@ Izan
Muuito obrigado pelo comentário!

É sempre bom receber incentivos do pessoal que já é bem mais antigo na seção.
Obrigado mesmo!
@Joxkyz
Obrigado pelo excelente comentário!
"Baía da Liberdade" ficou muito estranho, e na verdade tinha traduzido mais pra ver a reação das pessoas mesmo. Mas você mesmo citou, e eu também achei estranho, então reverti à Liberty Bay, como está no prólogo.
Enfim, muito obrigado por acompanhar essa história desde o começo, obrigado mesmo.
Capítulo IV - Despertar
Acorde, menina, ande logo. Ou será que prefere dormir o sono eterno?
Sara acordou. O mundo revelou-se novamente para ela quando abriu os olhos. Ver novamente o sol da manhã entrando pelas janelas de seu quarto a fez sentir-se imensamente aliviada, havia pensado que jamais escaparia novamente de sua prisão mental. O último pesadelo fora particularmente terrível.
Normalmente, a sombra que encobria o mundo causava-lhe tal temor que ela era obrigada a acordar... Mas não daquela vez. O nome dele, e os acontecimentos que sucederam ao mundo após a sua chegada ecoavam como lembranças em sua mente, mesmo agora que já estava acordada, mas não conseguia recordá-los com detalhes de modo algum, mesmo que tentasse.
Àquele sonho, haviam se seguido vários outros, sobre várias partes do mundo, das quais ela só ouvira falar em história. Chegou a sonhar com seu irmão Will, e o que ela viu não a agradou. Primeiro o viu estatelado numa floresta escura, com as mãos e os pés atados. Depois, voltou a sonhar, desta vez o irmão se encontrava num jantar com um grupo de pessoas desconhecidas a ela, e com
ogros. Libertários, era o nome deles. Ela ouvira isso no sonho.
Besteira, o Will está bem. Só estou preocupada porque ele foi em uma missão longe daqui, só isso. Mesmo agora, ela não acreditava realmente que seus sonhos tivessem algum significado importante. Havia apenas imaginado tudo aquilo.
— Jacques! — Gritou Sara, de repente. Estava sozinha em seu quarto, e já havia ficado sozinha tempo demais. Queria sair de casa.
Poucos segundos depois, alguém abriu a porta, e um homem entrou desajeitadamente na sala. Ao vê-la acordada, ele fez uma expressão de intenso alívio, e em seguida sorriu alegremente. Sara surpreendeu-se ao vê-lo daquele modo. Não era comum que seu mordomo sorrisse daquela forma.
— Senhorita Sara! Graças aos deuses! Cheguei a temer que... — Mas então o homem reverteu à sua postura e comportamento habituais. Cruzou os braços atrás das costas e fez uma expressão cômica de censura. Uma atitude mais própria para alguém que se vestia de terno e sobretudo, mesmo à luz do dia e com um calor de rachar.
— Perdoe-me, senhorita. Exaltei-me demais ao vê-la finalmente acordada.
— Relaxe, Jacques. Você é muito duro consigo mesmo. Meu pai está em casa? — Ela já sabia a resposta para aquela pergunta, mas a fez mesmo assim.
— Receio que não. O Sr. Benson anda muito ocupado ultimamente, cheio de negócios em Darashia e Ankrahmun.
— Ah, é, ocupado. Que seja. — Então lembrou-se da pergunta crucial que queria fazer. — Jacques, a quanto tempo estou dormindo? — O mordomo fez uma expressão desconfortável.
— Senhorita, sobre isso...
— Quanto tempo, Jacques?
— Três dias, senhorita. Tivemos que alimentá-la a força enquanto dormia. As criadas tiveram que banhá-la em água fria e mesmo assim não acordou. Receei que a vida tivesse se esvaído de seu corpo, e o coração continuado a bater por pura força do hábito. Uma tolice, obviamente, mas fiquei terrivelmente preocupado.
Três dias. Perdera completamente a noção do tempo enquanto viajava por seu mundo de pesadelos. Dormir tanto tempo assim não era natural, Sara pôde ver o desconforto no rosto de Jacques quando o perguntou. Era como se achasse que ela não estava nada bem, mas não queria dizer para não assustá-la. Aquilo a irritou. Já não era mais uma criança, e se havia algo errado com ela, tinha o direito de saber.
— Jacques, eu tenho alguma doença? Não minta para mim, por favor. Eu saberei se o fizer, te conheço muito bem.
O mordomo fez uma expressão chocada.
— É claro que não, senhorita. Você está perfeitamente saudável. Como disse, fiquei preocupado e pensei tolices demais. O que aconteceu foi... passado, e não devemos ficar pensando muito nisso. A senhorita está tão boa como sempre esteve. — E então o homem fechou a cara, e nada mais disse. Sua expressão não dizia absolutamente nada sobre o que ele estava pensando. Sara odiava quando ele fazia aquilo.
— Estou confiando em você, Jacques. Ah, sim, me lembrei do porque te chamei. Já fiquei trancada tempo demais aqui. Quero sair e ver a cidade.
Mas não disse o real motivo de querer tanto sair de casa, mais especificamente de seu quarto. Ele agora a trazia más lembranças, recordações de um mundo terrível e desolado, que se abria para ela toda vez que encostava a cabeça no travesseiro à noite, e se entregava ao cansaço.
— Imediatamente, senhorita. Gostaria que eu fosse com você? Sabe, para sua própria segurança. A cidade anda muito violenta ultimamente.
— Se é realmente necessário... Acho que posso me defender sozinha, mas tudo bem. — Sara pulou da cama imediatamente. — Espere apenas eu me arrumar e trocar de roupa. — Passou as mãos por seus cabelos louros. Normalmente muito lisos, estavam agora completamente embaraçados. — Vai demorar um pouco.
— Não há problemas. Esperarei na porta da frente. Desça quando estiver pronta. — Jacques deu as costas a ela e saiu do quarto.
Sara foi imediatamente tratar de se arrumar. Mudou seu vestido e penteou os cabelos, mas, mais importante, foi até um baú ricamente decorado que tinha junto à cama. Abriu-o com uma chave dourada que mantinha sempre no bolso, e observou seu interior.
Continha apenas um pequeno cajado adornado. Em uma das pontas, estava incrustada uma esfera azul clara que parecia feita de cristal, do tamanho de um punho. Sara adorava olhar para ela, e observar as pequenas nuvens que pareciam dançar dentro da esfera, como se ela abrigasse um universo próprio.
Se quisesse, poderia pedir ao papai que comprasse qualquer coisa no mundo, e ele o faria. Mas trocaria todas elas por isso. Meu maior tesouro. Em seguida, saiu do quarto e desceu as escadas até o andar de baixo. Jacques realmente a esperava junto à porta, como dissera.
Ele também carregava uma espécie de cajado, embora Sara soubesse que não era mágico como o dela. Era uma maça, e tinha incrustada em sua ponta um enorme diamante. Ela sabia que Jacques era um usuário de maças, mas jamais poderia imaginá-lo usando algo como uma clava rude e cheia de espinhos.
— Está pronta, senhora? Então vamos. Está um dia lindo. — E abriu a porta para que ela saísse.
Ao ver Liberty Bay estendendo-se à sua frente, Sara quase pode se esquecer da tormenta que passara nos últimos dias. Realmente estava um dia maravilhoso. O sol brilhava escaldante, e o céu estava completamente azul, apenas riscado vez ou outra pelos voos das gaivotas, que existiam aos montes na ilha de Vandura. Ao longe, no sul, podia até mesmo ver o grande porto, onde navios de todos os tamanhos aportavam todos os dias, vindos de todos os lugares. Como um mundo como aquele poderia abrigar qualquer mal?
Sua casa ficava em uma colina bem ao norte da cidade, de modo que ela podia ver quase toda Liberty Bay estendendo-se abaixo. Ao apertar os olhos, viu uma estranha comoção numa das ruas abaixo. Parecia estar havendo uma briga, e as pessoas se amontoavam em volta de duas figuras encapuzadas, gritando nomes. Ela puxou o sobretudo de Jacques.
— Olha, lá embaixo.
Jacques também estreitou os olhos.
— Senhorita, por favor, volte para dentro. Irei até lá e verei qual é o problema.
— Não seja ridículo, é claro que eu vou com você.
O mordomo concordou com relutância. Afinal, bem sabia ele que Sara não apenas uma menininha indefesa. — Está bem, senhorita, mas tente não se meter na confusão.
Ambos começaram a se dirigir até a fonte da comoção, num passo acelerado. Jacques ia um pouco a frente, seu sobretudo negro por pouco não arrastando na terra. Logo chegaram na pequena multidão, e ambos abriram caminho para ver quem eram as duas figuras que se encontravam no centro.
— Repetimos, realmente não havia a necessidade de tudo isso. — Gritou uma das figuras encapuzadas, para ser ouvida por sobre os gritos das pessoas. — Estávamos com sede, somos apenas viajantes que pediram um pouco de rum! Onde está a hospitalidade de sua cidade?
— Viajantes muito suspeitos, vocês! — Berrou um cidadão a plenos pulmões.
— Pode ter todo o rum que quiser desde que tenha dinheiro para pagar por ele, e não tente roubá-lo, como fizeram! Por que não tiram esses capuzes para podermos ver seus rostos? Se são realmente honestos, não tem nada a temer! — O resto da multidão gritou, concordando.
Sara e Jacques abriram caminho pelo resto das pessoas, e agora podiam ver claramente as duas pessoas que se encontravam no centro da comoção. Ambas usavam capas surradas de viagem, e seus rostos estavam completamente encobertos por capuzes. Os dois tinham espadas embainhadas na cintura.
— Não temos obrigação nenhuma de dar satisfações a você. Manteremos os rostos escondidos até termos vontade. — Um dos encapuzados irritou-se, e puxou a espada. — Deixe-nos passar, ou abriremos caminho à força.
Aquele gesto foi o suficiente para espantar a maioria das pessoas, que correram com medo das armas. Afinal, eram em sua maioria cidadãos comuns. Apenas alguns mais corajosos restaram. Foi Jacques quem falou em seguida:
— São loucos de sacarem a espada em plena rua, no meio da tarde. Esta cidade possui defensores, sabiam? Um exército. Se Percy Silverhand souber do que fizeram aqui, esperem uma punição a altura. — Àquilo, o encapuzado respondeu com um cuspe no chão.
— Por favor, vovô, não queremos machucá-lo. Apenas saia da frente e deixaremos sua cidade em paz.
— Vovô? Meus cabelos apenas começaram a branquear. E duvido que consigam passar por mim, mesmo que eu tivesse cem anos de idade e mal possuísse forças para erguer o braço.
O encapuzado soltou uma gargalhada divertida. — Que todos sejam testemunhas de que você é quem está pedindo. Alguém vai ter que limpar a sujeira do chão depois que eu tiver terminado. — E imediatamente pulou para cima do mordomo, lançando golpes sobre ele, de todas as direções.
O homem segurava a espada com ambas as mãos, desajeitadamente. Parecia imprimir mais força do que técnica em seus movimentos. Jacques parou-os todos sem esforço. Quando encontrou uma brecha, lançou uma fortíssima estocada com a ponta do cetro, diretamente contra a testa do homem. Ele caiu para trás com a força do golpe, e gritou de dor. As pessoas que restaram gritaram vivas e aplaudiram.
— Onde está sua técnica, homem? Dizem que uma espada é a arma mais elegante e mortal de todas, mas vejo que mesmo elas se tornam ineficientes nas mãos de um bruto como você. — Zombou Jacques.
O homem no chão estava furioso, e agora também envergonhado. Obrigou-se a levantar-se novamente e continuar a luta. Seus golpes se tornaram ainda mais grotescos. Seu companheiro, talvez percebendo que ele estava na pior, também sacou a espada, e estava pronto para amparar o outro na luta. Percebendo aquilo, Sara agiu rapidamente.
— Tsc tsc, eu não faria isso se fosse você.
Ergueu seu cajado e apontou-o diretamente ao peito do homem. Ele olhou para ela abobado, como se não compreendesse o perigo em que se encontrava. Da esfera azul, saiu uma rajada de algo que parecia gelo. Ao vê-la, o homem pareceu definitivamente aterrorizado, mas apenas por um segundo, antes de ser atingido em cheio por ela. Ele cambaleou para trás, mas não chegou a cair. À primeira rajada, sucedeu-se outra, e mais outra. O encapuzado ergueu sua espada em defesa, inutilmente. Não era possível se defender de magia apenas com aquilo. Por fim, desabou no chão.
Seu companheiro encontrava-se igualmente vencido, desacordado no chão. De repente, um dos cidadãos que restava deu uma gargalhada.
— Pelos deuses, o restante da cidade com certeza ficará sabendo disso! Dois homens com espadas completamente derrotados, e um deles por uma garotinha! — O restante das pessoas juntou-se às gargalhadas, e deram vivas a Jacques e Sara. Ela irritou-se ao ser chamada de garotinha, mas nada disse. Naquele contexto, era mais um elogio que uma zombaria.
— Alguém precisa retirar esse lixo do meio da rua. — Continuou o homem, e começou a empurrar os desacordados para um canto. De repente, ele parou, e parecia estar remexendo na bolsa de um dos homens. Por fim, ele retirou algo que parecia um pano imundo de dentro dela, e o ergueu, mostrando a todos. O coração de Sara parou ao vê-lo, e ela engoliu em seco.
— O que é esse trapo? — Perguntou o cidadão, com repugnância. Ninguém soube responder, nem mesmo Jacques.
Mas Sara sabia. É claro que sabia, o vira nos sonhos, inclusive os sonhos de Will... No banquete com os ogros, havia vários daqueles ao fundo da sala. Uma muralha em ruínas sobre um fundo vermelho. Até aquele momento, recusava-se a acreditar que havia realmente visto a realidade em outro lugar, e não apenas sonhado. Mas ao ver o estandarte vermelho, o choque de realidade a percorreu.
Afinal, eles eram reais, e eram perigosos. O mundo não poderia simplesmente ficar quieto enquanto os Libertários agiam na surdina. Alguém precisava alertar a todos, ou o mundo da forma que conheciam poderia estar chegando ao fim. E ela já sabia quem deveria ser esse alguém. Mas será que acreditariam nela? A dúvida a corroeu, e aquela presença apareceu novamente, no fundo de sua consciência.
Não, não ele de novo, por favor.
—
Muito bem, garotinha. — Uma gargalhada aguda e cruel ecoou em sua mente. Aquele ser sabia muito bem como ela odiava ser chamada de garotinha. —
Enfim parou de negar a verdade. É bom que você tenha medo mesmo, ou de outra forma, como alguém como eu poderia continuar habitando sua mente? — E deu outra gargalhada sinistra.
—
Muito apropriado, não é? — Continuou a criatura. —
Você desperta de seu sonho, e eu desperto em sua consciência. Mas será que somos os únicos a estarem despertando nesses tempos? Logo estarei tão... “Acordado”, que poderei até me tornar real em seu mundo! Talvez em uma semana ou duas, ou quem sabe amanhã mesmo! O que acha disso? — Ele fez uma pausa momentânea.
—
Até la, deixo-lhe um aviso. Talvez você até tenha visto em seus sonhos, mas esses aí... Esses Libertários, eles pretendem cair sobre Liberty Bay antes da próxima lua. Espero até lá já poder ver o estrago com meus próprios olhos, e não apenas com os seus. Ninguém daqui espera um ataque, e se você for uma garota esperta, avisará a todos, ou poderemos presenciar uma verdadeira carnificina. Não que alguém vá dar ouvidos a você. — Terminou com sua característica gargalhada zombeteira.
A presença se esvaiu sem deixar vestígios, tão subitamente quanto chegara.