O Machado Sangrento
Essa história me foi contada por um velho que se dizia veterano de antigas batalhas, apesar de nunca ter visto ele empunhar nada mais perigoso do que um garfo. Com maestria, diga-se de passagem. Dava poderosas garfadas no prato que lhe ofereci em troca de um pouco de conversa e companhia numa manhã tediosa, em um vilarejo tedioso.
Poucos aventureiros se lembrarão desta província sem importância de Tibiasula. Alguns a chamam de A Pedra do Guarda, mas o nome correto é Rookgaard. Faz muito tempo que o encontro aconteceu, então algumas partes completarei com o que me recordo, outras com o que a lógica permite adivinhar.
Assim o velho iniciou, e falou por muito tempo:
Quando Fardos partiu, no início dos tempos, Ulman Zathroth tomou seu lugar na criação. A divindade que dera vida a tudo não estava mais ali, restando ao novo deus cuidar do que não era ainda, ou do que seria.
É preciso que se diga algo de Ulman Zathroth. Era um deus siamês, metade sábio, metade irracional. Dizem que dividiam um só coração, que pertencia a Ulman, o sábio, e um só estômago, de Zathroth, o destruidor. Conviveram durante algum tempo e construíram belas coisas, mas o apetite pelo caos corroía a parte ruim daquele deus esquizofrênico.
Tibiasula surgiu num mau momento, quando Ulman e Zathroth haviam decidido se separar e cortaram seu corpo em dois. Muitas feridas não cicatrizaram até hoje e sangram nas épocas negras, como a atual.
O nascimento de Tibiasula afastou definitivamente os irmãos, que se apaixonaram pela deusa desde que a viram pela primeira vez. Zathroth foi rejeitado e por isso guardou rancor dos dois. Tinha ciúmes do amor de Tibiasula e também de Ulman.
Fez então o que melhor sabia: destruiu Tibiasula, que se transformou nas terras de Tibia e nos mares de Sula como os conhecemos hoje, e declarou guerra a Ulman.
Ulman era melhor em criar e Zathroth, em destruir, logo ficou claro quem ganharia a disputa. Criaturas bestiais de toda sorte surgiram para ajudar o deus maligno no seu objetivo de banir qualquer sinal de Ulman de Tibia. Trolls, Minotauros, Orcs, Ciclopes tomaram forma para devastar as terras tibianas e submeter todo ser vivente a Zathroth. Se Tibiasula não fora sua em vida, pelo menos a possuiria em seu berço de morte.
Nesta época Ulman já havia criado os homens e os elfos, que lutavam bravamente para manter Tibia a salvo, mas a diferença de forças era gritante e a vitória das hordas do mal seria apenas uma questão de tempo.
Foi quando o deus sábio criou o Portal das Almas. Agora Banor, o primeiro humano e seu herói eleito para banir as criaturas de Zathroth, teria uma legião de novos guerreiros prontos para defender as terras tibianas, vindos de paragens desconhecidas e sedentos por aventura.
Como era a imagem distorcida de Ulman, o reflexo do bem num espelho deformado, Zathroth também criou seu campeão, irmão gêmeo de Banor e sumo-sacerdote demoníaco de sua religião, de nome Abraxas.
Zathroth queria vencer incontestavelmente a guerra contra Ulman e tomar o poder de toda Tibiasula. No entanto, para cada batalha vencida, quando tudo parecia decidido, sempre surgiam novos guerreiros liderados por Banor, que transformavam as pequenas vitórias das bestas em derrotas avassaladoras.
Onde Zathroth estendesse suas garras, ali estava o herói humano pronto para banir o mal e restabelecer a ordem deste mundo, arregimentando bravos guerreiros de longínquas dimensões através do portal místico.
O deus insano resolveu então forjar uma arma imbatível para definir a disputa. Naquele momento jogou toda sua sorte nesta aposta, se enfraquecendo para conquistar um trunfo evidente que desestabilizaria o equilíbrio de forças.
Para isso arrancou com as próprias mãos um pedaço de seu enorme estômago, que exposto ao ar puro de Tibiasula se transformou imediatamente numa pedra metálica dura e negra. Abatido e sem forças, ordenou que seu predileto, o demônio Abraxas, encontrasse o melhor ferreiro do continente e o incumbisse da tarefa de forjar mil machados de guerra com aquele metal que carregava sua essência divina.
Ulderek era um hábil ferreiro orc e se orgulhava da sua arte. Abraçou de bom grado a tarefa de produzir as armas místicas, trabalhando dia e noite sem descanso até criar um machado de guerra pesado e maciço, totalmente negro, que possuía a estranha característica de absorver o sangue do que cortava, se tornando mais forte e perigoso. Sua empunhadura se adaptava ao braço do guerreiro como tentáculos, envolvendo completamente a mão que o segurava. Em homenagem às suas sinistras características, Ulderek o batizou com o ameaçador nome de Machado Sangrento.
Mas não bastava uma arma formidável para definir a guerra, era preciso destruir o portal e evitar a chegada de reforços para Ulman. A batalha final seria travada em Rookgaard.
As forças do mal se agrupavam nos subterrâneos da ilha, em cavernas profundas. Exércitos de minotauros vinham pelos túneis de Mintwallin, a cidade secreta dos minotauros no continente, acompanhados de orcs e de trolls, organizados numa força desproporcional às defesas do vilarejo, formada apenas por iniciantes sem experiência ou veteranos mal equipados.
Birtfelt, o monge guardião das almas, pressentiu o perigo que corria o portal e enviou uma mensagem de ajuda ao rei Tibianus, que convocou Banor para reforçar o front de batalha.
Quando recebeu sua missão, o herói não sabia que se dirigia para o embate mais importante daquela guerra. Para ele seria apenas mais uma boa luta em terras distantes e motivo de glórias futuras. Entretanto, cumpria fielmente um ritual que sempre fazia antes de cada batalha.
O capitão Bluebear gritava no leme da embarcação que, com aqueles ventos e o mar revolto, levariam pelo menos mais dois dias para cruzarem o estreito entre o porto de Thais e Rookgaard. Mesmo assim, Banor viajava com o corpo voltado para frente na proa do navio, como se fossem chegar a qualquer momento, o mar lhe cuspindo espuma no rosto. Tinha o semblante cerrado e durante a viagem não dirigiu a palavra a nenhum dos grandes guerreiros que o acompanhavam.
Estavam no barco Polgan Bonecrusher, chefe da guarda de Carlin, com suas legendárias colegas de armas, e Joseph Kahs, da temível Guarda Vermelha de Thais, e seus comandados. Havia uma trégua branca entre os dois grupos rivais, que tinham muitos motivos para se odiarem desde a tomada de Carlin pelas amazonas.
Contudo, todos seguiriam Banor aonde ele os levasse, e no momento estavam rumando para aquela pequena vila esquecida pelos homens. A conversa rolava solta sobre armas e técnicas de combate quando o tempo escureceu e uma nuvem negra passou sobre o barco e se foi.
As forças do mal também estavam atentas aos movimentos dos aliados de Ulman.
Assim que o deus maligno soube que Banor se dirigia ao vilarejo de Rookgaard, mandou Abraxas cruzar os céus montado em Kasharak, o dragão original e pai de todos os dragões, com a missão de destruir completamente a vila e selar o destino de Tibia antes da chegada dos reforços humanos.
O demônio chegara pelo ar e destruía com o dragão Kasharak toda a resistência humana, matando e queimando os poucos bravos guerreiros que desesperadamente tentavam proteger os portões da cidade. A população indefesa assistia a um massacre com final previsível. Guerreiros sem treinamento e com parcos recursos se lançavam heroicamente em uma batalha patética para atrasar a destruição iminente.
Mas apesar de cruel e poderoso, Zathroth era também um covarde. Numa batalha que já estava ganha pelas forças do mal, ainda assim preferiu atrasar o ataque iminente e instruiu Ulderek para levar os machados de guerra pelos túneis de Mintwallin e distribuir a poderosa arma entre as falanges verdes, que aguardavam para atacar em conjunto com as outras bestas.
As armas terríveis chegaram com o cair da tarde do terceiro dia, juntamente com o desembarque da valente guarnição de Banor, que logo fez frente a Kasharak e Abraxas. Chegaram em boa hora, pois a cidade já havia sido invadida e o templo só não caíra porque Birtfelt o defendia com ajuda de Hyacinth, invocando encantamentos e todas as criaturas da natureza para atrasarem o inevitável. Os novos reforços de Banor foram saudados com alegria, mas os heróis eram poucos para resistir à invasão maciça que se anunciava.
Tudo parecia perdido para os humanos, então os Machados Sangrentos cobraram seu preço. Quando todos os orcs já estavam equipados com as poderosas lâminas negras e esperavam o momento certo do ataque, as armas se enroscaram nos braços dos assustados guerreiros orcs, que sentiam suas mãos queimarem e a alma gelar. O metal arcano pulsava em conjunto com o coração de quem as empunhava e adquiria um tom cada vez mais avermelhado. A lâmina tinha necessidade urgente de sangue, de qualquer sangue.
O terror tomou conta das falanges verdes. Em desespero, sem poder se livrar dos machados, os orcs começaram uma alucinada batalha entre si, comandados pelas armas mágicas cada vez mais rubras, que sedentas de morte retalhavam a própria tropa de orcs, numa dança macabra de carne, vísceras e gritos de dor. Não pareciam mais as peças de guerra forjadas pelo ferreiro, adquiriram veios vermelhos saltados e suas empunhaduras tomavam todo o braço dos soldados. Eram criaturas vivas de pesadelo sugando a energia de quem as tocasse.
Neste momento, Ulderek fez a única coisa que podia fazer. Sendo ele próprio também um guerreiro, levantou seu martelo de batalha, rodando por cima de sua cabeça, e assim decepava membros de seus companheiros numa tentativa desesperada de livrá-los da sinistra arma de Zathroth. Braços e pernas voavam e caíam ainda latejando no chão, em conjunto com aquelas entidades malignas, que continuavam a beber do sangue que lavava o piso das cavernas subterrâneas.
Ulderek era um orc enorme e muito hábil com seu instrumento. Fora general nas Guerras Orientais, onde garantiu a vitória de seu povo na Fortaleza da Rocha. O lugar passou a se chamar Rocha de Ulderek em sua homenagem, pois foi ele quem cravou eternamente na pedra o bastião inexpugnável dos orcs.
Graças à sua experiência, salvou muitos orcs da morte certa naquela noite amaldiçoada em Rookgaard. Aleijados mas vivos, agradeciam aos deuses a melhor sorte que seus companheiros que jaziam no chão, abatidos pelos poderosos golpes de Ulderek, os crânios esfacelados e os ossos expostos.
Com a grande confusão entre os orcs e sem o seu apoio, minotauros e trolls não ousaram enfrentar Banor, as ferozes amazonas de Carlin e a Guarda Vermelha de Thais. As linhas inimigas recuavam deixando um rastro de sangue. Entre as tropas aliadas, muitos nobres guerreiros morreram nesta balhata, que foi a mãe de todas as batalhas pelo domínio das terras tibianas.
A amazona Polgan Bonecrusher deixou uma pilha de corpos sem vida antes de cair na ponta de uma lança envenenada, e dizem que foi o guerreiro Kendram Benson quem, abatido de morte, desferiu o golpe final que derrubou a besta Kasharak.
Banor lutou uma boa luta contra Kasharak e Abraxas e, como é comum aos heróis, não deu grande valor à mais importante vitória de sua vida. Mas esta é uma outra história. Basta saber que, como punição à traição de Kasharak, Ulman criou um poderoso selo que impede até hoje os dragões de voarem, apesar das formidáveis asas.
No entanto, a maior penitência foi reservada ao orgulhoso Ulderek.
Diante de uma pilha de braços decepados e corpos mortos de seus companheiros orcs, fez imensa fogueira para queimar aquelas armas demoníacas, que levavam um pedaço do insaciável estômago de Zathroth.
Horrorizado com o que acabara de fazer, matando e mutilando seus próprios irmãos, resolve rasgar os olhos com uma faca, para nunca mais ver o mundo nem encarar o produto macabro de sua criação, envergonhado de cruzar novamente a vista com qualquer outro de seu povo.
O vento soprava forte e logo grandes labaredas se formaram, iluminando a figura minúscula de Ulderek de joelhos, um gigante transtornado e cego chorando sangue. Chamas colossais e uma fumaça espessa se elevaram até o firmamento, o que espalhou o cheiro terrível da carne queimada e chamou a atenção dos deuses.
Compadecidos do sofrimento do grande guerreiro orc, transformaram a alma de cada um dos chacinados naquela noite brutal em uma estrela no céu, formando assim a Constelação de Ulderek, que ainda hoje pode ser vista quando os dois sóis tibianos se alinham perfeitamente atrás de Tibiasula.
Neste dia os lobos não uivam, as ondas não quebram na praia, a noite é tão escura e densa que pode ser tocada com as mãos, e o ferreiro cego é assaltado por lembranças amargas no alto da montanha onde decidiu se isolar de tudo e de todos, no pequeno vilarejo de sua desgraça. Olhando o vazio, grita para ouvidos mortos:
ORC BUTA BANA.
BUTA BANA.
O velho estava em transe. ORC BUTA BANA... repetiu algumas vezes, antes de cair em si e perceber que eu o estava olhando, meio divertido.
_Até hoje o Machado Sangrento continua aqui_ disse ele_, nesta pequena ilha. Ninguém sabe ao certo, mas a fonte de todo o mal está neste lugar, onde começamos nossa jornada.
Bebi minha caneca de vinho e nada falei. Como a refeição estava no fim, decidi ser simpático:
_Como é seu nome, nobre andarilho?
O velho riu um riso amargo:
_A pergunta correta deveria ser como diabos eu sei de tudo isso que lhe relatei, mas ninguém mais sabe fazer os questionamentos certos.
E continuou num monólogo, como se recitasse um mantra ancestral:
_Somente as coisas óbvias parecem atrair a atenção das pessoas e distraí-las de outras que, em situação diversa, seriam absolutamente evidentes.
Decidido a deixar a estalagem naquele momento, agradeceu a refeição e, já na porta, ainda teve tempo de responder:
_Meus inimigos costumavam me chamar de Cavaleiro do Pesadelo. Meus amigos não precisam me chamar, porque estou sempre por perto.
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