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Tópico: O Baú

Visão do Encadeamento

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    Antepenúltimo capítulo da saga.


    Medo e Morte



    Alice May tentou conversar com Jake e Stella sobre Bill, mas eles não lhe deram ouvidos. Tinham medo de falar sobre os Servos e não aceitavam o fato de que algo fora feito a Bill. Do seu ponto de vista, ele simplesmente tinha decidido seguir a maré.

    - Quando as coisas estão difíceis, as pessoas acreditam em qualquer coisa que ponha a culpa nos outros – disse Jake. – Bill Carey é um homem bom, mas o salário dele não subiu com a inflação. Acho que ele se agüentou por um tempo e que o Mestre de alguma forma lhe deu esperança.

    - Esperança misturada com ódio – retrucou Alice May. Ela ainda estava enojada por ter visto Bill com o uniforme dos Servos. Era ainda pior que a ferrotipia de Jane. Mais real e mais próximo. Era um erro, um erro, um erro.

    Uma batidinha na porta interrompeu a conversa. Jake e Stella trocaram olhares assustados. Alice franziu a testa, zangada por seus pais adotivos ficarem com medo de algo tão simples como uma batida na porta. Eles não teriam demonstrado medo antes. Ela saiu como um tufão para abrir a porta, correndo pela sala numa velocidade que derrubou o retrato do avô de Stella no chão. O vidro se estilhaçou e a moldura se dividiu em duas.

    Não havia ninguém lá fora, mas uma notificação fora empurrada por debaixo da porta. Alice May pegou o papel, viu o preto, o vermelho e a tocha em chamas e entrou em casa pisando forte, batendo a porta atrás de si.

    - O Mestre está vindo para cá! Esta tarde! – exclamou, balançando o papel diante de si. –Num trem especial. Ele vai discursar do trem.

    Pôs o dedo na última linha.

    - Aqui diz que “Todos devem comparecer” – disse ela, sombria. – Como se não pudéssemos escolher quem queremos ouvir.

    - É melhor a gente ir – murmurou Stella. Jake assentiu.

    - O quê? – gritou Alice May – Ele é só um político! Fiquem em casa.

    Jake fez que não com a cabeça.

    - Não. Não. Já ouvi dizer o que acontece quando as pessoas não vão. Temos de pensar na loja.

    - E meu avô era um homem dócil, conciliador – Stella disse baixinho. Ela olhou para os cacos de vidro e a pintura amassada. – Não vamos dar a eles um motivo para investigar nossa família. Precisamos ir.

    - Eu não vou – anunciou Alice May.

    - Você vai, enquanto viver nesta casa – vociferou Jake, numa rara demonstração de mau humor. – Não vou deixar que a vida de todos nós e a nossa fonte de sobrevivência corram risco por causa dos caprichos de uma menina tola.

    - Eu não vou – repetiu Alice May. Sentia-se estranhamente calma, claramente mais calma do que Jake, cujo rosto enrubesceu com súbita raiva, e Stella, que estava mortalmente pálida.

    - Então é melhor você ir embora de uma vez por todas – disse Jake, feroz. – Vá procurar seus pais verdadeiros.

    Stella chorou enquanto ele falava e se agarrou ao braço dele, mas não disse nada.

    Alice May olhou para os únicos pais que conhecera. Sentiu como se estivessem numa cena de cinema, com todos presos ao roteiro. Havia certa inevitabilidade nas palavras de Jake, mas ele parecia tão surpreso ao dizê-las quanto ela ficara ao ouvi-las. Ela viu o terror no fundo dos olhos dele e também a vergonha. Ele já estava com medo da pessoa que estava se tornando, com medo do lugar para onde seus temores o estavam levando. – Vou fazer as malas – anunciou Alice May, num tom de voz que soou débil aos seus próprios ouvidos. Não era o Jake de verdade que havia falado, ela sabia disso. Ele era um homem acanhado. Não sabia como ser audaz, e a raiva era a única válvula de escape que tinha para admitir sua covardia.


    Alice May não arrumou suas malas. Passou no seu quarto para pegar um par de botas de montaria e depois subiu para o sótão. Abriu o baú, soltando um suspiro aliviado ao ver que as correias e a fechadura não ofereciam resistência. Pegou a caixa em que estava escrito “munição” e a colocou no chão; ao lado dela pôs os revólveres guardados nos coldres e o cinto.

    Em seguida se despiu, ficando só com as roupas de baixo, e colocou o vestido branco. Ficou perfeito em seu corpo, como já imaginava. No ano que se passara desde a primeira vez que vira o vestido, havia crescido o suficiente para que does botões abertos pudessem descarrilar os trens de pensamentos e conversas da maioria dos garotos que conhecia – e de alguns dos homens.

    O vestido não era decotado, mas apertava seus seios e cintura antes de alargar-se, e era ousadamente curto, com seus três centímetros acima dos joelhos. O colete também era feito sob medida para mostrar suas formas. O estranho é que parecia ser bordado com tranças de fios de cabelo. Cabelos louros, de cor idêntica aos dela.

    O vestido, mesmo sem o colete, era frio ao toque, como se tivesse saído de um baú de gelo. A temperatura do lado de fora tinha feito o mercúrio subir até o topo no velho termômetro que havia ao lado da porta da cozinha, e o sótão estava abafado. Alice May não estava nem sentindo calor.

    Em seguida, ela prendeu os revólveres. O cinto descansava em seus quadris, com os coldres mais abaixo, contra as coxas. Descobriu que no lugar onde ficava o cinto o vestido era revestido com uma camada dupla de tecido, para evitar que ficasse gasto, e que havia pequenos laços para prender a alça de ambos os coldres ao vestido.

    Abriu com facilidade a caixa de munições. Dentro, havia uma dúzia de latinhas azuis. Pro algum motivo, Alice May não se surpreendeu ao ver as descrições, escritas à mão em etiquetas grudadas às latas. Seis delas levavam o rótulo de “Colt .45 Fourway Silver Cross” e seis o de “Winchester 44-40 Silvercutter”.

    Ela abriu uma lata de .45 Silver Cross. Os cartuchos bojudos de latão estavam cheios de balas de chumbo, mas na cabeça de cada uma delas havia quatro linhas grossas de prata. Alice May sabia que era prata de verdade. Os cartuchos para Winchester eram parecidos, mas as balas eram de prata ou de chumbo recoberto de prata.

    Alice May carregou rapidamente ambos os revólveres e depois o rifle, e encheu os espaços no cinto com os dois tipos de cartuchos. Por instinto, sabia que munição usar em cada arma e pôs somente cartuchos da .45 Silver Cross à esquerda da fivela com a insígnia de águia, e cartuchos de 44-40 à direita.

    Mesmo com o rifle ainda no chão, os revólveres e o cinto carregado de balas já faziam bastante peso sobre seus quadris e coxas.

    Ainda havia mais uma coisa no baú. Alice May pegou a caixinha de jóias e abriu-a. Antes de ser tocada, a estrela estava opaca, mas começou a brilhar quando ela a colocou. Também era pesada, mais pesada do que deveria ser, e seus joelhos dobraram um pouco quando o alfinete fechou.

    Alice May ficou paralisada por um instante, respirando devagar, tirando de cima de si o peso que era tanto imaginário como real. A luz de sua estrela foi esmorecendo a cada respiração, até não passar de um pedaço de metal brilhante refletindo o sol. Então, tudo pareceu mais leve. Os revólveres, o cinto, a estrela – e sua própria alma.

    Ela fechou o baú, sentou-se sobre ele e calçou as botas. Em seguida, pegou o rifle e desceu a escada.

    Não havia ninguém lá embaixo. O vidro quebrado e o porta-retratos ainda estavam no chão, em total contradição à natureza e aos hábitos de Stella. A pintura havia sumido.

    Alice May saiu pela porta dos fundos e rapidamente atravessou a rua para ir à casa do Tio Bill. O outro Bill, Bill Hoogener. O leiteiro. Queria falar com ele antes que ela... fizesse o que quer que fosse fazer.

    Havia uma calma incomum na rua. Soprou uma brisa quente, levantando redemoinhos de poeira que rodopiavam às margens da rua de cascalho. Não havia ninguém nas ruas. Nenhuma criança brincando. Ninguém andando, dirigindo ou cavalgando. Só havia o vento quente e as botas de Alice May pisando o cascalho, a andar os noventa metros em diagonal até a casa de Hoogener.


    Ela parou na cerca de estacas. Uma tocha vermelha fora pintada na porta entreaberta, a tinta ainda fresca e pingando. As mãos de Alice May puxaram a alavanca do rifle sem pensar conscientemente, e ela empurrou a porta, abrindo-a com a ponta da bota.

    A frieza do vestido se espalhava por sua pele, só que agora fazia mais frio, um gelo absoluto. Bill, como o sobrenome entregava, era descendente dos Unicistas, embora não fosse praticante. Os servos reservavam um ódio especial aos unicistas monoteístas.

    A sala toda tinha sido quebrada. Todas as pinturas de Bill retratando a cidade e sua população, uma vida inteira de trabalho, estavam amassadas no chão. O enorme porta-guarda-chuva fora arrebentado, e as bengalas e guarda-chuvas que ficavam guardados ali tinham sido usados como cacetetes para esmurrar o reboco. Havia muitos buracos, o papel de parede pendendo em volta deles como pele ferida.

    Havia sangue no chão. Muito sangue, um grande oceano escuro perto da porta e poças menores cujos rastros levavam ao interior da casa. Uma marca de mão feita de sangue ao lado da porta da cozinha mostrava onde alguém – não, não alguém, pensou Alice May, mas Bill, seu tio Bill – havia se apoiado.

    Ela andou em meio aos destroços, com mais frio ainda, o pior frio que já tinha sentido. Seus olhos se voltavam lentamente de um lado para o outro, o cano do rifle, com suas flores de prata, seguindo seu olhar. O dedo estava colocado no gatilho, a um instante de distância do disparo, do tiro, da morte.

    Tio Bill estava na cozinha. Estava sentado com as costas apoiadas no fogão, a pele pálida, quase translúcida contra o esmalte amarelo da porta do forno. Seus olhos estavam abertos e incrivelmente claros, mais brancos que qualquer leite que ele já carregara, mas suas pupilas azul-celeste estavam embotadas, escurecendo, ficando tão negras quanta a pequena gravata borboleta que pendia sobre seu peito, o elástico rompido.

    Sua boca estava aberta, um buraco disforme e escancarado. Levou um tempo para Alice May perceber que a língua dele tinha sido cortada.

    Da cintura para baixo, as roupas brancas geralmente impecáveis de Bill estavam pretas, empapadas e completamente encharcadas de sangue. Gotas ainda pingavam dele e caíam lentamente na macha embaixo de suas pernas. Alguém tinha usado o mesmo sangue para pintar no chão uma tocha malfeita e duas palavras. Porém o sangue tinha se espalhado e as palavras se juntado, por isso era impossível ler o que quer que os assassinos de Bill pretendessem comunicar. De qualquer forma, a tocha era suficiente para que a morte fosse reivindicada pelos Servos.

    Alice May contemplou seu tio morto, pensando coisas terríveis. Não havia desconhecidos naquela cidade. Ela devia conhecer os assassinos. Podia vê-los com facilidade. Homens vestidos com o uniforme vermelho e preto, bebendo uísque para ganhar coragem. Teriam passado diante da casa dezenas de vezes antes de finalmente baterem à porta de Bill. Talvez tivessem falado normalmente com ele por um minuto, antes de empurrarem-no para dentro. Então teriam golpeado, e golpeado, e golpeado Bill, enquanto ele cambaleava pelo corredor da própria casa, incapaz de acreditar do que estava acontecendo e incapaz de resistir.

    Bill Hoogener tinha morrido nas mãos de vizinhos, sem ter a menor idéia do que estava acontecendo.

    Alice May sabia o que estava acontecendo. Sabia, lá no fundo. O Mestre era um mensageiro do mal, um corruptor de almas. Os Servos não eram Servos do Estado, e, sim, escravos de algum veneno terrível e traiçoeiro que mudava sua natureza e os tornava capazes de cometer crimes horríveis como o assassinato do seu tio Bill.
    Última edição por Mago Teseu; 12-09-2009 às 13:17.



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