Memória Pilchada
Rua cheia, céu nublado, vento frio – do tipo de brisa leve que, úmida, anuncia a proximidade da chuva...
Um homem caminha com passos firmes e barulhentos por entre as vendas de quinquilharias e as pessoas absortas em seus próprios afazeres tediosos. Exótico e confortável em suas vestes, contrasta com a multidão de paletós, suéteres e saltos-altos: Seu poncho alegre e multicolor, uma longa manta tradicional de um algodão felpudo – herança deixada por índios peruanos ancestrais - o cobre do pescoço onde pende o lenço até as botas cobertas de lama seca.
No meio daquele mar de desconforto, gravatas apertadas e pés espremidos em sapatos o homem parecia um bicho estranho, deslocado do seu habitat. O ritmo das suas passadas é lento, sua expressão serena.
Tudo em volta é frenético, porém: os outros andam como se a própria calçada ou os prédios demandassem pressa, opressores.
Ele, ao contrário, anda e observa. Nada parece escapar ao seu olhar manso, como se procurasse por algo. Mas não parece haver nada ao redor, nada de vivo para ser achado – apenas fumaça cancerosa das chaminés ambulantes, suor, concreto e ânimos de ódio.
Enfim, algo digno captura a sua atenção: Um menino pequeno, eufórico, brinca de cavalgar em seu potro imaginário, montado em meio cabo de vassoura. O garoto passa por entre as pessoas dando ordens para seu cavalo, e parece não notar o que se passa ao seu redor – o mundo em sua cabeça é, certamente, muito mais interessante que o real.
Essa visão o deixa admirado - ele pára de braços cruzados e apenas observa. No seu rosto marcado pelas agruras da meia-idade subitamente se nota um sorriso maroto e juvenil, daqueles que a face de um tolo não poderia exprimir – e também inconcebível para os velhos de espírito.
Após se aproximar da criança sem tirar os olhos dela, o Xirú se agacha e diz, amigável:
-Ei guri!
O garotinho então vira-se para ele, puxando as “rédeas” com força para manobrar o “cavalo” bravo.
-Mui formoso o teu cavalo, - Ele encara levemente o pequeno, esperando para ver a sua reação, mas o jovenzinho mantém-se calado. Ele era um “estranho” para o pequeno, afinal, em muitos sentidos e aspectos. Meio temerosa, a criança olha interrogativamente para um senhor muito barbudo a poucos metros de distância: Seu pai, que não percebe nada – ocupado demais a comparar os preços de uma vitrine. O olhar da criança permanece sem resposta.
O Xirú continua a falar, insistindo na conversa:
-Entonces, o que quieres ser quando crescer?
O pequeno pensa por um brevíssimo momento apenas, e então olha bem nos olhos do outro como quem olha para um amigo. Resoluto e agora sem consultar ao pai, ele responde com característico entusiasmo infantil, abrindo bem a boca e os olhos – tinha a resposta na ponta da língua:
-Quero ser um grande herói! Como os da tevê!
O homem primeiro esboça um largo sorriso, mostrando que gostou da resposta, e em seguida ri às gargalhadas, chamando a atenção de todos ao redor - que olham desconfiados e repreensivos. Nessa cidade, nem mesmo o som da alegria é bem-vindo.
Após um momento a risada se dissipou no ar como fumaça e, sorrindo de boca aberta de modo a mostrar bem os dentes amarelados, o homem do poncho diz:
- Um grande herói, sim! Sabe, piá, heróis eu conheço alguns – Novamente o sorriso maroto de antes brota em sua face, tão naturalmente como a água cristalina que brota da terra nas montanhas.
O homem do poncho, ainda sorrindo e agachado, fica pensativo por alguns segundos a olhar seu interlocutor, que agora já se prepara para puxar as rédeas e sair a galope. Por fim, dá um forte e sonoro tapa no próprio joelho, fazendo o menino pular de susto, e fala feliz:
Ahá! Pois então, guri, que seja!
E dizendo essas palavras, sutilmente cobre os olhos da criança com uma das mãos calejadas e ásperas.
.......
Por alguns instantes, tudo vira escuridão para o menino - seus olhos nada vêem. Uma emoção profunda toma conta do seu ser, e por um instante ele se torna livre e uno com o universo, enquanto é engolido por um silêncio absoluto. Logo após sente muito frio, como se a própria matéria do seu corpo perdesse quase todo o calor, e seus sentidos ameaçam falhar, indicando a proximidade da morte.
De repente, justo quando tudo parecia chegar ao fim, ele sente seu próprio corpo novamente. Retornando à vida, respira fundo como quem emerge após um longo tempo sem respirar, desesperado.
Algo havia mudado. De alguma forma ele percebeu que nada mais seria como era antes, e por um segundo ficou na penumbra, no limiar inalcançável do real que se situa exatamente entre o passado e o futuro. No segundo seguinte, voltou a sentir algo à sua volta, e novamente ficou preso à realidade, separando-se de todo o resto...
Sente-se um tremor no ar, seguido do estrondoso som de um canhão fazendo fogo. Um instante após, outro som o envolve: Como se fossem o oceano, tomando conta de toda a percepção, muitas vozes masculinas em coro gritam com toda a potência de seus pulmões - era o brado furioso de muitos homens da guerra. Assustado, com o coração na boca batendo muito rápido, o garoto abre os olhos e vê novamente.
Extasiado e sem acreditar no que seus olhos lhe mostravam, fica boquiaberto: As ruas de pedra morta e as nuvens tristonhas não estavam mais lá. Em seus lugares ficou apenas um gramado verde-acinzentado que, coberto de orvalho, dança com o vento minuano sob um céu vermelho banhado pelas primeiras luzes do sol. Olhando em volta, nota que está montado numa bela égua malhada e inquieta que, nervosa, mexe as patas e ameaça relinchar. Percebe também que é seguido de perto por canhões e homens de todas as cores de pele, entre os quais estavam centenas de outros cavaleiros empunhando lanças e armas de fogo, em formação militar.
Ele agora já era adulto, suas feições infantis e a pele imaculada deram lugar a barba e bigode malfeitos e um rosto bem marcado, com ossos proeminentes e cicatrizes de muitas batalhas. O sabre pesado na sua cintura estava pronto para ser desembainhado, e parecia ter vida própria, desejoso de ser empunhado.
Do outro lado do campo vinham outros gritos. Embora não se pudesse ver a sua origem, se aproximavam rápido – eram as tropas inimigas.
Embora a situação fosse inexplicável e confusa, nada parecia estar errado. Ele tinha lembranças de uma vida inteira, campos verdes e primaveras percorridas em cima do lombo de cavalos. Aquela era a sua vida, e sempre havia sido. Nem em seu coração ou sequer em sua mente havia dúvidas.
Sem que ele percebesse, todo resquício de memória do seu antigo e barbudo pai, do cabo de vassoura, da cidade agonizante: tudo perdia nitidez e sumia rapidamente, de volta ao pó – quando ainda era palpável aquela realidade era vazia, mas agora nem o vazio restava. Enfim, uma última memória passou pela sua mente, suave e discreta como o vôo do beija-flor: O som de uma gargalhada alegre, um olhar amável e um poncho multicolor.
– e assim a antiga vida perdeu-se nas sombras eternas para nunca mais ser achada, nem sequer nos pesadelos de noites solitárias e frias sob a lua.
Não havia o que temer e ir adiante era a única alternativa, afinal, pois todos ao redor esperavam suas ordens.
– Assim a criança se perdeu, nunca existindo.
Em seu lugar ficou o homem, o capitão:
Aquele que - em algum momento - morreria em batalha, e teria seu nome esquecido.
Aquele, a quem - mais tarde - alguns chamariam “herói”.
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