Prelúdio - o financiador e o feiticeiro
Jawad - Darashia

– Quem quer que disse que a Joia do Deserto não podia ser comprada, com certeza não conhecia o nosso ouro.
O homem de rosto bronzeado disse aquilo e sorriu, divertindo-se com o próprio comentário. No entanto, apenas os ventos e as areias do deserto ouviram suas palavras despropositadas, pois todos os outros já estavam mortos.
Aquele sujeito se encontrava em uma fronteira. Às suas costas, fincavam-se as estacas, farfalhavam os panos, erguiam-se as tendas e os tijolos descoloridos e surrados pela areia que compunham a cidade de Darashia. Um lugar pequeno, porém intrépido e, na opinião de muitos, charmoso, que conseguira prosperar em meio ao imenso deserto que se estendia dali para o norte, oeste e sudoeste, até encontrar o oceano ou as montanhas, conhecido como Deserto Devorador.
A cidade de Darashia também era chamada de Joia do Deserto, razão pela qual o homem assim se referira a ela. Um lugar de valor inestimável, com uma história tão rica quanto antiga e complexa.
O homem não parecia se importar com os inúmeros corpos sem vida que se estendiam à sua frente, defronte à entrada norte da cidade. Na verdade, seus olhos pequenos e castanhos possuíam o brilho da inteligência, e também da malícia. O brilho presente no olhar de alguém que chegara até onde chegou não pela força de seus braços, mas por sua ardilosidade.
Caso alguém tivesse a coragem de se aproximar daqueles corpos humanos estirados sob os sóis escaldantes do deserto, perceberia um detalhe interessante: quase nenhum daqueles homens mortos, outrora soldados ferozes, se parecia muito com os habitantes do lugar. Eram muito menos morenos, e suas feições, em geral, eram mais quadradas e menos suaves do que as dos darashianos. Eram feições de homens do norte; do continente de Tibia. Mais precisamente, do reino de Thais. Eles também vestiam armaduras pesadas e pintadas com os símbolos e as cores daquele lugar. Agora, estavam todas pintalgadas e manchadas de um sangue cuja cor misturava-se com o brilho cálido dos sóis sobre o metal.
Alguns poucos, talvez um quarto dos mortos, de fato pareciam darashianos, e também estavam vestidos de maneira mais próxima à da região. Era como se tivesse havido ali uma batalha estranha. Não seria possível ao examinador precisar, apenas com base naquela cena, quem havia enfrentado quem, ou como a luta se sucedera.
O que era mais peculiar, no entanto, era que, sobre cada corpo estirado sobre a areia, havia sido depositada uma única moeda de ouro. Havia centenas de corpos ali, então todo aquele ouro refletindo a luz calorosa do dia chegava a ser difícil de fitar.
O darashiano que ainda estava vivo e de pé diante da cena, no entanto, observava tudo sem desviar os olhos e sem lacrimejar. Em seus dedos finos e longos, quase da cor do ébano e mais escuros do que os da maioria de seus conterrâneos - o que de fato o fazia quase se parecer um nativo das terras de Tiquanda, à sudoeste - ele brincava com uma moeda similar. O precioso metal rodava e trançava por entre anéis de pedras preciosas que ornamentavam sua mão. De sua cintura, pesava uma bolsa que continha ainda mais moedas do mesmo tipo. Ele havia usado cerca de metade. Era sempre bom se precaver e trazer mais do que o necessário.
– Você realmente é um homem peculiar, Jawad – falou de repente uma voz suave, que vinha de trás do homem darashiano. Ele se virou com um sobressalto naquela direção.
– Você não pode dizer muita coisa – retrucou o darashiano, chamado Jawad, em tom de censura. Avaliava o homem que lhe havia direcionado aquelas palavras, e que aparecera subitamente, com um olhar de frieza, mas que escondia seu temor. Nunca havia gostado dele, e agora percebia isso mais claramente do que nunca.
Quem lhe falara era um sujeito bizarro. Com certeza não era darashiano, nem portenho, que é como se denominavam as pessoas originárias de Porto Esperança, a cidade litorânea no meio do inferno verde e salvagem que era a selva de Tiquanda no sudoeste. Nem sequer era um thaiano do continente ao norte - se este fosse o caso, ele estaria morto junto com os outros. Na verdade, ele não parecia ser de lugar nenhum. O darashiano nunca havia visto um homem como aquele. Sua tez era pálida, quase translúcida. Não havia um único fio de cabelo em seu rosto, inclusive no topo da cabeça - em contraste com Jawad, que ostentava uma prodigiosa e longa barba lustrosa e negra. Seus olhos eram grandes e negros, ágeis, parecendo observar tudo e todos com uma curiosidade infantil e quase inocente, que era de todo errada naquele rosto tenebroso e esquelético que ele possuía. Para completar a imagem, vestia-se sempre de preto, mesmo na tórrida Darashia. Seu nome era Acheron, mas Jawad se acostumou a chamá-lo mentalmente apenas de
o homem de preto.
O que havia em Acheron que mais repelia o darashiano não era nem sua aparência física, propriamente. Ele era simplesmente um homem que era impossível vir a conhecer intimamente, ou considerar como alguém próximo. Acheron sorria de maneira afável, e seus olhos não pareciam maldosos - ao menos não superficialmente. No entanto, seu olhar e seus sorrisos suaves e constantes não transmitiam calor ou aconchego. Ele havia passado os últimos meses em Darashia, vivendo na propriedade de Jawad, comendo com ele, ajudando-o a arquitetar aquele plano. Apesar disso, Jawad não passara a gostar dele nem um pouco a mais, e imaginava que o sentimento era recíproco. Acheron não parecia o tipo que cultivava amizades. Além do mais, não havia ganhado o menor vislumbre de cor, mesmo após meses debaixo dos sóis inclementes do lugar. Aquilo não era natural.
Acheron sorriu suavemente. Ele sempre sorria suavemente.
– Permita-me perguntar, companheiro – ele disse, postando-se ao lado de Jawad e dando-lhe um calafrio que ele buscou disfarçar o máximo possível – qual o motivo das moedas?
Jawad sorriu e relaxou. Sempre que o tópico era dinheiro, encontrava-se em casa, seja lá onde estivesse fisicamente.
– Logo os catadores de corpos terão de vir resolver essa bagunça. Deixei uns trocados para eles. Que melhor maneira de dar início à nova economia? – Ele terminou sorrindo.
Acheron retribuiu com outro de seus característicos - e sinistros, na opinião de Jawad - esgares suaves.
– De todos os membros de nossa pequena comunidade, sem dúvidas você é o mais singular – Acheron insistiu.
Antes que Jawad pudesse responder qualquer coisa, o olhar de ambos os homens foram atraídos por um brilho em particular que surgiu em meio ao campo de mortos. Um dos guerreiros caídos se remexeu, e a moeda que havia sido pousada sobre seu corpo foi ao chão, refletindo a luz solar e sendo posteriormente engolida pela areia. Era um dos combatentes thaianos, tão longe de casa. Não estavam todos mortos, afinal.
Jawad e Acheron observavam tranquilamente enquanto o homem parecia fazer força para se levantar, gemendo. O lado de sua cabeça estava empapado de sangue, mas fora isso, ele parecia relativamente bem. Devia estar a uns cinco metros de distância.
– Vocês irão pagar pelo que fizeram hoje aqui – disparou verbalmente o guerreiro thaiano na direção deles. Parecia reunir todas as forças das quais ainda dispunha para respirar, de maneira ofegante, e colocar um pé envolto em armadura completa de platina na frente do outro, na direção de Jawad e Acheron. Era jovem; não devia ter mais do que vinte e poucos anos. Por um brevíssimo momento, Jawad teve pena dele. Provavelmente havia sido destacado para a colônia darashiana há poucos meses. Comera da comida de sua província, bebera de seu mel, fizera companheiros e amigos nas terras do deserto. Ajudara os moradores da região contra invasões de bandidos nômades da areia, e provavelmente achava que tudo estava bem. Jamais poderia ter sabido que fora inserido em um plano que levaria à sua morte. Pobre, inútil rapaz.
– Na verdade, já estou pagando, como você pode ver – Jawad disse alegremente, atirando outra moeda na direção do cavaleiro.
O thaiano não disse mais nada, mas continuou avançando lentamente na direção deles. Sua mão direita segurava uma espada ordinária do reino de Thais, mas não parecia restar-lhe forças suficientes para erguê-la.
– Ei, ele está vindo para cá – disse Jawad para Acheron. – E tem uma espada. Não deveríamos fazer alguma coisa?
Acheron sorriu.
– Companheiro, acredito que nunca tenha estado em uma batalha. Esse homem está no limite de suas forças. Talvez desabe antes mesmo de conseguir nos dar uma cusparada.
Mas o thaiano continuou andando, resolutamente. Era como se toda a determinação de sua pátria, e daquele seu odioso rei, Tibianus III, tivesse sido depositada sobre ele, incitando-o a dar sempre mais um passo.
– Uman e Fardos hão de puni-los. Os deuses não perdoarão – disse o guerreiro saltimbanco novamente.
– Uman e Fardos? Que brincadeira é essa agora? – Perguntou Jawad, arregalando os olhos.
Acheron riu.
– Não há deuses. O mundo seria um lugar mais agradável se eles existissem.
Utori mort.
Aquelas últimas palavras por ele pronunciadas, que não constituíam nenhum idioma que se conhecesse, ou que fosse falado por qualquer povo daquele mundo, fez com que um outro calafrio percorresse o corpo de Jawad. Acheron era, é claro, um feiticeiro. Mais um na lista de motivos que o tornavam asqueroso na visão do darashiano. Jawad nunca havia sido muito ligado à magia. O ouro e os mercados eram mais estáveis. E mais compreensíveis. Mas o fato é que só conseguira chegar até onde chegara devido a Acheron e suas… artes.
Por um instante, nada pareceu acontecer. Não houve sons ou disparos de luz saindo de Acheron. A magia era, em geral, mais sutil do que isso. No entanto, no instante seguinte, o jovem guerreiro thaiano ofegou e levou a mão ao peito. Expeliu dos pulmões uma tosse que vinha misturada com sangue. Apesar disso, avançou mais um passo. Segundos depois, pareceu ser acometido de outro espasmo. Desta vez, seus joelhos cederam, e ele caiu no chão, mas ainda respirava. Um terceiro espasmo poucos segundos depois ceifou sua vida.
Jawad perfurou Acheron com um olhar desaprovador.
– É um sádico. Tinha de prolongar o sofrimento dele até o último segundo, não?
Acheron deu de ombros.
– Não importa. Vencemos. Darashia é nossa, e agora olhamos para o norte.
Jawad abriu o maior sorriso que dera naquele dia até então, revelando um vislumbre de um dente incisivo do mais puro ouro em sua boca. Apesar da presença de Acheron, sentia-se satisfeito.
– A propósito: você está errado sobre uma coisa – disse ele.
– Oh? Esclareça-me.
Jawad jogou uma moeda de ouro na direção do feiticeiro, que a apanhou instintivamente.
– Existe um deus, sim. E ele está aqui nessa bolsa – anunciou Jawad, dando uma sacudidela em sua sacola de moedas, fazendo o ouro tilintar.
FIM