O Arauto do Expurgo
Capítulo IX
Lucina
Myra estava deitada na cama, coberta por um enorme e grosso lençol. O quarto da garota era amplo, bem arejado e iluminado. Nas paredes, grandes prateleiras sustentavam bonecas e alguns livros. Todos os objetos possuíam cores suaves, característica que criava uma enorme sensação de tranqüilidade no ambiente.
Lucina foi até uma das janelas e abriu a cortina. Deteve-se a observar o grande e belo jardim, onde Jean tinha passeado com Serena alguns minutos atrás.
– Todos estão preocupados, Myra – começou Jean, sentado na borda da cama. – Eu soube que você não quer descer para a festa. Está tudo bem?
A menina se encolheu, afundando sua cabeça no travesseiro macio. Parecia prestes a chorar ou gritar, mas nada fez.
– Acho que ela não quer conversar com você – disse Lucina, em tom de deboche, ainda observando o vasto jardim. – Eu já imagino por que... Myra contou que você matou um homem.
– Matei sim, Lucina... E foi mais de um. Matei os homens que raptaram sua irmã – respondeu Jean, tentando manter a calma. – Eu não tive escolha – completou.
Lucina virou-se e olhou fixamente para Jean. Seus olhos castanhos claros demonstravam desprezo e suas finas sobrancelhas levantadas evidenciavam ainda mais sua expressão facial duvidosa. O homem não desviou o olhar e, enquanto os dois se encaravam, Myra finalmente se pronunciou:
– Vincent...
– Você matou Vincent – completou Lucina. – Quando Myra chegou, há três dias atrás, ela estava muito abalada e me contou que você tinha matado um homem que encontraram no deserto.
– Estresse pós-traumático. Sua irmã passou por uma situação difícil...
– Vá para o inferno! Você acha que eu sou idiota? – berrou Lucina. – Você pode fazer o que quiser, Palladino. Pode omitir essa informação de todos e ser o herói da história, mas ouça bem o que eu te digo, não subestime minha inteligência.
– Crianças inventam histórias o tempo todo. Myra é uma garota frágil, tanto fisicamente quanto psicologicamente. Convenhamos que seja compreensível o fato...
Jean não conseguiu terminar sua frase, pois Lucina, em um ímpeto repentino, tinha arremessado um candelabro de prata em sua cabeça. O homem caiu no chão, mais uma vez gritando de dor, e o sangue quente escorreu rapidamente em sua testa.
– DEUS! VOCÊ É LOUCA?! – gritou, com os olhos fechados, tateando a procura de algum objeto para se apoiar. – Primeiro o cigarro e agora isso...
Lucina agiu rapidamente, furtando a arma que Jean levava na cintura e empurrando o homem de volta ao chão com seu pé direito. De maneira desajeitada, recuou alguns passos, apontou o objeto para o rosto dele e ameaçou:
– Não se mova!
Myra sentou na cama, assustada com a ferocidade da irmã, e passou a fitar Jean com um misto de medo e compaixão. A garota vestia uma fina camisola branca e tinha os cabelos muito bagunçados, parecia não ter saído do quarto há bastante tempo.
– Você tem alguma doença mental? – perguntou Jean rispidamente. – Era só o que me faltava, ser rendido por garotas em uma festa do pijama... Eu já contei milhares de vezes o que aconteceu. O problema é que você não quer acreditar em mim.
– Myra não está louca... Eu acredito na minha irmã.
– O que aconteceu foi um infeliz incidente... – respondeu Jean com uma voz aborrecida, porém mais calmo. – Eu não consigo compreender sua necessidade em me culpar, Lucina.
– Por que ela não lembra de nada? – vociferou Lucina ameaçadoramente.
– Eu não sei – respondeu Jean, categoricamente.
Lucina parecia cada vez mais confusa. Virando-se para Myra, perguntou:
– Ele te ameaçou?
– Eu lembro de estar no Palácio, dormir e acordar na estrada, sendo carregada por ele – respondeu Myra, que desatou a chorar. – Foi só isso.
– Está vendo? Já foi comprovado que os raptores utilizaram algum tipo de medicamento que fez a sua irmã dormir por bastante tempo. Essa informação consta no relatório atual dos investigadores – argumentou Jean. – Não existe mistério, você está procurando problemas inexistentes.
– E o homem morto? Ela estava acordada, ela viu...
– Tire essa arma do meu rosto e eu te conto tudo que quiser – disse Jean, que agora estava ajoelhado, com uma voz pastosa.
O homem não esperou permissão e levantou vagarosamente, apoiado na pequena mesa onde antes se encontrava o velho castiçal de três ramificações. Lucina não o impediu, mas também não abaixou a arma. Myra foi até seu armário e voltou oferecendo uma toalha imaculadamente branca para Jean. Ele aceitou, estancou o sangue que continuava escorrendo de sua testa e agradeceu.
– E o homem morto? – repetiu Lucina, com um olhar desconfiado. – Quem é Vincent e por que você o matou?
Myra apenas observava, olhando de um para o outro. Temia que algo grave acontecesse e não sabia se poderia confiar em Jean. Sentou-se, encostada na cabeceira da cama, rezando para que alguém aparecesse e acabasse com aquela confusão.
Jean apenas olhava para o candelabro estirado no chão. O objeto estava salpicado de sangue e reluzia tristemente em seu fulgor mortificado. A toalha cobria metade da face do homem, enquanto a outra parte do rosto mantinha uma expressão torturada e pensativa. Talvez estivesse esperando o momento certo para contra-atacar.
– Por que você carrega essa arma para todo lado? – interrogou Lucina, modificando sua pergunta. A mulher não sabia se estava tentando arrancar informações ou se simplesmente queria manter o homem falando, pois a situação era perigosa e o silêncio tinha se tornado deveras sufocante.
– Proteção. Eu sou um viajante, passo por todo tipo de situação de risco. Acabei me acostumando a sempre estar preparado para situações adversas – respondeu Jean, prontamente, pois já esperava essa pergunta. – Nunca se sabe quando vão atirar algo em sua cabeça, não é mesmo? – brincou, forçando um sorriso amarelo.
Lucina não riu e continuou o interrogatório:
– Você não é cidadão de Agkar. Como ficou sabendo do seqüestro tão rápido?
– A noticia se espalhou rapidamente. Os guardas começaram a comentar que a garota tinha sumido e não demorou muito para toda a população ficar sabendo.
– Eu acho que você tem informações demais para um simples viajante.
– E eu acho que você está exagerando com essa brincadeira – falou Jean, em tom sério, porém suave. – Olhe em volta, você é a única que desconfia de mim. Está sendo neurótica. Devolva a minha arma, antes que aconteça algum acidente.
– Você não está em posição de impor nada, Palladino – replicou Lucina, que parecia saber usar uma arma de fogo, apesar de tremer a mão constantemente.
– Por que você acha isso?
– Você matou um homem. Esse crime não tem perdão.
– PROVE QUE MATEI! – bradou Jean ameaçadoramente, não conseguindo conter seu temperamento explosivo.
Myra mais uma vez se encolheu, sentindo o clima pesado do aposento. Cobriu-se com a coberta e desejou estar em qualquer outro lugar.
– Você está assustando a garota – disse Lucina.
– Você começou com tudo isso! – replicou Jean espontaneamente, fazendo uma careta involuntária. – Eu só vim ver como Myra estava.
– Ela está com medo de você. Acho que já deu para notar, não é? – comentou Lucina em tom de ironia. – Tudo em você soa falso e incorreto, Palladino. Agora me conte por que matou Vincent e prove que merece a hospitalidade de Agkar.
– Essa conversa está dando voltas... Desse jeito, não vamos chegar a lugar nenhum. – comentou Jean, com a voz embargada e levemente rouca.
O homem puxou uma cadeira, jogou o pano sujo de sangue em cima da pequena mesa e se sentou. Seus movimentes foram rápidos e violentos, o que fez Lucina emitir um pequeno grito agudo e recuar bruscamente. Olhando seu próprio rosto, em um grande espelho, ele concluiu auspiciosamente:
– Se eu tiver sorte, a cicatriz será pequena.
Lucina atirou no teto e todos se sobressaltaram.
– Pare de brincar comigo – gritou ela. – Por que não me leva a sério? Eu quero respostas!
Jean encarou a mulher por alguns segundos, hipnotizado com o leve balançar dos seus longos e brilhantes cabelos loiros. Logo em seguida, levantou e sorriu.
– Antes desse tiro você poderia ser considerada uma grande ameaça, Lucina – ponderou Jean, indo na direção da mulher em largas passadas. – Mas agora, não passa de uma bela jovem com uma arma descarregada.
Desesperada, Lucina tentou atirar no peito de Jean. Entretanto, tudo que se ouviu foram cliques repetitivos.
– Não se preocupe – disse Jean, agora muito próximo dela, falando na distância de um beijo. – Eu sou piedoso – e sorriu com uma expressão vitoriosa.
Afastou-se da mulher e foi na direção de sua pequena irmã. Myra relutou em sair debaixo das cobertas, mas acabou cedendo.
– Eu preciso ir agora, querida. Digamos que não estou mais no clima de festa – falou ele, tão baixo que só ela podia ouvir, apesar de Lucina estar a apenas dois metros de distância. – Me perdoe por essa terrível cena que você presenciou.
Myra o abraçou, em estado de perplexa confusão, e chorou dolorosamente. Jean não demorou muito para se desvencilhar da garota e ir em direção a porta. Antes de sair, falou:
– Ele era um homem amaldiçoado, tanto quanto eu já fui. Acredito que fiz o certo... É uma história complicada, vocês não iriam entender.
E saiu do quarto, deixando as duas irmãs sozinhas. Myra soluçava e Lucina ainda segurava a arma, tremendo de raiva e frustração.
Publicidade:
Jogue Tibia sem mensalidades!
Taleon Online - Otserv apoiado pelo TibiaBR.
https://taleon.online







Curtir: 


Responder com Citação




