Feliz dia das crianças atrasado para todos!
Capítulo 11 – Northport, tentativa de Thais.
Era inverno. Um frio vento matutino soprava no mar, trazendo um cheiro amargo de sal e uma chuva que inevitavelmente solaparia o poder das cordas dos arcos se não passasse.
- Isso – disse Daniel – nada mais é do que uma perda danada de tempo.
Ninguém prestou atenção nele.
- Eu podia ter ficado em Thais – resmungou Daniel –, sentado junto a uma lareira. Bebendo cerveja.
Uma vez mais, ele foi ignorado.
- Hm... – resmungou Sam depois de um longo tempo e olhou para os arqueiros. – Será que veremos Blackarch novamente? – indagou.
- Talvez ela fure a sua língua com uma seta – rosnou Vince Farz – e faça um favor a todos nós.
Blackarch era uma mulher que lutava nos muros da cidade toda vez que o exército fazia um ataque. Era jovem, tinha cabelos pretos, usava uma capa preta e disparava uma besta. No primeiro assalto, quando os arqueiros de Vince Farz ficaram na vanguarda do ataque e perderam quatro homens, tinham chegado perto o bastante para ver Blackarch com nitidez e todos a acharam bonita, embora depois de uma campanha de inverno de fracasso, frio, lama e fome, quase qualquer mulher pareceria bonita. Ainda assim, havia algo de especial em Blackarch.
- Não é ela que carrega a besta que ela usa – disse Sam, inabalável diante do mau humor de Farz.
- É claro que não – disse Daniel. – Ainda está por nascer uma mulher que possa armar uma besta.
- As guardas de Carlin podiam – disse outro homem. – Elas têm músculos de um touro castrado.
- E fecha os olhos quando atira – disse Sam, ainda falando de Blackarch. – Eu percebi.
- Isso é porque você não estava fazendo o que devia – disse Vince Farz com rispidez –, por isso, cale a boca, Sam.
Sam era o mais jovem dos homens de Farz. Alegava ter 18 anos, apesar de não ter certeza disso, porque perdera a conta. Era filho de um vendedor de tecidos e roupas, tinha um rosto angelical, cabelos castanhos cacheados e um coração sombrio. Mas era um bom arqueiro, ninguém serviria a Vince Farz se não fosse bom.
- Está bem, rapazes – disse Farz –, preparem-se.
Tinha visto a agitação no acampamento atrás deles. O inimigo iria percebê-lo em breve, os sinos da igreja tocariam o alarme e os muros da cidade se encheriam de defensores armados de bestas. As bestas lançariam setas nos atacantes e o trabalho de Farz naquele dia era tentar tirar os besteiros de cima do muro com suas flechas. Grande chance, pensou ele com amargor. Os defensores iriam se agachar por trás das ameias e, com isso, negar aos homens dele uma oportunidade de mirar, e sem dúvida aquele assalto acabaria como os cinco outros, em fracasso.
Toda campanha fora feita de fracassos. Havoc Bohun, um mago influente em Edron, que chefiava aquele pequeno exército thaisense, lançara a campanha de inverno na esperança de derrubar cidades aliadas a Carlin. Pequenas, mas influentes. Porém, o assalto contra Vega e as ilhas geladas fora um fracasso humilhante, os defensores de Folda riram dos thaisenses com sua nova arma: arcos. Agora, no amargo fim de ano, sem nada melhor a fazer, o exercito do mago chegara do lado de fora daquela pequena cidade, que mal era mais do que uma vila murada, mas até aquele lugar miserável desafiara o exército. O mago lançara um ataque atrás do outro, e todos tinham sido rechaçados. Os thaisenses foram recebidos por uma tempestade de setas de besta, as escadas empurradas para longe das defesas e os defensores exultaram a cada fracasso.
- Como é que chama essa porcaria de lugar? – perguntou Farz.
- Northport. – respondeu um arqueiro alto.
- Tinha que ser você, Argos – disse Farz –, porque você sabe tudo.
- É verdade, Vince – disse Argos, sério –, literalmente verdade. – Os outros arqueiros riram.
- Então, se você sabe tanto assim – disse Farz –, me diga outra vez como é que se chama essa maldita cidade.
- Northport. Se preferir, La Roche-Ogre.
- Que nome mais maluco – disse Farz.
Ele tinha cabelos grisalhos, o rosto fino e vivera quase trinta anos de combates. Era de Venore e começara sua carreira de arqueiro lutando contra os orcs em uma fortaleza ao norte de Venore. Sua sorte acompanhou sua capacidade, e por isso tirara espólios, sobrevivera a combates e ascendera até ficar rico o bastante para criar seu próprio bando de soldados. Agora chefiava setenta soldados e outros tantos arqueiros, que contratara para servir Havoc Bohun, motivo pelo qual estava agachado atrás de uma cerva viva molhada a 150 metros dos muros de uma cidade cujo nome não conseguia memorizar. Seus soldados estavam no acampamento, por terem recebido um dia de descanso depois de chefiarem o último assalto fracassado. Vince Farz tinha horror ao fracasso.
- La Roche o quê? – perguntou ele a Argos.
- Ogre.
- O que é que isso quer dizer?
- Deve ser por causa das rochas gigantescas dentro do mar, próxima a cidade. Não tenho certeza... Isso, eu confesso que não sei.
- Oh grande Uman – disse Farz com ar de zombaria –, ele não sabe tudo.
- Mas é próximo de Ogro, que também é gigantesco. – acrescentou Argos. – O rochedo do ogro é a melhor adaptação que posso fazer.
Farz abriu a boca pra dizer alguma coisa, mas naquele momento o primeiro badalar dos sinos de igreja de Northport soou. Era o sino rachado, com um som muito áspero, e em questão de segundos as outras igrejas acrescentaram o seu dobrar, de modo que o vento úmido encheu-se de seu repique. O som foi saudado por um abafado ovacionar thaisense enquanto as tropas de assalto vinham do acampamento e subiam pela estrada em direção à porta sul da cidade. Os homens que iam à frente levavam escadas, os demais portavam espadas e machados. O mago de Edron chefiou o assalto, como fizera em todos os outros, notável em sua armadura de ouro meio coberta por uma capa azul mostrando sua insígnia de leões e estrelas.
- Vocês sabem o que fazer – gritou Farz.
Os arqueiros se ergueram, puxaram a corda dos arcos e soltaram. Não havia alvos no muro, porque os defensores estavam abaixados, mas o chocalhar das flechas com ponta de aço nas pedras os manteria agachados. As flechas de penas brancas chiavam ao voar. Dois outros bandos de arqueiros acrescentavam suas flechas, muitos deles disparando para o céu, para que seus mísseis caíssem na vertical no interior do muro, e para Farz parecia impossível que alguém pudesse viver sob aquela chuva de aço e penas, e no entanto, assim que a coluna de ataque do mago chegou a menos de cem metros, as setas das bestas começaram a ser cuspidas dos muros.
Havia uma fenda perto da porta. Fora produzida por uma catapulta, a única máquina de cerco em estado razoavelmente bem conservado, e era uma fenda sofrível, porque apenas o terço superior do muro tinha sido desmantelado pelas pedras grandes e os habitantes da cidade introduziram madeira e trouxas de tecido no buraco, que ainda representava uma fraqueza no muro e os homens que levavam as escadas correram em sua direção, gritando, enquanto as setas das bestas caíam em cheio sobre eles. Homens tropeçavam, caíam, rastejavam e morriam, mas um número suficiente viveu para lançar duas escadas contra a fenda e os primeiros soldados começaram a subir. Os arqueiros disparavam com a rapidez que podiam, cobrindo o alto da brecha com flechas, mas surgiu um escudo lá, um escudo que foi imediatamente atingido por umas vinte flechas, e de trás do escudo um besteiro disparou direto contra uma das escadas, matando o homem que ia na frente. Outro escudo apareceu, outra besta foi disparada. Um caldeirão foi empurrado para o alto da brecha e depois virado, e uma cascata de líquido fumegante foi derramada, fazendo um homem gritar de agonia. Defensores atiravam pedras por cima da brecha e suas bestas estalavam ao serem disparadas.
- Mais perto! – gritou Farz, e seus arqueiros investiram pela cerca viva e correram para uma distância de menos de cem metros do fosso da cidade, onde tornaram a retesar os longos arcos de guerra e dispararam suas flechas dentro das seteiras. Alguns defensores morriam, agora, porque tinham de se exibir para disparar as bestas contra o grande grupo de homens que se acotovelavam ao pé das quatro escadas encostadas na brecha ou nos muros. Soldados subiam, uma vara com ponta em forquilha empurrou uma das escadas para trás. Argos torceu a mão esquerda para alterar a mira e soltou os dedos, disparando uma flecha contra o peito de um homem que empurrava a vara. O homem usava um escudo seguro por um companheiro, mas o escudo deslocou-se por um instante e a flecha de Argos foi a primeira que passou pela pequena fresta, embora duas outras se seguissem antes que terminasse a última batida do coração moribundo. Outros homens conseguiram derrubar a escada.
- Grande Banor! Avante Thais! – gritaram os thaisenses, mas o deus devia estar dormindo, porque não deu ajuda alguma aos atacantes.
Mais pedras foram atiradas dos baluartes, e em seguida uma grande massa de palha em chamas foi lançada contra o grupo compacto de atacantes. Um homem conseguiu chegar ao topo da brecha, mas foi imediatamente morto por um machado que rachou em dois o capacete e o crânio. Ele desabou nos degraus, bloqueando a subida, e o mago tentou empurra-lo para fora do caminho, mas foi atingido na cabeça por uma das pedras e caiu aos pés da escada. Dois dos soldados carregaram o mago atordoado de volta ao acampamento, e sua partida tirou o ânimo dos atacantes. Já não gritavam mais. As flechas ainda voavam, e homens ainda tentavam escalar o muro, mas os defensores sentiram ter repelido aquele sexto ataque e as setas de suas bestas partiam implacáveis. Foi então que Argos viu Blackarch no alto da torre que ficava sobre a porta. Ele apontou a extremidade de aço da flecha para o peito dela, ergueu o arco e o agitou com a mão, fazendo com que a flecha errasse o alvo. Bonita demais para matá-la, disse a si mesmo e sabia que era louco por pensar assim. Ela disparou sua seta e desapareceu. Meia dúzia de flechas tilintaram contra a torre sobre a qual ela estivera, mas Argos concluiu que todos os seis arqueiros tinham deixado que ela atirasse antes de soltarem.
- Maldição! – gritou Farz. O ataque fracassara e os soldados estavam correndo, fugindo das setas disparadas pelas bestas. Uma escada ainda se apoiava contra a brecha com um homem morto preso aos degraus superiores. – Recuem! – gritou Farz. – Recuem.
Os arqueiros correram, perseguidos por setas de ponta quadrada disparadas pelas bestas, até conseguirem passar pela cerca viva, de onde Vince Farz lançou uma rajada de grandes bolas de fogo de uma runa arcana e se jogaram no fosso. Os defensores ovacionavam e os dois homens, na torre da porta, desnudaram os traseiros, exibindo por um instante a bunda em direção aos thaisenses derrotados.
- Filhos da puta – disse Farz. Ele não estava acostumado a fracassos. – Tem que haver uma porcaria de jeito de entrar – resmungou ele.
Argos tirou a corda de seu arco e colocou-a sob o elmo.
- Eu lhe disse como entrar – disse ele a Farz. – Ao amanhecer.
Vince Farz olhou para Argos por um longo tempo.
- Nós tentamos, rapaz.
- Eu cheguei às estacas, Vince. Juro que cheguei. Passei por elas.
- Pois me conte de novo – disse Farz, e Argos contou. Ele se agachou no fosso sob a zombaria dos defensores de La Roche-Ogre e disse a Vince Farz como abrir a cidade, e Farz ouviu, porque o homem de Venore aprendera a confiar em Argos Fall.
Argos já estava nas terras de Carlin há três anos, servindo à Vince Farz. Argos descobrira que tinha habilidade para matar. Não era apenas o fato de ser um bom arqueiro – o exército estava cheio de homens que eram tão bons quanto ele e havia alguns que eram melhores – mas ele descobrira que podia pressentir o que o inimigo estava fazendo. Ele os observava, observava os olhos deles, via para onde estava olhando, e na maioria das vezes previa o movimento de um inimigo e estava pronto para saudá-lo com uma flecha. Era como um jogo, mas um jogo cujas regras ele conhecia, e eles não. Ele se apegou ao velho Vince, que era como um mentor. Já sabia usar runas, porém a mais poderosa runa de Morte Súbita, uma espécie de magia negra de destruição, não se rendia aos poderes inferiores de Argos. O rapaz era um bom paladino.
O fato de Vince Farz confiar nele ajudava. Farz relutara em recrutar Argos quando da primeira vez em que se encontraram ao lado da prisão em Thais, onde Farz testava vinte ladrões e assassinos para ver até onde ia a habilidade deles no disparo de uma flecha. Precisava de recrutas e o rei Tibianus de arqueiros, e por isso homens que teriam enfrentado a forca estavam sendo perdoados se servissem no exterior, e exatamente metade dos homens de Farz eram desse tipo de criminosos. Argos, pelo que Vince imaginara, jamais se entrosaria com bandidos daquela espécie. Ele havia segurado a mão direita de Argos, vira os calos nos dois dedos que puxavam o arco, que diziam que ele era um arqueiro, mas depois dera uma batidinha na palma da mão do rapaz, de pele fina.
- O que é que você tem feito? – perguntara Farz.
- Meu tio queria que eu fosse clérigo.
- Clérigo, é? – zombara Farz. – Ora, eu acho que você pode rezar por nós.
- Eu posso matar por vocês, também.
Farz acabara deixando que Argos se juntasse ao bando, pelo menos porque o rapaz levava seu próprio cavalo, devia ser de família nobre ou um bom ladrão. A princípio, Farz pensara que Argos Fall era um pouco mais do que mais um louco bárbaro em busca de aventura – um louco inteligente, sem dúvida –, mas Argos aderira à vida de arqueiro em Carlin com entusiasmo. A verdadeira atividade da guerra era saquear e, dia após dia, os homens de Farz invadiam terras leias aos partidários da Rainha Eloise e queimavam as fazendas, roubavam as safras e levavam os animais. Um senhor cujos camponeses não podem pagar renda é um senhor que não tem como contratar soldados, de modo que os soldados e os arqueiros montados de Farz eram soltos na terra do inimigo como uma praga, e Argos adorava aquela vida. Ele era jovem e sua tarefa não era só combater o inimigo, mas arruiná-lo. Ele queimava fazendas, envenenava poços, roubava grãos, quebrava arados e vivia a custa de seu saque. Os homens de Farz eram os senhores de Carlin, um flagelo do inferno, e os aldeões a leste do ducado chamavam-nos de cavaleiros do demônio. De vez em quando, um bando guerreiro inimigo tentava emboscá-los e Argos havia aprendido que o arqueiro thaisense, com o seu longo arco criado na cidade para ser tão ou mais poderoso que uma besta, era o rei daquelas áreas. O inimigo odiava os arqueiros, os paladinos de Thais. Se capturavam um arqueiro thaisense, eles o matavam. Um soldado podia ser feito prisioneiro, um senhor teria um resgate pedido por ele, mas um arqueiro era sempre assassinado. Torturado primeiro, depois assassinado.
Argos vicejava naquela vida e Farz aprendera que o rapaz era inteligente, sem dúvida o suficiente para saber que não devia pegar no sono quando estivesse de sentinela e, por essa ofensa, Farz o agredira até ele perder os sentidos. “Você estava bêbado!”, acusara ele, e depois dera uma surra em Argos, usando os punhos como se fossem martelos de ferro, a clava de guerra. Quebrara o nariz de Argos, rachara uma costela e o xingara de bosta fedorenta de Zathroth, mas no fim de tudo Vince Farz vira que o rapaz ainda estava sorrindo, e seis meses depois o nomeara de vintenar, o que significava que ele chefiaria vinte outros arqueiros.
Quase todos eram mais velhos do que Argos, mas nenhum parecia se importar com a promoção dele, porque reconheciam que ele era diferente. A maioria dos arqueiros usava os cabelos curtos, mas os cabelos de Argos eram extravagantemente longos e enrolados com cordas de arco, caindo numa longa trança preta até a cintura. Ele tinha o rosto barbeado, olhos verdes e só se vestia de preto. Aquelas afetações poderiam torná-lo impopular, mas ele trabalhava arduamente, tinha um raciocínio rápido e era generoso. Mas ainda era estranho. Todos os arqueiros usavam talismãs, talvez um símbolo de Uman ou de Fardos de metal barato, mas Argos usava uma pata dissecada de lobo pendurada no pescoço que ele alegava ser do animal de Crunor, e ninguém ousava duvidar dele, porque ele era o homem mais instruído do bando de Farz. Falava tão cultamente quanto um nobre e sabia elfico, e os arqueiros de Farz sentiam-se perversamente orgulhosos dele por causa daquelas habilidades. Agora, três anos depois de entrar para o bando de Vince Farz, Argos era um de seus principais arqueiros. Às vezes, Farz até pedia conselhos a ele, raramente os adotava, mas pedia, e Argos ainda tinha a pata de lobo, um nariz torto e um sorriso sem-vergonha.
E agora tinha uma idéia de como entrar em La Roche-Ogre.
Arqueiros de Vince Farz, na tentativa frustrada de invadir Northport.
Os próximos são inéditos.
Não percam, previsão próxima sexta.
Sem mais;
Asha Thrazi!![]()
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