
Postado originalmente por
Emanoel
Afinal, o importante é o capítulo aparecer um dia...
E esse dia é hoje.
Aqui está a segunda parte. Espero que gostem.
Capítulo Segundo - A prole de Bavras (Parte 2)
(relembrando o final da primeira parte):
Não mais que de repente, tomado de súbito pavor, Letur fez uma cara de espanto extremo e imenso arrependimento, seu rosto se transfigurou pelo susto e sua boca abriu-se o máximo que podia, tal foi a força da emoção que tomou o seu corpo: Aquele homem lhe era familiar. Foi quando, Abrindo bem os olhos desesperados e marejados de suor, gritou mais alto do que havia gritado em toda a sua vida:
-Beril!
Aquele que estava deitado acordou num pulo e, vendo o grande pedregulho que estava sobre o seu corpo, nas mãos do pequeno monge, apavorou-se e rolou para o lado rapidamente. Foi justamente o tempo necessário para que as mãos fracas do garoto fraquejassem e a pedra escapasse das suas mãos, caindo no chão com um barulho abafado. Ao invés de arrebentar ossos a pedra esmagou a grama, lama seca e algumas flores alaranjadas, jogando pedaços de folhas no ar. Se seus reflexos fossem levemente menos ágeis o homem teria alguns de seus membros quebrados, ou talvez ele até estivesse morto.
O som da pedra atingindo o solo assustou alguns pássaros que saíram voando, balançando galhos cheios de folhas de um verde vivo de um cedro.
Beril levantou, olhou o pequeno monge com olhos severos e franziu a testa pelo ódio, falando alto e ameaçador, quase gritando:
-O que você pensou que ia fazer? Queria me matar, imbecil?! Matar seu próprio irmão?
O guerreiro parecia ter se tornado um animal selvagem, apertava as mãos e gesticulava como se quisesse esganar Letur ou dar-lhe bofetões na cara. Ele cerrava os dentes com força, e sua face acabou num tom avermelhado.
Letur, por outro lado, parecia um cão acuado. Olhava para o irmão como se não acreditasse que aquilo estava realmente acontecendo e esperasse uma surra. A cada vez que Beril gritava, o monge fechava os olhos e se encolhia.
Após um suspiro forte e uma breve pausa, onde Beril pareceu um pouco mais calmo - mas igualmente impressionado, continuou:
-Então é isso que os monges safados te ensinaram naquele mosteiro dos infernos? Retribuir a ajuda de um familiar com agressões de morte? Ande, fale alguma coisa, ingrato!
Letur não respondeu. Limitava-se a olhar para baixo em silêncio, totalmente desarmado emocionalmente diante daquela situação. Não tinha forças para falar nem sequer uma palavra para se defender, suas mãos ainda doíam muito, e a dor pulsava forte seguindo o ritmo rápido e alucinado do fluxo de sangue. Começou a chorar, tapando o rosto com as mãos sujas, machucadas e marcadas pelas arestas da pedra, envergonhado e sem ter o que dizer.
Foi só então que seu irmão abrandou a expressão repressora e irada em sua face, que passou a mostrar pena ao invés de raiva. Colocou a mão hesitante em cima do ombro no aprendiz de monge, em um gesto que o deixou visivelmente desconfortável, pois os dois nunca tiveram muita intimidade.
Beril então disse baixinho e tentando se conter, mas ainda com resquícios de agressividade pelo nervosismo:
-Tudo bem. Você não tinha me reconhecido? Deve ter sido os trapos que eu usei para proteger o rosto do frio na noite anterior e essa barba ridícula na minha cara.
Como o garoto não mostrasse sinais de que ia parar de chorar, Beril continuou:
-Está tudo bem, Letur, já disse! Pare de chorar. Você foi corajoso, eu acho. Não sei que desespero te levou a pegar aquela pedra, mas deve ter sido... Ah, deixa pra lá, não vou fingir que sei o que te falar pra tu te sentir melhor. Vamos deixar isso de lado, temos que comer alguma coisa e preparar as nossas pernas para seguir viagem, que o caminho não é curto e nós não temos tempo.
O menino olhou para Beril, que observava a pedra caída no chão. O guerreiro imaginava o peso daquele objeto esmagando seu corpo, quando seus pensamentos foram interrompidos pela voz ainda fragilizada e ainda chorosa do irmão:
-Mas Beril, como?
Antes que o garoto continuasse o outro interrompeu, respondendo:
-O pai me enviou para te buscar.
Letur então parou por um instante e lembrou-se da época em que ainda estava na companhia de Bavras, ex-comandante das hordas do leste, seu pai. Era estranho receber a visita do irmão, que não via há quase quatro anos, mas ouvir notícias daquele que o gerou era para ele ainda mais exótico. Ainda sim, apesar de serem poucas, as lembranças eram doces.
Então seu irmão adulto continuou a falar, depois de um suspiro impaciente e uma passada de mão na testa como que para limpar um suor que não existia:
-Olha, não quero saber de perguntas demais, ta? Eu não sei bem o que está acontecendo, mas o que nos interessa agora é chegar de uma vez na vila mais próxima na direção do berço do sol. Vai ter uma caravana e umas pessoas conhecidas do pai nos esperando por lá.
O pequeno aprendiz fez sinal com a cabeça que entendeu, mas seu rosto demonstrava dúvida e desconforto - ele tinha mais perguntas em sua mente do que seu irmão aparentemente teria condições de responder.
-Vamos nos mexer. Como eu disse, não temos tempo para ficar aqui.
E assim foi seu reencontro. Pouco fraternal e direto, embaixo da sombra da floresta densa de Utala. Estava frio e úmido. A situação dos dois, porém, não permitia que fosse diferente. Além da pressa, eles eram quase como estranhos ligados apenas pelo sangue.
Beril pegou então uma sacola suja de terra que estava escondida em um arbusto, abriu-a e tirou de dentro uma faca em forma de foice e outros sacos menores. Letur observava tudo, curioso.
Pegando o objeto afiado em uma das mãos e dirigindo-se ao garoto, o mais velho disse:
- Essa faca vai me ajudar a achar comida. Ela serve para colher raízes, bulbos e plantas. Fique aqui um momento, que eu já volto. Qualquer coisa é só gritar.
Então o guerreiro saiu concentrado à procura de algo comestível e deixou o irmão mais novo na clareira. Letur, agora sozinho, começou a relembrar os momentos de caos da noite anterior. Foi quando veio à sua mente a imagem de seu amigo, Nica, a criança que estava ao seu lado quando Beril o raptou. Ele imaginou que fim doloroso e cruel aquele menino não acabou tendo, e como a sua vida foi curta. Quase pode ver seu amigo gritando enquanto era atacado com paus e lâminas, sendo tomado por um sentimento forte que lhe causou náusea e dor de barriga.
Lembrou-se também das brincadeiras com as outras crianças, dos sorrisos e risadas, e como todos aqueles que ele conheceu e aprendeu a considerar como sua família estavam agora mortos. Pensou que talvez devesse ter feito alguma coisa para que Nica viesse junto com ele, e sentiu uma culpa irracional, que parecia rasgar-lhe por dentro. Mas acabou por conformar-se em ver que não havia nada que ele pudesse fazer naquela situação em que estava, e chorou novamente, mas agora em profunda tristeza, encolhido como um derrotado que perde a vontade de viver.
Assim ficou, por quase meia hora a remoer o passado recente e torturar a si mesmo com imagens brutais e tristes, reais e imaginadas, até que Beril voltou carregando plantas e viu o estado em que Letur estava, mas não falou nada.
Brevemente os dois comeram então alguns vegetais crus, um punhado de frutas nativas que não conseguiram identificar muito bem, mas que tinham um gosto suavemente doce e aromático - e um pouco de sal úmido que Beril trazia em uma sacola escondida em suas vestes, que tinha um leve gosto de mar. Havia também água, cortesia de Beril, que carregava alguns pequenos odres cheios.
Enquanto bebiam, Beril falou:
- Pode beber mais se estiver com bastante sede. Nós não temos muita água, mas tem um rio no meio do caminho, não muito longe nem perto daqui. Lá a gente enche as bolsas de couro mais uma vez e descansa um pouco, certo?
Letur se limitou a responder bebendo mais um gole, esvaziando um dos odres até a última gota.
Após guardarem tudo, estavam prontos para seguir caminho.
O guerreiro então colocou a sacola suja nas costas, orientou-se pelo sol para situar-se nos pontos cardeais e, em seguida, os dois irmãos começaram a caminhar em silêncio com suas passadas lentas, atravessando a mata quase sem trilhas.
A.E. Melgraon I