Medo
Pela trilha de gramíneas, caminhava o velho Castor. Na sua mão esquerda trazia o seu velho lampião, cujo fogo crepitante iluminava tudo à sua volta. Era tão tarde que não havia sinal de estrelas no céu escuro, deixando a terra imersa num profundo breu.
Era meia-noite quando Castor havia se aprontado para começar a sua busca no matagal de Riacho das Três Pedras. Entre outros motivos, queria acabar com a superstição que havia tomado conta da comunidade. Diziam que o fantasma do coronel Jerônimo estava assombrando a cabana que ficava no meio do matagal.
Até então toda essa conversa pouco importava para Castor Gonçalves, fazendeiro aposentado de quarenta e três anos, que sempre foi de ficar na dele, cuidando de sua pequena propriedade em Riacho das Três Pedras. Mas um dia antes de sua empreitada pelo matagal, seu compadre Jucelino apareceu para lançar um desafio.
- Ocê num vai cumpadre, causa que cê é muito medroso. Eu duvido que ocê vá lá na cabana e traga o pijama do coroné Jerônimo - disse Jucelino Feitosa, um homem corpulento que lembrava muito uma morsa.
- E por causa de quê que eu ia me dá o trabaio de sair da minha confortável rede e embrenhar nesse mato véio cheio de inseto?
- Uai, se ocê trouxer as roupa do homi, vai provar pra toda essa gente que ocê é corajoso e num acredita em fantasma coisa nenhuma. E eu conheço umas cumadre que gosta de homi corajoso. Ocê sabe a Gina? Aquela que era casada com o cumpadre Ernesto?
- Ora se sei - disse Castor abrindo um sorriso largo - E tá sorteira é?
- Pois é.
Castor bateu com tanta força na mesinha que suas pernas acabaram cedendo, fazendo desabar o móvel ao chão. Ele fingiu não prestar atenção e levantou-se tão rapidamente que chegou a espantar Jucelino - Então tá certo, amanha cedinho eu vou bater na sua casa com as roupa do homem.
- E num tente me enrolar não. Que eu trabaiava pro coroné e lembro muito bem do pijama que ele usava toda santa noite.
- E eu lá sô homi de ficar enrolando os outro? - Castor coçou a barriga e foi levar Jucelino até a porta. Mas ainda tinha uma pergunta engasgada na garganta - E por causa de quê ocê quer logo o pijama do homi?
- Homi, cê tá criando causo? Tá cum medinho, é?
- Não. Dexa pra lá. Ocê me responde amanha quando eu trouxer as ropa.
Castor passou o resto daquele dia se preparando. Foi em tudo quanto era loja comprar alho e algumas outras coisas que, acreditava ele, afastariam os maus elementos. A noite chegou rápido. Apanhou um casaco surrado e sua espingarda do século dezenove. Na cozinha pegou o velho lampião e guardou alguns lanches na mochila de couro. Estava pronto para sair à caça do pijama do coronel Jerônimo.
A trilha de gramíneas era sinuosa e acabava aos pés de uma enorme rocha que mostrava a entrada do matagal. Castor suspirou e adentrou a mata. A vegetação, antes rasteira, agora batia-lhe nos joelhos, causando incômodo e coceira. Pensou em voltar para pegar calças mais grossas e confortáveis, logo desistiu da idéia, queria pegar o pijama e sair dali o mais rápido possível.
Castor sabia que teria que andar mais alguns metros até chegar à cabana. Começou a se perguntar o porquê de alguém tão rico e poderoso como o coronel Jerônimo ter uma casa tão simples num lugar abandonado, já que já havia estado na cabana uma vez, e na época era bem diferente do casebre abandonado que agora estava diante dos seus olhos.
Engoliu em seco ao ver a degradação do lugar. Duas janelas pendiam soltas, presas à uma dobradiça enferrujada, balançando e emitindo um rangido desconfortável, que cortava a noite junto com o som do vento vindo da calha. As paredes estavam cobertas de musgo verde, e algumas partes continham grandes sulcos. A única porta, ainda estava intacta, alheia à destruição do lugar. Era a mesma porta, o mesmo cedro, a mesma maçaneta de ferro. Era um contraste perturbador, mas Castor não sabia o motivo.
Deu mais alguns passos, até que algum temor desconhecido o fez retirar a espingarda da bolsa. Seus olhos percorreram toda a fachada da casa. Mais detalhes do abandono ficavam visíveis, à medida que se aproximava, iluminados pela chama do lampião. Os restos do que foi uma cadeira de balanço, agora jaziam abandonados sobre uma varanda fria, como a noite. E o outrora luxuoso tapete, que servia para intimidar os visitantes por causa do incomum desenho, agora se encontrava preso a um prego de uma viga da varanda, não passava de um pedaço de pano sujo, que dançava ao vento, feito uma bandeira.
Castor pousou o lampião no chão e girou a maçaneta de ferro, que não estava enferrujada, ao contrário das dobradiças das janelas. O interior da casa estava devastado. Logo na sala uma mesa, de uma perna só, caída ao chão, bloqueava a passagem a um quarto. Um pano branco e empoeirado, mal cobria o armário desgastado, cujas portas escancaradas, revelavam um interior coberto de teias de aranha e corroído por cupins. Na cozinha, pratos e talheres misturados à panelas sujas de barro e dejetos de animais.
Castor afastou a mesa e, segurando o lampião na mão esquerda e a espingarda na direita, adentrou o quarto.
Parecia ser mais escuro que o resto da casa. Os lençóis da cama estavam desarrumados e sujos de terra, assim como várias roupas que estavam caídas do lado de um espelho. Enquanto vasculhava o monte de roupas à procura do pijama, Castor escutou um baque surdo do lado de fora da casa. Correu imediatamente até a porta e analisou a escura sala. Nada estava fora do lugar.
Ao ver o tapete balançando ao vento, em devaneio, tentou distinguir alguma coisa daqueles desenhos misteriosos.
Despertou, num susto, ao presenciar a queda da janela, que antes mantivera-se erguida por causa de uma dobradiça enferrujada. Depois voltou-se para o quarto de modo a achar o pijama e sair logo dali. Primeiro procurou na cama, depois na cômoda perto do espelho, sob o colchão, atrás do armário...
Nada.
Quando estava para desistir, ouviu um barulho atrás de si. Ao tentar se virar, sentiu algo o empurrando pelas costas, derrubando-o. Garras cravaram-se no seu ombro, fazendo-o berrar de dor. Enquanto lutava para se soltar, olhou pelo canto dos olhos, e conseguiu ver que era um animal que estava o atacando.
Uma cotovelada certeira no focinho do bicho o fez recuar, dando espaço para tatear a procura da arma, perdida durante a queda. Na sua frente, uma onça, de mais ou menos um metro, preparava um novo ataque, obrigando Castor a agir rapidamente. Rolou até a saída do quarto, e tentou se levantar. A porta que levava para fora da cabana estava fechada.
Enquanto corria pela sala, procurou desesperadamente algum outro lugar para se esconder. Foi então que lembrou da cozinha. Entrou e tentou fechar a porta, não conseguindo, pois estava emperrada devido à ferrugem. Procurou alguma faca, ou coisa semelhante. Só achou uma panela de ferro, a qual apanhou e virando-se para a onça, começou a encará-la, tentando deixar de lado o medo.
- Calma bichano, num quero te machucar. Vai embora.
O animal pareceu vacilar por um instante. Abriu a boca arreganhando seus enormes dentes. Castor começou a jogar colheres para perto da onça. Esta recuou e pulou pela janela aberta.
Castor respirou aliviado e olhando ao redor, viu que a cozinha estava iluminada por uma fonte de luz que vinha de outra porta à esquerda. Caminhou lentamente e entrou no que parecia ser um porão. Havia caixas e mais caixas estocadas uma em cima da outra, mas o que chamou a atenção foi uma grande rachadura na parede. Castor se aproximou, e espiando pelo vão, enxergou um corredor iluminado por uma luz opaca.
- Num to ligando pra isso não. Vou pegar o pijama e cair fora daqui – sussurrou ele, indo novamente para o quarto.
O lampião estava caído ao chão, mas por sorte não havia quebrado, e sua chama crepitante ainda iluminava o quarto. Castor apanhou a arma, que havia caído do lado do espelho, e depois recomeçou a busca pela peça de roupa. Após mais alguns minutos, um pensamento absurdo tomou conta de sua cabeça.
“E se o pijama tiver lá no porão? Ah... besteira... Mas num faz mal nenhum dar uma olhada, vai que eu encontre alguma coisa boa...”
Em poucos segundos, Castor viu-se novamente diante do vão na parede, só que desta vez carregava consigo o lampião e a espingarda. Tentou alargar a rachadura batendo com um pedaço de pedra encontrado no porão. Não demorou a abrir uma passagem grande o suficiente para que um homem do seu tamanho pudesse passar.
O longo corredor possuía várias janelas minúsculas que se projetavam em cada parede, de onde saíam pequenos raios de luz que iluminavam todo o caminho. Parecia que havia algum rio, ou algo semelhante por perto, pois Castor conseguia ouvir claramente o som de água em movimento.
Não foram necessários muitos passos até chegar a uma sala pequena, onde se encontravam uma escrivaninha e uma única poltrona de couro. Havia também um cabide, e pendurado nele, um pijama prateado feito de seda.
Boquiaberto, Castor se aproximou da roupa. Entusiasmado pegou-a e a guardou na bolsa, para depois examinar o lugar. Na escrivaninha, dois livros chamaram sua atenção, estavam cheios de mapas e anotações.
Castor abriu a única gaveta da escrivaninha e tirou de dentro um retrato empoeirado. Nele, dois homens sorridentes estavam lado a lado. Castor conhecia muito bem um deles, e o outro possuía um rosto bem familiar. Imediatamente, largou o item e continuou a mexer na gaveta. Encontrou um pequeno álbum de fotografias datado de 1979. Viu os mesmos dois homens em várias páginas, pareciam ser grandes amigos. Encontrou também uma anotação que lhe chamou muito a atenção. Mas o objeto mais intrigante veio a seguir.
Um papel envelhecido e bem fino mostrava um outro desenho, igualmente estranho ao presenciado por Castor do lado de fora da cabana. Eram diferentes, mas de certa forma eram muito semelhantes.
Sem pensar duas vezes, Castor guardou tudo e saiu triunfante da pequena câmara. Do lado de fora da cabana, tomando cuidado para não ser surpreendido por nenhum animal selvagem, despregou o tapete e também o guardou na bolsa. Estava voltando para casa e trazia consigo um grande presente.
-Jucelino, vai ver quem é homi – gritou uma voz esganiçada.
- Calma muié – bradou um sonolento Jucelino - mas quem será as seis da matina?
As batidas fortes na porta pareciam ter acordado o cachorro do vizinho que agora latia incessantemente. Jucelino vestiu o seu roupão e coçando a cabeça foi abrir a porta.
Encontrou Castor Gonçalves, seu velho amigo.
- Ora, tinha esquecido de ocê, vamo sair daqui que a muié ta brava – Jucelino colocou a cabeça para dentro de casa – Joana, eu volto já, vou ali com o Castor.
O amanhecer trazia um cheiro agradável da chuva fina que caía no povoado. Castor e Jucelino agora procuravam um lugar para conversarem sossegados. Encontraram o refúgio na soleira da propriedade dos Gonçalves.
- Ocê duvidava de mim, mas mesmo assim eu trouxe seu pijama – disse Castor, tirando de dentro da bolsa a requintada peça de roupa.
- E num é que ocê foi mesmo? Essa lenda do fantasma num ta com nada. Ocê viu o fantasma?
- Vi foi uma danada de uma onça. Mas também vi outras coisas bem mais interessantes.
Castor mostrou as fotografias do álbum, e com um sorriso perguntou:
- Reconhece o homi da foto? Esse da esquerda?
- Ora, é ocê! E do lado do coroné Jerônimo.
- Não. É o meu pai, João Gonçalves.
- O que que o seu pai ta fazendo junto do coroné?
- Eu andei olhando essas anotações aqui – Castor pegou um dos papéis que havia trazido da cabana – e vi que meu pai trabalhava para o coroné Jerônimo. Ele era o braço direito do homi, e depositava muita confiança nele.
Jucelino caiu na gargalhada – Uai, eu trabaiava pro coroné e nunca que havia visto ele lá.
- Sabe que o coroné era rico, e que possuía muitas terras depois do rio né? Meu pai administrava a terra mais produtiva enquanto o coroné tratava dos negócios dele aqui em Riacho das Três Pedras.
- Não to entendendo aonde ocê quer chegar – comentou Jerônimo.
- O coroné morreu e ninguém soube na verdade com quem ficou as terras não foi?
- Foi. E o que isso tem a ver com o falecido seu pai?
- Aí vem a parte mais interessante – Castor esfregou as mãos de prazer - Encontrei essa cópia do testamento, que deixava metade dos bens do coroné para João Gonçalves, o meu pai.
- Isso quer dizer... – Jucelino se levantou num salto – Ocê ta rico!
Castor riu – Calma, essa ainda não é a melhor parte. Ocê viu a data do álbum? 1979. E quem que aparece nas foto? Meu pai.
- E o que que tem?
- Meu pai só tinha morrido em 77.
Jucelino fechou a cara – Então isso aí na foto é um fantasma?
- Claro que não. Significa que meu pai ainda tava vivo quando tirou esta foto.
- Ainda num to entendendo essa história. Ocê andou bebendo Castor? Se ele ta vivo, aonde é que ele ta então?
- Num tenho certeza, mas talvez saiba por onde começar a procurar – E finalmente
Castor tirou da bolsa, o tapete e a outra folha fina. Colocou esta por cima do primeiro. As figuras formaram um confuso mapa.
- Esse num é o mapa da capital? – perguntou Jucelino.
- É. Tentei relacionar os desenhos durante boa parte da noite inteira. – Castor olhou para Jerônimo com os olhos molhados de lágrimas – Jucelino, meu pai pode estar vivinho da silva. E vou procurar por ele. Na capital.
As vozes cessaram, deixando o tranquilo som da chuva preencher completamente o ar. Jucelino batendo as mãos subitamente, disse:
- Então ocê num quer saber da cumadre Gina?
Castor riu e pondo-se de pé deu uma batida amigável no ombro de Jucelino – Só descobri essas coisas por causa de que ocê me ajudou. Só então pude superar o medo. E por causa disso encontrei essa grande surpresa – Castor suspirou - Quero que cuide da minha propriedade enquanto estiver fora.
- Ocê é esperto né? Só olho sua casa se me trouxer da capital, aqueles doces enlatados que eles fazem lá.
Os dois se abraçaram repetindo o gesto feito pelo pai na última fotografia do álbum.
Pela estrada de gramíneas caminhava o velho Castor. Trazia na mão esquerda a coragem para expulsar os medos, e na direita a determinação para encontrar o pai.
Enfrentou os temores e descobriu tesouros que jamais poderia imaginar. Agora Castor segue para a capital e sabe que irá enfrentar outros medos para só assim encontrar por trás deles a verdade e a grande recompensa que o espera. Seu pai.
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