O Arauto do Expurgo
Capítulo VI
Veraneio
Chão e teto estavam salpicados de sangue. Bestas horrendas figuravam no cenário vermelho vivo. As criaturas demoníacas voavam em círculos, sobre dois homens que discutiam nervosamente.
Sirius encarava Vincent com uma expressão enojada. Sem desviar o olhar do seu rival, repetia insistentemente:
– Você traiu o código de honra, Vincent. Você entende o que isso significa?
– Eu ainda tenho alguns dias... Eu posso ganhar – respondia ele com uma voz chorosa e suplicante. – Eu mereço mais uma chance, eu mereço. Já fiz muito pelo nosso povo!
– Você sabe o que deve fazer. Vá embora! – disse Sirius, finalmente mudando o seu discurso.
Vincent tentou se aproximar do amigo e pedir desculpas, mas não conseguiu. Como que empurrado por um forte vento, seu corpo foi sendo arrastado rapidamente para trás.
– Não, por favor! – gritou, em sua última tentativa desesperada, enquanto era engolido por um buraco negro e frio.
***
Vincent se debatia furiosamente, grunhindo palavras indecifráveis.
– Você enlouqueceu? – perguntou Jean, enquanto tentava acorda-lo.
As tentativas de deter o corpo de um guerreiro indomável, que se agitava sobre os restos da fogueira no pequeno acampamento, eram ineficazes.
Finalmente percebendo que tudo não passou de um pesadelo, Vincent ficou imóvel e abriu os olhos. Sobre seu corpo, e com o rosto lívido de espanto, estava o homem que ainda o segurava com toda a força que podia.
– Pode me soltar – falou arfando.
Ainda assustado, conseguiu se levantar, enquanto lembrava-se das imagens e palavras de seu sonho aterrador. Suas pernas estavam bambas, e ele provavelmente teria caído se Myra não o segurasse pelo braço, com toda a energia que aquelas mãos pequeninas podiam reunir.
– Obrigado – disse ele, passando a mão distraidamente na cabeça da garota e desfazendo ainda mais o seu penteado.
– Você está bem? – perguntou Jean, com sincera preocupação. – Está pálido e tremendo.
– Estou ótimo – respondeu, com uma voz que não parecia ser dele, e sim vinda de um lugar muito distante e sombrio.
– Você parece abalado – completou Jean, em tom definitivo.
Repentinamente, Vincent olhou para o céu e depois para a areia quente do chão. Lembrou-se de um rosto demoníaco e, por dois segundos, pôde ouvir o som áspero do bater de asas podres. Ainda mantendo os olhos fixos na substância granulosa aos seus pés, teve a certeza que os seus dois acompanhantes olhavam para ele.
Myra continuou segurando sua mão tremula por alguns minutos, temendo que Vincent não conseguisse ficar em pé por muito tempo. Levemente aborrecido com toda aquela desagradável demonstração de compaixão, obrigou-se a falar algo:
– Amanheceu... – comentou, e ficou surpreso com sua própria voz fraca e abatida.
Vincent já parecia levemente melhor. Não tão aterrorizado como antes, mas ainda confuso e atordoado, como se tivesse sido atingido por um repentino soco de sorte. Em seus sentimentos mais profundos, ainda sobravam espaço para a vergonha e o medo crescente, que ele tratou de esconder.
Jean e Myra observavam o seu comportamento, em perplexa confusão. Em um acordo silencioso, selado através do olhar, decidiram não comentar sobre o assunto.
***
Já caminhavam por várias horas, sem trocar nenhuma palavra. Jean e Myra iam à frente, lado a lado. A garota se esforçava para acompanhar os passos largos do seu salvador.
Vincent encontrava-se dois metros atrás, seguindo preguiçosamente os passos de seus companheiros de viagem. Focava sua visão no chapéu impecavelmente branco de Myra, seguro em sua mão igualmente alva. Admirando o balançar do laço rosa, amarrado na base do objeto, pensava a todo instante: “Como continua tão limpo?”.
A paisagem desértica, aos poucos, tornou-se um chão gramado de um verde deslumbrante. Aos olhos dos viajantes, a natureza finalmente parecia viva. Agora, com o sol a pino, andavam em um vasto vale, ao lado de um rio cristalino.
– Hora de parar. Estou com fome – disse Jean, de repente.
Myra parou de caminhar imediatamente, e como quem esperava por isso fazia muitas horas, deitou-se a margem do rio. Depois de um longo suspiro prazeroso, fechou os olhos e fingiu dormir.
Vincent sentou ao lado da garota e, com as pernas cruzadas, perguntou categoricamente:
– O que temos para comer?
– Quase nada – respondeu Jean de maneira seca, sentando perto dos dois e depositando um pequeno recipiente no chão de terra. – Só sobraram alguns biscoitos.
Qualquer observador diria que aquele era o piquenique mais triste que já teve o desprazer de presenciar. Vincent e Jean comiam calados, enquanto Myra conformava-se com o forte cheiro da terra e a brisa suave.
Reparando em um estranho objeto, que parecia fortemente preso ao cinto de ferro que Jean sempre usava, Vincent lembrou-se do isqueiro e sua curiosidade foi rapidamente aguçada. Aproveitando o silêncio e a calmaria de ambos, ressuscitou a discussão do dia anterior:
– O que mais você tem aí? – perguntou, fingindo pouco interesse.
– O quê? – exclamou Jean, distraído.
– Além do isqueiro, o que mais... – e parou, percebendo como aquelas perguntas pareciam ridículas. Um guerreiro de Doria deveria honrar sua nação, jamais se interessando por magia negra ou o que quer que fosse.
Jean desistiu de uma das bolachas, que já estava na metade do caminho para a boca e foi devolvida ao recipiente. Sem disfarçar a satisfação de mostrar os seus utensílios, retirou um objeto incógnito da bolsa, outro menor do bolso direito de sua calça e mais um do cinto. Jogou todos ao chão, alinhados em sua frente.
O primeiro era prateado e cilíndrico, com um único botão discreto. Em uma de suas extremidades, estava algo que parecia um vidro arredondado e grosso. O segundo objeto era azul e igualmente redondo, porém bem pequeno e de aparência leve. Estava preso a uma frágil corrente e tinha ponteiros no seu interior. O terceiro parecia o mais letal, tanto que Vincent quase não conseguiu respirar, olhando do gatilho para o longo cano.
– Lanterna, bússola, revólver – apresentou Jean, com um sorriso no rosto. – Não é o tipo de coisa que vemos em todo lugar – e começou a falar rapidamente, apontando para cada um enquanto explicava suas funções. – O primeiro ilumina ambientes escuros, eu irei te mostrar quando tiver oportunidade. Esse instrumento do meio é capaz de identificar as direções norte-sul e o último é o meu preferido...
– É uma arma de fogo – falou Vincent, reconhecendo subitamente o objeto e surpreendendo Jean com seu conhecimento.
– Como sabe?
– Eu já vi algo assim em uma de minhas viagens... Eu era muito jovem. Vi um homem matar outro com um artefato muito similar – parou um instante, hesitando, e continuou – Foi horrível. Um duelo injusto, sem honra.
– Talvez o seu povo tenha que rever conceitos de justiça e honra – concluiu Jean, tentando manter a voz calma.
Vincent não contra-argumentou, pois estava mais preocupado com suas próprias ações e decisões. A essa etapa da viagem, já não tinha mais certeza se fazia o certo em tentar sobreviver. Todo instante, ouvia a voz rouca de Sirius ecoando em sua mente.
A essa etapa da demonstração, Myra tinha aberto um de seus olhos e observava atenciosamente de Vincent para Jean. Quando o primeiro percebeu que ela permanecia acordada e atenta, o seu olho curioso fechou-se subitamente. Encolheu-se na relva, temendo alguma reprovação.
Não houve mais conversas. Comeram o que lhes restava e beberam água limpa e pura do rio. Vinte minutos depois, já estavam caminhando novamente na direção de Agkar.