Poizé, estamos na reta final.
Como vou viajar e so volto sexta, decidi postar este capítulo antes. Aproveitem.
O ultimo capitulo sai sábado, comentem bastante.
6 - Redenção
Ela andou em direção a ele, em direção à poça de sangue. Um eco lhe respondeu, outro som de passos vindo do quintal além da porta da cozinha.
Alice May parou onde estava, em silêncio, aguardando. Os passos continuaram e a porta de tela se abriu. Um homem entrou sem olhar para onde estava indo. Vestia um casaco preto dos Servos sobre o macacão azul e sem mangas. Havia machas de sangue acima de seus joelhos. Seu nome era Everett Kale, auxiliar de açougueiro. Uma vez ele saíra com Jane Hopkins e dera a uma bem jovem Alice May uma das flores do ramalhete que havia trazido para Jane.
A estrela de Alice May resplandeceu e Everett ergueu o olhar. Viu Alice May, a estrela, o rifle apontado. Sua mão procurou o facão de cabo de osso que chacoalhava na bainha de açougueiro na lateral do macacão.
O tiro fez um barulho bem alto em um ambiente limitado, mas Alice May não hesitou. Puxou a alavanca, a ação tão rápida que o som pareceu ter se retardado, e ela despejou outro cartucho no homem, que tinha caído porta afora. Ele já estava morto, mas ela queria ter certeza disso.
O barulho saudou Alice May quando ela saiu de casa. Berros e brados surpresos. Havia três homens no quintal, olhando o açougueiro morto no chão. Tinham entrado na fábrica de cerveja caseira de Bill e estavam todos segurando garrafas de uma cerveja escura e densa. Deixaram as garrafas cair quando Alice saiu atirando.
Estavam armados com pistolas automáticas novas e finas, que se ajustavam aos pequenos coldres dos cintos presos às túnicas pretas. Nenhum deles conseguiu sacar a pistola. Em segundos, estavam todos no chão, mortos, seu sangue se misturando à cerveja escura e espumante, estrebuchando sobre uma cama de vidro quebrado.
Alice May os observou de um lugar estranho e sombrio dentro da própria cabeça. Ela os conhecia, mas não sentia remorso. Açougueiro, padeiro, um inútil e um minerador. Todos moradores da cidade.
Suas mãos tinham comandado a matança. As mãos e o rifle. Mesmo agora as mãos estavam recarregando, tirando balas do cinto e colocando-as com um clique gratificante no pente da pistola.
Alice May percebeu que não exercia nenhum controle consciente sobre as mãos. Em algum momento entre abrir a porta da frente da casa do tio Bill e entrar na cozinha, ela havia se transformado em uma observadora dentro do próprio corpo. Mas não se amedrontou com isso. Fizera o que era certo e percebia que ainda tinha domínio sobre os próprios atos. Não era um zumbi ou coisa parecida. Podia decidir aonde iria em seguida, mas seu corpo – e as armas- a ajudariam a fazer o que tinha que ser feito quando chegasse ao seu destino.
Ela se desviou dos corpos que ainda se mexiam e saiu pela porta dos fundos. Deu em outra rua vazia com o inclemente vento quente, a poeira e a completa ausência de pessoas.
Deveria ter surgido uma multidão para ver o porquê do tiroteio. Os dois policiais da cidade chegariam cavalgando seus dois cavalos cinzentos. Mas só havia Alice May.
Ela desceu a rua a caminho da estação de trem. Os saltos das botas esmagavam o cascalho. Teve a impressão de que nunca tinha ouvido aquele barulho singular, não com tanta clareza e tão alto.
O vento mudou de direção e soprou contra ela, mais forte e quente do que nunca. A poeira subiu, uma poeira densa que carregava aglomerados de pedregulho. Porém nenhum atingiu Alice May, nenhum entrou em seus olhos. O vestido branco os repelia, o vento parecia se dividir ao chegar nela, com grandes correntes de pó e pedrisco voando dos dois lados.
Uma porta se abriu à sua esquerda e ela estava de frente para a casa, o dedo no gatilho. Um homem deu meio passo para fora. O velho Sr. Lacker, trajando seu melhor terno, uma bandeira dos Servos do Estado na mão trêmula. Mão esquerda.
- Fique dentro de casa! – Alice May ordenou. Sua voz saiu mais alta do que esperava. E ribombou em seus ouvidos, facilmente cortando o vento.
Lacker deu outro passo e levantou a bandeira:
- Fique dentro de casa!
Outro passo. Balançou a bandeira outra vez. Então enfiou a mão no paletó e pegou uma pistolinha no bolso, uma Derringer de tiro único, toda feita de metal antigo e manchado.
Alice May puxou o gatilho e seguiu em frente, enquanto de súbito brotava sangue da lapela do melhor terno do velho Lacker, uma casa de botão vívida, de vermelho escarlate.
Ela recarregou enquanto andava. Por dentro estava gritando, mas nenhum som saía. Não queria ter matado o Sr. Lacker. Ele era idoso, inofensivo, não representava perigo. Não poderia tê-la atingido nem se estivesse ao seu lado.
Mas suas mãos e o rifle não concordavam com isso.
Alice May sabia para onde tinha de ir. A estação de trem. Onde o Mestre estaria em menos de uma hora. Tinha de ir lá e matá-lo.
Não parecia sensato andar pela rua principal, então Alice May cortou caminho pelo campo atrás da escola. Do alto do corte além do campo, ela olhou para os dois lados, o da estação e o da via férrea.
O trem especial já estava na plataforma. Uma locomotiva, um vagão a vapor e um único vagão privativo. A locomotiva tinha um anteparo colocado em frente à caldeira, em cima do limpa-trilhos. Um anteparo com a tocha flamejante dos Servos. O trem devia ter vindo de Jarawak City em marcha a ré, pensou Alice May, só para que o balcão na parte de trás do vagão privativo ficasse de frente para a curva da avenida principal.
Havia muita gente reunida naquela curva. Todas as pessoas que Alice May esperava encontrar nas ruas. Tinham chegado cedo para garantir que não fossem tachadas de partidárias tardias ou relutantes. Todos os habitantes da cidade tinham de estar ali, muitos deles trajando o uniforme dos Servos e todos eles agitando bandeiras negras e vermelhas.
Alice May se esgueirou pelo corte e andou no meio dos trilhos. Era por aquele caminho que ela tinha chegado quando bebê, tantos anos antes. Mas por algum motivo, não achava que tinha vindo de Jarawak City.
Toda a atenção estava voltada para a parte traseira do trem, embora fosse óbvio que o Mestre ainda não havia aparecido. Estava uma algazarra grande demais para isso, com a multidão aplaudindo e a banda da cidade tocando alguma música irreconhecível. Os jornais todos faziam alarde do silêncio total que tomava qualquer público quando o Mestre discursava.
Alice May atravessou a linha férrea e foi lentamente para o lado oposto da locomotiva. Assim que chegou ao vagão a vapor, um maquinista desceu. Vestia um macacão de brim e um boné preto dos Servos, completado com o distintivo da tocha em chamas.
As mãos de Alice May se mexeram. A culatra do rifle estalou e o maquinista caiu trilho abaixo. Ele rastejou por um instante tentando se levantar, enquanto Alice May esperava com muita calma que a multidão berrasse de novo e a banda fizesse um crescendo de bateria e metais. Quando o fizeram, ela deu um único tiro na cabeça do maquinista e passou por cima dele.
“Sou uma assassina”, pensou. “Muitas e muitas vezes.”
“Eu gostaria que eles ficassem fora do meu caminho.”
Alice May subiu no balcão dianteiro do vagão privativo. Tentou olhar lá dentro, mas a janela era de vidro escuro.
Alice May tentou a porta. Não estava trancada. Abriu-a com mão esquerda, o rifle preparado.
Esperava dar em alguma sala de estar, talvez mobiliada com opulência. O que viu foi um corredor inacreditavelmente comprido, que se estendia a distância, o final fora do alcance de visão.
A multidão de repente ficou em silencia do outro lado do trem.
Alice May entrou no corredor e fechou a porta atrás de si.
Estava escuro com a porta fechada, mas sua estrela reluzia com mais brilho, iluminando o caminho. Afora o tamanho e o fato de que o final estava envolto em nevou ou fumaça, o corredor era semelhante ao de qualquer outro trem que Alice May já tinha visto. Madeira polida, equipamentos de metal e portas que davam paras as cabines, a alguns passos de distância umas das outras. A única coisa estranha era que as portas tinham janelas de vidro escuro, por onde não se enxergava nada.
Alice May ficou tentada a abrir uma das portas, mas resistiu à tentação. Seu negócio era com o Mestre, e ele estava discursando do outro lado do trem. Quem sabe em que encrenca ela se meteria ao abrir uma porta?
Ela continuou a andar, da forma mais silenciosa possível, pelo corredor. Dava alguns passos e ouvia algum barulho; congelava por um instante, o dedo no gatilho. Mas os sons não eram de gente, nem de armas, nem de perigo. Vinham do outro lado das portas das cabines, e eram de mar, de vento ou de chuva caindo.
O corredor prosseguia e Alice May não parecia estar chegando perto do final. Começou a andar mais rápido e depois a correr. Ela tinha de chegar lá antes que o Mestre terminasse o discurso, antes que seu veneno dominasse seus pais adotivos e todo mundo que ela conhecia.
Cada vê mais rápido, os saltos das botas tamborilando, a respiração áspera, mas ainda sentindo frio, um frio gélido. Ela se sentia como se empurrasse uma barreira que a qualquer momento se quebraria, e então ficaria livre daquele corredor sem fim.
Ela realmente se quebrou. Alice May invadiu uma sala para fumantes, cheia de Servos, um aposento comprido e lotado de uniformes pretos e vermelhos.
As mãos e os olhos de Alice May começaram a atirar antes que ela sequer se desse conta de onde estava. O rifle se esvaziou no que pareceram apenas alguns segundos, mas todas as balas acertaram na mosca. Servos desmoronavam nas cadeiras, contorciam-se no chão, mergulhavam para se proteger, agarravam suas armas.
Alice May jogou o rifle para o lado e pegou um dos revólveres, num movimento tão rápido que, para os assustados Servos, o rifle pareceu ter se transformado nas mãos dela. Mais seis Servos morreram quando sua oponente moveu o cano da arma com a mão esquerda, os tiros ressoando juntos num instante terrível.
Alice May enfiou um dos revólveres no coldre e pegou o outro, a mão direita e a mão esquerda numa coordenação perfeita e antagônica. Mas não havia mais ninguém em quem atirar. A fumaça do tiro misturada à de charutos e cachimbos traçava um torvelinho até os ventiladores no teto. Servos soltaram um último sopro de vida tossindo sangue, e os últimos gritos cessaram.
“Então isso é o que as pessoas chamam de carnificina”, pensou Alice May ao inspecionar o aposento, olhando calmamente de algum lugar dentro de si enquanto uma outra parte observava os estremecimentos e convulsões derradeiras dos homens e mulheres agonizantes, em meio ao sangue, miolos e urina que se espalhavam e empapavam o carpete antes azul.
Suas mãos – mas não as suas mãos, pois com certeza estas estariam trêmulas – recarregaram os revólveres enquanto ela observava. Em seguida, elas pegaram o rifle e o recarregaram.
A porta se abriu do outro lado da sala dos fumantes. Alice May viu de relance as costas do Mestre, captou algumas de suas palavras proferidas, cada uma carregando a insinuação de um grito.
Seu rifle se ergueu quando uma jovem de roupa preta e vermelha entrou na sala.
Era Jane.