Vou postar mais cedo do que planejava. Aqui está a primeira parte do segundo capítulo:
Espero que gostem, se surpreendam, e comentem.
Capítulo Segundo – A prole de Bavras (Parte 1)
Letur acorda atordoado, um raio de sol que conseguiu atravessar a copa das árvores atingia seu rosto. A fraca luz piscava e falhava conforme as folhas balançavam ao ritmo do vento suave, e a luz que atingia as pálpebras sonolentas e ainda pesadas do garoto causava uma leve irritação que o forçava para fora do mundo dos sonhos.
O menino leva as mãos à barriga dolorida fazendo caretas e resmungando baixinho, tal sonâmbulo que recém acordou de seu sono sem perceber que já estava desperto. Ele suspira ainda meio desacordado, boceja uma vez coçando a cabeça raspada e põe-se sentado na grama úmida e ainda coberta de geada. Sua toga cor de oliva está agora quase totalmente coberta de lama, molhada e cheia de pequenas folhas, galhos e pequenas pedras grudadas ao tecido sujo.
Ao olhar para o lado, ele arregala bem os olhos e quase cai para trás assustado – abre a boca como se fosse falar algo ou gritar, tampando-a logo em seguida com uma das mãos, percebendo que não seria prudente fazer o mínimo barulho sequer:
Era o homem que o raptara na noite anterior que dormia profundamente, roncava e babava a poucos metros, deitado do seu lado. Ele descansava de lado, com as costas viradas para Letur, em posição fetal. Não parecia tão ameaçador como outrora, quando ainda estavam no mosteiro e aquele homem brandia seu machado, mas a última coisa que passaria pela cabeça do monge seria acordá-lo.
Foi só então que ele percebeu que não estava mais em Utol, mas no meio da floresta que cercava toda a região, ou pelo menos era o que mata fechada de cedros altos à sua volta sugeria. Aquela floresta se estendia por algumas dezenas de quilômetros em quase todas as direções, não havia muito o que fazer, nem para onde fugir ou buscar abrigo. Aliás, ele não fazia idéia de para qual parte da mata de Utala tinha ido, e esse pensamento o angustiava e o enchia de medo, pois desconhecia totalmente a região.
De repente lhe veio um pensamento terrível, que estremeceu seu corpo e causou um calafrio: Lembrou das pequenas tribos que costeavam o Mar Circular, no limite sul da floresta. Lá estavam alguns pontos de reabastecimento de navios, que vinham do extremo sul trazendo escravos, animais exóticos, metais como ouro, plantas e bebida, entre outras mercadorias obscuras. Algumas histórias que ele havia ouvido no mosteiro diziam que, de quando em quando, crianças sumiam das redondezas para serem levadas como escravas ou para serem incorporadas às milícias mercenárias de vários lugares. Essas crianças supostamente eram criadas desde cedo nos costumes dos senhores que as comprariam a fim de se tornarem serventes mais ou menos fiéis, adaptados à língua e à cultura locais. Apesar dele não ver razão para que fosse o único escolhido entre outros aprendizes de monge para ser vendido aos comerciantes, o ataque ao mosteiro havia se dado sem nenhum motivo aparente.
Sendo assim, a possibilidade da investida ter tido o objetivo de capturar crianças parecia dar algumas respostas à sua mente infantil confusa em perguntas, embora fosse uma resposta que não fazia sentido e parecesse que alguma coisa estava errada nesse raciocínio, pois ele não se lembrava de ter visto outros raptos no meio da confusão. Porém, ele havia ficado a maior parte do tempo de olhos fechados, e quando abriu-os foi abduzido de lá. Então, ele realmente não poderia ter certeza de nada.
Mesmo assim, a simples dúvida era extremamente desconfortável. Ser um escravo parecia naquele momento o pior fim que ele, filho de um pai rico, um garoto fraco e sem habilidades manuais, poderia ter. “Vou fugir”, pensou.
Ao levantar-se de súbito preparando-se para correr, o garoto sente um leve puxão no tornozelo direito: Havia uma corda amarrada a ele. Seguiu todo o curso da corda rapidamente com os olhos até achar a outra ponta, e acabou por descobri-la atada com um grande nó a um dos braços do homem que dormia sonoramente. Vendo isso, abaixou-se devagar, sem fazer ruídos e sem tirar os olhos do outro. Ele nem piscava e olhava fixamente para o outro, como se a simples ação de fechar os olhos fosse uma questão de vida ou morte. Ele preferia o exagero a arriscar um descuido, e tremia como se uma brisa gelada soprasse por debaixo de sua toga, entrando nas roupas de lã que ele vestia por baixo e atingindo a sua pele.
Letur volta então a sua atenção para o nó que o prendia à corda. Tentou desamarra-lo por um momento, de todas as maneiras que conseguiu, apenas para descobrir que era um nó cego. Tentou novamente desfazer as amarras, bufando de raiva e ficando tão nervoso e concentrado que por um momento quase esqueceu que o seqüestrador estava logo ali do seu lado. O suor escorria-lhe pela testa, entrando nos seus olhos e atrapalhando a sua visão, o que o deixava ainda mais irritado. Quando estava finalmente transtornado pela euforia e frustração, desistiu ofegante. Teve vontade de chorar, e até deixou algumas lágrimas salgadas molharem as suas bochechas e sua boca, mas logo lembrou-se que estava preso e precisava livrar seu pé daquelas amarras, deixando a tristeza de lado imediatamente em prol da necessidade de se soltar e fugir.
Olhou avidamente para todas as direções, procurando alguma lasca de pedra ou qualquer coisa que pudesse ajudar a cortar a corda. Percebeu então que o ambiente estava mais silencioso do que quando ele acordara. Olhou para o homem e viu que ele não mais roncava, e começava a se mexer. Um mau sinal.
Vendo a urgência com que precisava se libertar, teve uma idéia: Aproveitando da sua elasticidade juvenil, botou-se a morder furiosamente o nó que estava logo acima do seu tornozelo. Alguns fiapos entravam entre seus dentes e a gengiva, causando muita dor, mas a adrenalina o ajudava a suportar. Isso, entretanto, não era de todo mau pois significava que, para sua sorte, a corda era de péssima qualidade e começava a desfiar-se. Após alguns momentos e uma sucessão de mordidas e puxões fortes com as mãos, a corda arrebentou.
Quando finalmente estava solto, começou a tirar as farpas dos dentes o mais rápido que podia, mas a dor que sentiu após arrancar as primeiras era simplesmente aguda demais. Ele acabou então tendo que tirar várias farpas lentamente. Cada fragmento da corda que era tirado fazia com que Letur contraísse seu corpo todo e apertasse bem os olhos pela agonia, enquanto sujava as mãos com seu próprio sangue e soltava gemidos doloridos quase inaudíveis – alguns pedaços da corda haviam entrado bem fundo. Por fim, limpou apressadamente os dedos nas vestes já sujas e cuspiu um pouco de saliva avermelhada no chão de terra coberto de raízes e folhas.
Letur ficou impaciente logo que se viu livre. Pensou em correr, mas logo lhe veio à mente que o homem talvez fosse capaz de seguir seus rastros facilmente e alcançá-lo, se desejasse. Talvez ele tivesse um motivo em especial para tê-lo raptado, e nesse caso provavelmente não iria desistir tão fácil. Ao fim de alguns segundos de indecisão e idéias que obviamente não iriam funcionar, Letur chegou a duas possibilidades plausíveis de escapar, que não lhe agradavam nem um pouco:
- Ou ele poderia correr o máximo que conseguisse para longe, ficando completamente perdido e sob o risco de ser encontrado, ou arranjava uma maneira de dar um jeito no guerreiro que dormia, podendo assim voltar para o mosteiro procurando por sobreviventes e ajuda.
Contrariado, resolveu abater o infeliz que ainda estava deitado no chão e fugir. Já havia até achado um pedregulho mais ou menos pesado que servisse aos seus propósitos, embora a grande pedra estivesse um pouco longe. Foi até ela, que tinha mais ou menos o tamanho da cabeça de um javali adulto, e olhou mais uma vez em dúvida para o estranho, que permanecia da mesma maneira que antes.
Suando frio e com as pernas bambas de medo, abaixou-se e fez força para levantar o pedaço de rocha, tão pesado que ele quase não conseguiu tirá-lo do chão. Suas juntas dos dedos latejavam e ameaçavam ceder quando a pedra se ergueu, mas era a única coisa suficientemente grande nos arredores, e a necessidade o deu motivação. Foi com dificuldade e as costas completamente arqueadas para frente que ele abraçou a pedra e caminhou até chegar perto da cabeça do outro. Hesitou por um tempo a imaginar os miolos tingidos de sangue espalhados pelo chão da floresta: Nunca tinha matado alguém antes, e estar na iminência de ser um assassino lhe embrulhava o estômago e eliminava ainda mais suas forças do que o peso sobre seus braços. Ele nunca pensou que tiraria uma vida humana em toda a sua vida, aquele momento era para ele uma dor tanto física quanto psicológica.
Quase não conseguindo segurar mais a rocha, depois de observar o guerreiro adormecido por alguns instantes, o pequeno monge resolveu que largar a pedra sobre as pernas do outro seria o suficiente. “Não preciso matar” – Foi o pensamento que lhe veio à cabeça.
Deu um passo para o lado e olhou rapidamente para o rosto do guerreiro para ver se ele ainda dormia, mas ao fazer isso começou a sentir um grande incômodo. Ele olhou para aquela face coberta de barba malfeita, com os cabelos escuros e desajeitados, e percebeu que aquele homem lhe chamava a atenção por algum motivo. Naquela hora um mal estar percorreu seu corpo, passando pelo estômago e subindo até seu peito, e ele não gostou nem um pouco daquela sensação...
Não mais que de repente, tomado de súbito pavor, Letur fez uma cara de espanto extremo e imenso arrependimento, seu rosto se transfigurou pelo susto e sua boca abriu-se o máximo que podia, tal foi a força da emoção que tomou o seu corpo: Aquele homem lhe era familiar. Foi quando, abrindo bem os olhos desesperados e marejados de suor, gritou mais alto do que havia gritado em toda a sua vida:
-Beril!!!
A.E. Melgraon I