Todos os Nossos Pecados
O homem de meia-idade encontrava-se sentado displicentemente na janela de um prédio residencial, sentindo a brisa acariciar sua face descolorada. A perna direita estava em contato com o carpete do apartamento e a outra balançava perigosamente do lado de fora – muitos metros acima da calçada.
Já fazia alguns minutos que segurava uma garrafa de vinho com a mão trêmula e a observava com os olhos semicerrados, como se estivesse com raiva da bebida que balançava dentro do recipiente. Cansado das lembranças que o atormentavam, grunhiu brevemente e atirou o objeto na avenida. A garrafa sumiu na noite e espatifou-se estridentemente ao encontrar o chão.
– Fez muito bem, Vitor – comentou uma voz doce e melodiosa. – Causaria um terrível mal-estar.
A garota que falara aproximava-se morosamente, envolta em mistério, trazendo um largo sorriso estampado no rosto pálido e ossudo. Enquanto observava suas pernas longas e finas desfilando hipnoticamente em sua direção, lembrou-se do dia em que se conheceram – o terrível encontro que mudou sua vida.
Ela não tocou a campainha. Quando o proprietário abriu a porta com a única intenção de levar o lixo para fora, encontrou-a em frente à residência, sob a chuva, esfregando as mãos e tremendo levemente.
– Meu Deus! – exclamou, largando os sacos de lixo no tapete de entrada.
A garota sorriu pelo canto da boca, mas permaneceu na mesma posição. Estava completamente nua e encharcada, sua pele imaculadamente branca contrastava com os cabelos lisos e escuros que desciam até seus ombros.
– Convide-me para entrar – pediu, enquanto caminhava em direção a porta.
– Entre, entre – disse o homem, ao mesmo tempo em que a puxava.
O interior do aposento era iluminado por um antigo candelabro de seis braços, preso ao teto por uma grossa corrente prateada. No centro da sala, ocupando grande parte do espaço, encontrava-se uma mesa redonda de madeira escura e quatro cadeiras feitas do mesmo material.
A menina foi conduzida até uma das cadeiras – molhando o assoalho durante o percurso –, mas não sentou. O dono da casa resmungou qualquer coisa, ausentou-se durante alguns segundos e retornou trazendo uma toalha azul e uma camisa social listrada.
– Qual é o seu nome? Onde estão seus pais? – perguntou, enquanto a enxugava dos pés à cabeça.
– Lílian. Mortos.
Ele estava tão preocupado em vesti-la que não reparou a rigidez de sua voz ou a forma agressiva como seus olhos castanhos claros o fitavam.
– O que aconteceu? Onde você mora? – prosseguiu com o interrogatório.
– Tire as mãos de mim, seu pedófilo desgraçado – murmurou a garota.
O homem recuou alguns passos, coçando o cavanhaque mal feito e tentando compreender o motivo da acusação. Ela não demorou a desfilar em sua direção com um sorriso perverso.
– Você me acha atraente? – perguntou em tom libidinoso, fazendo menção de desabotoar a camisa que lhe cobria até os joelhos.
– Deus! Você é uma criança... eu tenho filhos... – protestou o homem, verdadeiramente estupefato.
– E eu tenho 286 anos – interpelou com certo desprezo na voz.
Ela saltou sobre o seu interlocutor, derrubando-o facilmente. Enquanto segurava os braços da vítima, seus dentes caninos projetaram-se ameaçadoramente para fora.
– Você acredita em Deus? – sua voz soava pesada. – Comece a rezar – intimou.
O homem tentou levantar, mas aquele corpo aparentemente frágil e delicado exercia forte pressão sobre seu tórax. Estavam a pouquíssimos centímetros de distância, porém seu nervosismo impediu que percebesse um detalhe assustador: ela não respirava.
– REZE! – ordenou a garota, que agora portava aparência animalesca.
Iniciou uma oração ensaiada durante a infância em colégio católico. O desespero falou mais alto, acabou atropelando as próprias palavras e chorando convulsivamente enquanto gritava por socorro.
– Você é patético – sussurrou em seu ouvido.
Lílian ignorou os brados da vítima, mordeu seu pescoço com os dentes afiados e deliciou-se com o sangue que escorria das perfurações. Os últimos sons que ele ouviu, pouco antes de desmaiar, foram os baques surdos de suas pernas debatendo-se no assoalho.
Vitor retornou do breve devaneio e, instintivamente, coçou a região onde fora mordido. Tentando ignorar a presença da garota, fingiu estar interessado por um carro que cruzava a longa e escura avenida. Alguns segundos depois, projetou seu corpo para frente, deixando claro qual era o seu desejo.
– Você morreria na queda – afirmou Lílian, agora muito próxima, também observando a cidade adormecida pela janela.
– Novamente? – resmungou. – Tudo que quero é me livrar dessa maldição...
Lílian riu. É o que costumava fazer para afogar seus problemas ou desprezar os infortúnios alheios, independente da gravidade da situação.
– O que fiz para merecer isso? – perguntou o homem, sem conseguir conter as lágrimas de sangue que vertiam dos olhos e manchavam seu rosto macilento.
– Você não cansa dessa pergunta?
Vitor pigarreou e ficou pensativo durante alguns segundos. Logo depois, mirando o teto iluminado por lâmpadas fluorescentes, desatou a falar:
– Eu passei muitos anos te culpando. No momento, só consigo pensar que, de alguma maneira estranha, o rumo que tomei em minha vida me levou até os seus braços... essa nossa condição... seria algum tipo de castigo imputado à humanidade? – perguntou, aparentemente para si mesmo, enquanto torcia as mãos raivosamente.
– Pois a culpa é minha. Foi minha decisão egoísta – respondeu Lílian, incomumente séria. – Arrependo-me profundamente, pois só me trouxe desgraças – completou, deixando escapar um sorriso contraditório.
Vitor finalmente a fitou. Apesar dela não demonstrar remorso, o olhar do homem era condescendente, como se a estivesse desculpando pelos anos de sofrimento.
– Você é uma boa pessoa. Todos os seus pecados serão perdoados – afirmou a garota com o sarcasmo habitual, ao perceber a intenção daquele olhar complacente.
O homem levantou e enxugou o rosto com as mangas da camisa.
– Todos os nossos pecados serão perdoados – recitou, sorrindo melancolicamente.
Em consenso silencioso, deixaram o apartamento. Não trocaram olhares ou palavras, apenas caminharam pelo corredor deserto e mal iluminado, desceram as escadas em direção ao térreo, atravessaram o saguão de entrada e saíram rua afora.
Após alguns passos pela calçada, avistaram a garrafa de vinho espatifada. A substância escura e proibida – que manchava o chão – acentuou o apetite íntimo e imoral de Lílian e Vitor; naquele momento, ambos tiveram certeza de que nunca conseguiriam controlar seus instintos. A noite só possuía uma cor: vermelho sangue.Finalista do Concurso de Roleplay Telling 2009.
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