesca antes que você tenha tempo de dizer "socorro". — Disparei para o dono do circo, quando vi o que ele havia feito à Anne.
Eu era o único com coragem para desafiar o Cócegas, e toda vez que o fazia, o homem ficava estupefato, mas também com medo. Bem sabia ele que eu poderia matá-lo numa luta justa. Ele tinha sempre dois capangas que viviam o tempo todo ao seu lado, mas naquele dia eles haviam saído para resolver alguns negócios com os piratas. Ele estava sozinho. Eu poderia matá-lo, mas nós tínhamos idéia melhor. Eu e alguns dos outros órfãos mais velhos, incluindo os faqueiros Bert e Jon, tínhamos um plano para aquela tarde.
O homem ficou furioso com minha provocação, como sempre. Seu rosto ficou vermelho como um pimentão, e ele me respondeu fazendo-me experimentar o gosto de seu chicote, que não fazia apenas cócegas. Seu toque em meu rosto foi como uma língua de fogo queimando minha bochecha. Doeu terrivelmente, e um filete de sangue começou a empapar minha cara. No entanto, não gritei, e permaneci encarando-o, com desprezo. Ele não tinha coragem de me matar. Ladrava, mas não mordia.
— Está na hora da sua parte. Va se apresentar, se não quiser morrer. E não tem janta para você hoje a noite. Vocês não tem ninguém, seus moleques, ninguém para virem te socorrer caso lhes aconteça alguma coisa, esqueceram? Por isso, seria bom mostrarem um pouco de respeito.—Disse o Cócegas com voz trêmula, controlando sua raiva.
Ele adorava lembrar a todos que não tínhamos família. Era seu passatempo preferido, depois das chicotadas. Fazia-me lembrar de minha casa às chamas, enquanto eu fugia disparado, para longe daquela loucura de batalha. Salvava minha vida, dando em troca a vida de meus pais, que ficaram para defender a cidade; defender a mim...
Eu dei de ombros, e fui fazer o que havia me sido ordenado. Não tinha sentido continuar brigando agora. Ao sair do barracão, vi uma arena com arquibancadas em volta, e dirigi-me para ela por um grande portão de ferro. Ao entrar, vi um tosco escudo de cobre e uma lança à um canto, meus instrumentos de trabalho. Equipei-os, e avancei.
Nas arquibancadas que circundavam a arena, os piratas de Nargor faziam uma algazarra explêndida. Afinal, vieram até ali apenas para isso, os números de meus colegas foram apenas a abertura. O espetáculo principal viria agora, e eu era seu protagonista. Só por aquilo que o grupo de Cócegas era conhecido, e por isso ele não me matava. Eu era seu ganha pão. Sem mim, ele não era nada.
Haviam quatro maciços portões levadiços, construídos em intervalos regulares na arena circular. O rebuliço só piorou quando eu entrei no terraço por um dos portões, e o público começou a vaiar e xingar. No entanto, eu os ignorava. Só tinha olhos para o portão que encontrava-se no lado oposto do terraço. O que ele continha poderia significar a morte, ou mais um dia de vida.
Quando o portão finalmente se abriu, e eu vi a fera
que saltou para fora, todo o resto esvaiu-se de minha mente. Um tigre. Bem, poderia ser pior. Segurei firmemente minha lança com a mão esquerda, tenso, estudando meu oponente. O felino era a única coisa que existia no mundo, e minha sobrevivência dependia de sua morte.
O tigre me observava, rosnando. Era um animal esquálido e faminto, cheio de vestígios de maus tratos pelo corpo, mas nem por isso, menos mortal. Estava dividido entre a possibilidade de saciar sua fome e morrer por minha lança, pois sabia que a arma poderia machucá-lo. Porém, por fim acabou vencido por seu instinto de se alimentar, e saltou em minha direção, com as presas e garras à mostra, esquecendo-se de toda a cautela.
Minha resposta foi algo instintivo, um reflexo aprendido após um sem número de lutas mortais. Interpus meu escudo entre mim e o tigre, fazendo a criatura estatelar-se contra ele. Suas garras arranharam o metal, e sua força foi tamanha que quase me jogou contra o chão. Permaneci em pé por um milagre. Se caísse, com certeza seria o meu fim.
Ao menos, não decepcionaria os piratas, que decerto pagaram para ver um rapaz ser dilacerado por uma fera faminta.
Com meu escudo, empurrei o tigre para longe, e ameacei-o com a ponta da lança, para que ele não tornasse a avançar e me desse alguns momentos
para respirar. Eu tinha apenas uma chance. Lutas daquele tipo eram vencer ou morrer em um único movimento, não haviam alternativas. O tigre começou a rodear-me, seus rosnados agora mais raivosos do que nunca, e eu acompanhei seus movimentos. Por fim, ele impacientou-se e avançou novamente.
Era minha chance; observei o salto que a criatura realizou em minha direção. Voou pelos ares num gracioso movimento, mas lento, muito lento. Naqueles breves instantes, vi a brecha, e, num movimento de precisão mecânica, enfiei minha lança diretamente em seu coração desprotegido. Nem precisei fazer muita força, o impulso da fera realizou todo o serviço. Em seguida, era apenas um tigre com metade de uma lança enfiada no peito. Ele desabou no chão, e seu sangue impregnou a terra. Os piratas gritaram, mas o show havia apenas começado.
— Agora! — Berrei, para fazer-me ouvir por sobre a balbúrdia que os expectadores faziam, e apontei minha lança para o céu.
Era o sinal de nosso plano. Virei-me para o local onde Cócegas assistia o show, mas ele não estava mais lá. Então, os faqueiros já o haviam rendido. Em seguida, olhei ansiosamente para a porta por onde eu anteriormente havia entrado, esperando o momento. Poucos segundos depois, Cócegas entrou na arena, ladeado e retido pelos dois faqueiros, Bert e Jon, que seguravam grandes e afiadas adagas contra suas costas e seu pescoço.
A idéia era dar um pequeno susto nele, e soltar os tigres que ainda estavam amarrados dentro dos portões levadiços que restavam. O tamanho de suas correntes os impossiblitava de chegar até o centro, onde Cócegas estaria. Era só ele permanecer lá, e estaria a salvo. Uma brincadeira inocente.
No entanto, Cócegas estava desesperado. Seu rosto, mais branco que o leite, derramava litros de suor frio. Sua enorme pança também estava empapada, e as pernas tremiam tanto que era um milagre que ainda permanecesse de pé. Muito diferente de sua usual atitude superior e tirânica. Ele parecia murmurar algo que a princípio não pude ouvir, mas logo que chegou em minha frente, dirigiu-se a mim, num tom de súplica:
— Por favor, Edd! Você não pode estar pensando seriamente nisso. Eu te acolhi, quando você não tinha ninguém! Por favor, eu suplico! Esqueça o que eu disse hoje cedo sobre não ter comida para você hoje a noite. Você pode comer o quanto quiser, foi muito bem hoje. Mas por favor, tenha piedade!
O tom de medo na voz trêmula do homem chegava quase a dar pena, mas deliciei-me ao vê-lo implorando por sua vida para a mesma pessoa que, minutos antes, havia ameaçado de morte. Que doce ironia.
Mas, por um momento, hesitei. Estaria exagerando? Pensei em dar para trás no ultimo instante, afinal, nós poderíamos lidar com o Cócegas de outra forma. Mas então, lembrei-me dele chutando e xingando Anne mais cedo naquele dia, e de todas as vezes que sentimos a dor de seu chicote em nossas peles. Todos os órfãos passaram vidas miseráveis em suas mãos, por vezes sendo tratados como meros animais, ou pior. Lembrei-me do dia tempestuoso em que ele me achara jogado nas ruas de Carlin e me acolhera. Naquele dia, então, pensei que os deuses haviam finalmente me abençoado. Que engano. Os deuses não abençoavam ninguém.
Ao olhar para o patético homem, só restou em mim o desprezo e a raiva.
— Mesmo a rua seria melhor para se viver do que seu circo de horrores. Alguém como você não merece um pingo de clemência. — Então, com todas as forças que tinha, chutei o joelho de Cócegas. Ele berrou de dor, e, não aguentando, dobrou-se de quatro. Os piratas assistiam a tudo dando risadas e vaiando, embriagados como estavam. Para eles, aquilo só melhorava o show.
Bert e Jon traziam cordas, tal como havíamos combinado, e com elas amarramos os pés de Cócegas, mas não muito firme, de modo que ele ainda poderia levantar e locomover-se aos pulos. Em seguida, nos retiramos da arena, e abaixamos o portão levadiço. Aquele era o segundo sinal. O que se seguiu em seguida foi um episódio memorável, que insistiria em assombrar minhas memórias pelo resto de minha vida.
Os dois portões que restavam, até então intocados, foram enfim abertos. De seu interior, saíram outras duas feras famintas, muito parecidas com a anterior. Eu e os faqueiros subimos para as arquibancadas rapidamente, a fim de observar melhor, e começamos a ouvir os piratas gargalhando mais alto do que nunca.
Ao chegarmos no alto, pudemos ver claramente a arena, e meu coração pulou um compasso. Alguém havia soltado os tigres. Não era isso que eu planejara. Olhei para Bert e Jon, e vi as expressões obstinadas em suas faces ao olharem para o homem indefeso na arena lá embaixo, e enfim entendi. Foram eles que haviam desamarrado as feras. Tinham tido sua cota de humilhação pelo Cócegas, e queriam dar um fim definitivo a ele. Eu não poderia culpá-los.
Cócegas dava pulinhos desesperados pelo terraço, a fim de fugir dos tigres, que agora o observavam rosnando, esfomeados. Quando saltava, sua colossal e molenga barriga balançava para cima e para baixo, ridiculamente. Chegou a um dos portões, e começou a jogar seu próprio peso contra ele, numa tentativa inútil de arrombá-lo.
— Por favor, deixem-me sair! Por favor, alguém, eu suplico! — Mesmo com todos os barulhos, eu pude ouvi-lo berrando. Mas ninguém estava lá para ouvi-lo ou ajudá-lo. Por fim, desequilibrou-se com as cordas que amarravam seus pés, e desabou no chão, decretando, então, seu próprio fim.
As duas feras, indiferentes a tudo e a todos e movidas apenas pelo instinto, caíram sobre ele em questão de segundos, retalhando o corpo do suculento homem como se fosse um saco de trapos, seu sangue fresco jorrando aos montes. Enfim, tinham sua tão sonhada refeição. Atrevi-me a olhar para seu rosto, e a última coisa que vi, foi Cócegas olhando diretamente para mim, com uma expressão de absoluto terror nos olhos esbugalhados. Aquela visão me atormentaria para sempre, por mais que eu tentasse suprimi-la em minha mente.
Logo, não sobrou nada dele para contar história, a não ser alguns miolos espalhados, seus ossos sangrentos e uma grande poça avermelhada emporcalhando a terra. Desonroso? Não havia honra ou empatia nos piratas de Nargor, e eles gritaram mais alto do que nunca. Queriam apenas ver violência e carnificina, e conseguiram.
Eu me senti nauseado, e tinha vontade de vomitar. Foi Jon quem levantou-se, e berrou para todos:
— E isso é o que temos para hoje, pessoal! Espero que tenham gostado do espetáculo, e que recomendem nosso grupo para todos os amigos! — Anunciou ele para os expectadores.
Eu não possuía a frieza para falar daquela forma tão calma após o que havia acontecido, e afastei-me a fim de descer as arquibancadas e encontrar algum canto isolado onde pudesse vomitar. Logo cheguei no barracão, e encontrei Anne, que me observava com uma expressão apática.
— O que aconteceu? Você parece mal. Se machucou? — Perguntou a garota quando viu meu estado.
— Anne... O Cócegas... Foi embora. Estamos livres. —
Foi só o que consegui dizer, e a mentira me deixou mais enjoado ainda. Fui até um barril de água gelada, encostado a um canto no barracão, a fim de lavar o rosto.
Apesar de tudo, estávamos mesmo livres. A perspectiva da liberdade me fascinava, não era algo que eu havia experimentado com frequência. Não sabia bem o que fazer agora, quem sabe virar pirata, pilhando as Ilhas Quebradas junto com meus colegas.
Lembrei-me de meus pais, em Carlin, há séculos. O que pensariam de mim se estivessem vivos? O que pensariam os pais de todos os órfãos que integraram o grupo do Cócegas? Será que olhavam por eles, de onde quer que estivessem? Lavei o rosto, e a água gelada afastou as dúvidas de minha mente. Fosse qual fosse o destino que me esperava, só poderia ser melhor do que a vida que estava deixando para trás.
Terão até dia 04/09/2012 até as 23:59 para votarem.
É isso.
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Responder com Citação
) ficou bem clara. No mercy na carnificina e nem nas torturas dos órfãos. Deu a entender o porquê dos dois faqueiros causarem a morte do Cócegas. Os nomes foram muito bem escolhidos, inclusive do gordo pk (








