Capítulo 17 – Cinzas de promessas.
O primeiro pensamento de Argos, depois de abrir a porta, não foi saquear, mas lavar, em algum lugar, as pernas para tirar a lama do rio, o que fez com um barril de cerveja na primeira taberna que encontrou. O dono da taberna era um homem grande e careca que estupidamente atacou os arqueiros com um porrete, e Daniel o derrubou com o seu arco e depois cortou-lhe a barriga.
- Filho da puta idiota – disse Daniel. – Eu não ia machucá-lo. Não muito.
As botas do morto couberam em Argos, o que foi uma grata surpresa, porque muito poucas serviam, e tão logo eles acharam as moedas que o homem tinha escondido, saíram em busca de outras diversões. O mago de Edron esporeava seu cavalo para cima e para baixo da rua principal com um belo cajado em que dançavam chamas mágicas, gritando para homens que tinham os olhos arregalados para que não pusessem fogo na cidade. Ele queria manter La Roche-Ogre como uma fortaleza, e como um monte de cinzas ela era de menor valia para ele.
Nem todos saquearam. Alguns dos homens mais velhos, até mesmo uns poucos dos mais jovens, ficaram contrariados com tudo aquilo e tentavam conter os excessos mais alucinados, mas estavam em imoderada inferioridade numérica diante de homens que não viam nada, a não ser oportunidade, na cidade caída. O druida Hobbe, um sacerdote de Thais que gostava dos homens de Vince Farz, tentou persuadir Argos e seu grupo a proteger a igreja, mas eles tinham outros prazeres em mente.
- Não estrague sua alma, Argos – disse o druida Hobbe a título de lembrete de que Argos, como todos os homens, tinha assistido à missa na véspera, mas Argos achava que, de qualquer forma, sua alma seria estragada, então o melhor era isso acontecer mais cedo do que mais tarde.
Ele estava à procura de uma garota, na verdade qualquer garota, porque a maioria dos homens de Vince tinha uma mulher no acampamento. Argos estivera vivendo com uma doce e pequena thaisense, mas ela pegara a febre logo antes do início da campanha de inverno, e o druida Hobbe rezara uma missa de corpo presente para ela. Argos ficara olhando o corpo sem mortalha da jovem ser jogado numa cova rasa e pensara nos túmulos de Filars Porl e da promessa que fizera ao tio moribundo, mas depois pusera a promessa de lado. Ele era jovem e não tinha vontade alguma de carregar pesos na consciência.
Northport, agora, rendia-se sob a fúria de Thais. Homens arrancavam o sapé e a mobília despedaçada, na busca por dinheiro. Qualquer morador da cidade que tentasse proteger suas mulheres era morto, enquanto qualquer mulher que tentasse se proteger era agredida até se submeter. Algumas pessoas tinham fugido do saque atravessando a ponte, mas a guarnição fugiu do ataque inevitável e agora os soldados do mago dominavam a pequena torre, e isso significava que La Roche-Ogre estava com o seu destino selado. Algumas mulheres se refugiaram nas igrejas, e as felizardas acharam protetores ali, mas a maioria não teve tanta sorte.
Finalmente, Argos, Daniel e Sam encontraram uma casa que não fora saqueada e pertencia a um curtidor, um sujeito fedorento com uma mulher feia e três filhos crianças. Sam, cuja cara de inocente fazia com que estranhos confiassem nele logo à primeira vista, manteve sua faca encostada na garganta do filho mais moço, e de repente o curtidor lembrou-se de onde tinha escondido o dinheiro. Argos tinha observado Sam, temendo que ele fosse realmente cortar a garganta do menino, porque Sam, apesar das bochechas vermelhas e dos olhos alegres, era tão sádico quanto qualquer outro membro do bando de Vince Farz. Daniel não era muito melhor, embora Argos considerasse os dois seus amigos.
- O homem é tão pobre quanto nós – disse Daniel, impressionado, enquanto revirava as medas do curtidor. Ele empurrou uma terceira pilha em direção a Argos. – Você quer a mulher dele? – ofereceu, generoso.
- Que os Deuses me livrem, não! Ela é vesga como você.
- É mesmo?
Argos deixou Daniel e Sam com suas brincadeiras e foi procurar uma taberna onde houvesse comida, bebida e calor. Ele reconheceu que qualquer garota que valesse a pena ser perseguida já tinha sido apanhada, e por isso tirou a corda do arco, passou decidido por um grupo de homens que arrancavam o conteúdo de uma carroça e encontrou uma estalagem onde uma viúva maternal protegera sensatamente sua propriedade e suas filhas ao receber bem os primeiros soldados, cobrindo-os de comida e bebida de graça, e depois ralhando com eles por sujarem o chão com os pés enlameados. Ela estava gritando com eles naquele momento, embora poucos compreendessem o que ela dizia, e um dos homens resmungou para Argos que ela e as filhas deveriam ser deixadas em paz.
Argos ergue as mãos para mostrar que não queria fazer mal a ninguém, e depois apanhou um prato de pão, ovos e queijo.
- Agora, pague a ela – grunhiu um dos soldados e Argos, obediente, colocou as poucas moedas do curtidor sobre o balcão.
- Ele é bonito – disse a viúva para as filhas, que soltaram risadinhas abafadas.
Argos voltou-se e fingiu inspecionar as filhas.
- Elas são as garotas mais bonitas de todo os arredores de Batalha – disse ele à viúva, em carliniano –, porque saíram à senhora, madame.
Aquele cumprimento, embora comprovadamente insincero, provocou gargalhadas estridentes. Para além da taberna havia gritos e lágrimas, mas ali dentro estava quente e o ambiente era cordial. Argos comeu com sofreguidão, porque estava faminto, e depois tentou esconder-se numa janela projetada para fora quando o druida Hobbe entrou, vindo da rua, apressado. Mas mesmo assim, o padre o viu.
- Eu ainda estou procurando homens para proteger as igrejas, Argos.
- Eu vou me embebedar, padre – disse Argos, feliz. – Vou ficar tão bêbado, que uma daquelas duas garotas vai parecer atraente. – Ele fez um gesto com a cabeça em direção às filhas da viúva.
O druida Hobbe inspecionou-as com ar crítico, e depois suspirou.
- Você vai se matar se beber tanto assim, Argos.
Ele se sentou à mesa, fez um sinal para as garotas e apontou para o caneco de Argos.
- Vou tomar uma dose com você – disse o druida.
- E as igrejas?
- Todo mundo vai estar bêbado em breve – disse o druida Hobbe – e o horror vai terminar. Sempre termina. Cerveja e vinho, Banor sabe, são grandes causas de pecado, mas fazem com que ele tenha vida curta. Pelos ossos de Banor, lá fora está frio. – Ele sorriu para Argos. – Então? Como vai a sua alma negra, Argos?
Argos ficou olhando para o druida. Ele gostava do druida Hobbe, que era pequeno e magro, com uma massa de cabelos pretos revoltos em torno de um rosto alegre que levava as cicatrizes provocadas por uma catapora contraída na infância. Era de berço pobre, filho de um homem de Thais que fabricava e consertava rodas e, como todo menino que ajudava para alimentar a casa, sabia manejar um arco como os melhores arqueiros. Às vezes, acompanhava os homens de Farz em suas incursões no território do duque Charles e da Rainha Eloise, e juntava-se de bom grado aos arqueiros quando eles desmontavam para formar uma linha de batalha. As leis da Igreja proibiam que um padre manejasse uma arma da corte, mas o druida Hobbe sempre alegava que usava flechas rombudas, embora elas parecessem furar as malhas inimigas com a mesma eficiência de quaisquer outras. O druida Hobbe, em suma, era um homem bom cujo único defeito era um excessivo interesse pela alma de Argos.
- Minha alma – disse Argos – é solúvel em cerveja.
- Ora, aí está um bom termo – disse o druida. – Solúvel, é? – Ele pegou o grande arco preto e cutucou a insígnia de prata com um dedo sujo. – Descobriu alguma coisa sobre isto?
- Não.
- Ou quem roubou o sangue?
- Não.
- Você já não se importa mais?
Argos recostou-se na cadeira e esticou as longas pernas.
- Eu estou fazendo um bom trabalho, padre. Nós estamos ganhando esta guerra, e nesta época, no ano que vem, quem sabe? Poderemos estar com a cabeça da rainha de Carlin em um suporte, lá em Thais.
O druida Hobbe fez com a cabeça um gesto de concordância, mas sua fisionomia indicava que as palavras de Argos eram irrelevantes. Passou o dedo por uma poça de cerveja em cima da mesa.
- Você fez uma promessa ao seu tio, Argos, e fez isso numa igreja. Não foi isso o que você me contou? Uma promessa solene, Argos? De que você iria recuperar o frasco de sangue? Os Deuses escutam esses juramentos.
Argos sorriu.
- Fora desta taberna, padre, há tanto estupro, assassinato e roubo acontecendo, que nem todas as penas do céu podem manter atualizada a lista de pecados. E o senhor se preocupa comigo?
- Me preocupo, sim, Argos. Algumas almas são melhores do que outras. Eu tenho que cuidar de todas elas, mas se você tem um carneiro de raça no seu rebanho, fará bem em protegê-lo.
Argos suspirou.
- Um dia, padre, eu vou encontrar o homem que roubou aquele maldito frasco, e vou enfiá-lo em seu traseiro até o líquido fazer cócegas no crânio dele. Um dia. Isso basta?
O druida Hobbe sorriu.
- Basta, Argos, mas no momento há uma pequena igreja que bem poderia ter mais um homem à porta. Ela está cheia de mulheres! Algumas são tão bonitas, que você ficará de coração partido só de olha para elas. Depois, você pode se embebedar.
- As mulheres são bonitas, mesmo?
- O que é que você acha, Argos? A maioria parece morcego e cheia a bode, mas ainda assim elas precisam de proteção.
E assim Argos ajudou a proteger uma igreja e, depois, quando o exército estava tão bêbado que já não podia causar mais danos, ele voltou para a taberna da viúva, onde bebeu até perder os sentidos. Ele havia tomado uma cidade, servira bem ao seu senhor e estava contente.
Sem mais;
Asha Thrazi!![]()
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