O Arauto do Expurgo
Capítulo XIII
Cadáver
O funeral de Jean Palladino foi grandioso. Agkar inteira estava enlutada. Em uma tarde melancólica, alguns convidados importantes comprimiam-se no pequeno cemitério. O chanceler chorava silenciosamente a morte do seu novo amigo, enquanto suas filhas encaravam o túmulo com olhares perplexos, sem acreditar naquilo que estavam presenciando.
Consideravelmente distantes do caixão e das pessoas que faziam suas últimas homenagens, Jeff e Gary conversavam aos sussurros.
– Acredite no que eu estou dizendo, ele estava completamente louco... – disse o mais jovem. – Foi melhor ter se matado, provavelmente acabaria prejudicando a nós dois.
– Melhor? – grunhiu Gary, extremamente carrancudo. – Aquele idiota acabou com o plano de minha vida, espero que apodreça no inferno.
Serena passou vagarosamente pelos dois homens, coberta por um elegante vestido preto e completamente perdida em pensamentos. Seu rosto transparecia tristeza e desilusão, não chorava mais por falta de lágrimas.
– E toda essa maldita cidade sofre a perda daquele imbecil – comentou Gary, enquanto admirava a beleza da moça. – Idiotas! Continuem assim, cultuem um impostor – encerrou o soldado em tom desdenhoso.
***
A luz incomodou seus olhos, logo que foram abertos. Piscou seguidamente, sentou no chão de terra macia e alongou os braços de maneira preguiçosa.
“Estou onde queria estar... Em um lugar calmo e seguro. O acordo foi cumprido mais uma vez”, pensou Jean Palladino. Encontrava-se no vale onde desjejuou com Myra e Vincent. Ao seu lado, estava aquele mesmo rio cristalino que tinha saciado a sede do trio.
Correu suas mãos por todo o corpo. Depois, levantou-se e viu sua própria face refletida no espelho de água. Utilizava as mesmas roupas, mas não possuía ferimentos ou cicatrizes. Sentia-se incrivelmente bem, apesar da lembrança de sua morte ser tenebrosamente nítida.
Distraído, Jean lembrou da refeição que fizera na margem do rio. Era exatamente o mesmo lugar, tinha certeza. “Eu não tive oportunidade de mostrar a ele”, pensou, lembrando que era claro demais para ligar sua lanterna.
Não passou muito tempo naquele lugar, apesar de ter vontade de permanecer. Decidido em concluir uma única e última missão, novamente rumou na direção da cidade-estado Agkar.
***
Doria nunca esteve tão pacata. Desde a estranha visita do Arauto, nenhum acontecimento marcante atrapalhou a vida de seus habitantes.
Sirius, famoso guerreiro daquele vilarejo essencialmente bélico, estava aposentado desde que soube da morte de Vincent. Tinha poucos amigos e não costumava receber visitas, por isso estranhou quando bateram na sua porta em uma manhã.
– Sirius? Prazer. Meu nome é Jean – falou o visitante. Tinha deixado seus cabelos crescerem, retomando um pouco de sua antiga aparência selvagem. Além disso, cultivava uma estranha barba. – Posso entrar?
Sirius confirmou com a cabeça e analisou o homem de cima a baixo. Logo depois, escancarou a porta sem muitas mesuras. Não imaginava o que aquele sujeito queria lhe falar, mas estava levemente curioso.
Jean sentou em uma cadeira de madeira, sem notar que a mesma possuía estranhas perfurações no seu encosto. Sirius serviu chá gelado e alguns biscoitos, antes de se juntar ao visitante na pequena mesa redonda.
– Imagino que não seja uma visita de cortesia. É mais educado chegar depois do café – comentou Sirius, com um sorriso suave no rosto. – Então só posso presumir que você tem algo importante para me dizer.
– Eu estou com o corpo de Vincent.
Sirius tossiu. O guerreiro aparentava estar confuso com a notícia, mil perguntas atravessavam sua mente e tentavam sair pela boca. Jean não queria perder tempo, tinha um tom discreto de impaciência na voz quando continuou:
– Eu conheci Vincent em um deserto, não muito distante desse vilarejo. Aproximadamente trinta dias atrás, ele morreu por complicações durante nossa viagem...
– O Arauto... – começou Sirius, perplexo. Demorou alguns segundos para continuar, seu olhar mantinha-se fixo no chá. – Aquele monstro me disse que ele foi assassinado.
Não foi necessário perguntar, ficou claro que Jean era o carrasco de Vincent. Quando o silêncio tornou-se insuportável, o viajante continuou sua história:
– Ele foi inicialmente enterrado em Agkar, mas acredito que um guerreiro de Doria deve permanecer em Doria, mesmo depois de morto. Eu consegui resgatar o corpo, e acredite, foi bastante trabalhoso trazê-lo até aqui nesse curto espaço de tempo, ainda mais por que eu não tive muita ajuda...
– Onde está? – interrompeu Sirius, agora ainda mais confuso. Estava diante do assassino de um rival e amigo, valoroso guerreiro e traidor de seus ideais. Não sabia o que fazer, sentia-se embaraçado e impotente.
– No cemitério dos guerreiros, esperando um funeral digno... – sussurrou Jean. – Eu passei por lá e percebi que a morte de Vincent foi uma grande surpresa. Algumas pessoas comentaram que vocês eram grandes amigos e que apenas você acreditava na morte de Vincent. Então eles me indicaram o caminho até sua casa.
Sirius levantou-se e, mais uma vez, escancarou a porta.
– Venha comigo. O que está esperando? – reclamou, antes de sair da casa.
“Que inferno isso está sendo”, pensou Jean, enquanto seguia o guerreiro.
Correram por um pequeno trecho do vilarejo. Algumas poucas pessoas desviaram seus olhares ao ver os dois homens passarem rapidamente, mas nada disseram ou fizeram. Alguns minutos depois, já era possível ver a casa funerária e o terreno próximo, onde eram enterrados todos os habitantes da vila e – em uma área especial – os guerreiros.
Não demoraram a perceber que a notícia tinha se espalhado. Alguns guerreiros que conheciam Vincent estavam espremidos no pequeno aposento, ao redor de um escuro caixão de madeira que permanecia com a tampa levantada. O dono do estabelecimento olhava de um lado para o outro, enquanto ajeitava seus óculos que insistiam em escorregar do rosto, prevendo confusão.
– Você não vai querer ver isso – comentou um homem com feições severas, ao perceber a aproximação de Sirius.
Mas era tarde, não demorou muito para os guerreiros mais jovens abrirem espaço e deixarem o rosto pálido de Vincent a mostra. Sirius não conseguiu se conter, fraquejou ao perceber como aquilo era real e imutável, ajoelhou-se no chão e fez uma breve reza pelo amigo.
Jean esperava na porta, temendo os guerreiros de Doria. Já se arrependia de estar fazendo aquilo, correndo grande risco de ser executado.
Alguns minutos depois, Sirius levantou-se e encarou Jean com os olhos vermelhos e inquietos. Não sentia raiva ou gratidão, sua mente continuava em conflito, ocupada em retardar uma profusão de sentimentos confusos.
– Eu não queria acreditar... – falou o guerreiro.
Jean assentiu respeitosamente com um aceno de cabeça. Logo depois, pensou em ir embora, sem dizer mais nada, mas foi impedido pelas palavras do próprio Sirius:
– Para onde Vincent foi?
Jean estava com a boca seca. Seu rosto denotava consternação e sua resposta não foi agradável.
***
A choupana e a plantação de trigo formavam uma paisagem pitoresca, ainda mais naquele fim de tarde. O velho trabalhador pretendia se recolher e dormir, pois aquele tinha sido um dia especialmente cansativo.
Porém, algo desviou sua atenção repentinamente. Uma estranha criatura vinha do céu em grande velocidade. Era escura e magricela, possuía um rosto com traços finos e alguns poucos cabelos em sua nuca. Olhares desatentos considerariam que aquele era O Arauto do Expurgo, criatura cruel e temida por muitos, mas não passava de um dos seus seguidores.
Ao perceber a rápida aproximação do monstro, o homem largou a ferramenta de trabalho e correu para casa. Depois de trancar a porta desesperadamente, encolheu-se na janela, observou a criatura pousar no meio da plantação e cobrir-se com suas enormes asas podres.
Seus olhos, ao contrário do resto do corpo, não se assemelhavam aos do seu mestre, pois possuíam a mesma constituição do olho humano. Naquele momento, eles piscaram convulsivamente, como se a criatura estivesse prestes a chorar.
O monstro não possuía livre arbítrio e nem grande capacidade de raciocínio, mas algo o tinha impelido até aquele lugar. Recordações de uma outra vida, lembranças tristes e marcantes, talvez até arrependimento.
Pouco depois de o sol ter ido embora, a criatura assombrosa abriu suas asas e alçou vôo. Precisava se reunir com seus semelhantes.