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Tópico: Contos do Concurso Melhor Conto 2008

  1. #1
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    Padrão Contos do Concurso Melhor Conto 2008

    1. Sem TítuloThomazml
    2. AçougueirosWu Cheng
    3. Carta de NascimentoPernalonga
    4. EncontrosDark Psycho
    5. GabrielaAAlan
    6. KIWIManteiga
    7. Mão de DeusElementals
    8. Meia-noiteClaudio Di Martino
    9. Memória PilchadaMelgraon I
    10. PaladinosLire
    11. Par ou ÍmparDard Drak
    12. Sobre Tiaras e Joaninhaswikle
    13. Vinho, Discussão, uma Velhota e uma ChupadaHugoca2x

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    Última edição por Emanoel; 31-07-2009 às 21:32.

  2. #2
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    Sem Título



    Aux armes, citoyens, Formez vos bataillons

    Alguma região da Alsácia, inverno de 1915.

    O dia amanheceu cinzento. Ainda que já fosse inverno, a triste melancolia do outono ainda pairava no ar. Estava frio, menos de dez graus. Toda a região estava quieta, morta. A camada de neve ultrapassava cinqüenta centímetros. O vento uivava, levantando pequenos flocos de neve, que se arrastavam preguiçosamente pelos troncos nus das poucas árvores que ali estavam.

    Jacques tentava inutilmente acender um fósforo na sola das botas desgastadas. A sola já estava se desfazendo, assim como a parte de cima de couro. Quando o fósforo pegou, o soldado procurou no bolso das vestes sujas o cigarro que comprara. Mas, infelizmente, este havia desaparecido. Xingando baixinho, o francês apagou o fósforo no chão lamacento da trincheira.

    O fedor já não incomodava mais o soldado, há de dois meses naquele buraco detestável. Metade do seu batalhão já tinha perecido, quase todos por doença ou congelados. A dura realidade da guerra era essa. O que mais matava eram as condições miseráveis a que os soldados eram submetidos. Pequenos ferimentos provocados pelos estilhaços das armas inimigas eram mais eficientes que as próprias armas.

    Jacques coçou a barba, pensativo. Apesar de ser uma regra militar a obrigação de raspar a barba e o bigode, a falta de água limitava o acesso dos soldados aos banhos e outros cuidados higiênicos. O homem seguiu rastejando até junto do seu amigo Pierre. Este estava jogando cartas, sozinho. O baralho era roto, algumas cartas nem poderiam ser reconhecidas, mas Pierre cantarolava o hino francês enquanto jogava paciência.

    Jacques chamou o amigo, que parou imediatamente de jogar. A face magra de Pierre estava mais evidenciada pelas profundas olheiras e a palidez do rosto. Jacques pediu um fósforo e um cigarro ao companheiro. Este concedeu de bom grado o fósforo, mas fez um gesto negativo, indicando que não tinha nenhum cigarro.

    O soldado continuou rastejando, a procura de outro amigo para lhe dar um cigarro. Quando começou a sentir o cheiro de bebida, adivinhou que estava perto de Charles, o sargento que sempre vivia embriagado. A guerra tinha levado a família inteira de Charles, assim como seu controle sobre o álcool. O soldado passou direto, se acendesse fogo perto de Charles era provável que o sargento queimasse até a morte.

    De repente, como que saudando a manhã que se levantava, um clarim soou alto no ar frio. Jacques desistiu da busca ao cigarro e foi com os outros até o espaço central da trincheira. A respiração provocava pequenas nuvens prateadas em volta das cabeças. O capitão estava acocorado, esperando que todos se reunissem. A expressão era de melancolia, que se enquadrava bem à paisagem desolada.

    O capitão Du Bois explicou a situação: as trincheiras alemãs estavam desgastadas e a artilharia inimiga sem munição. Comandaria ele um esquadrão para capturar mais meio quilômetro do território francês ocupado. Por isso, precisava contar com o patriotismo dos soldados da nação francesa. A mãe pátria estaria olhando para seus bravos soldados, estava dependendo deles. O discurso inflamou um pouco os ânimos. Pierre começou a cantar o hino, sendo imitado pelos outros.

    A artilharia francesa começou a trabalhar, abafando o canto. Du Bois ergueu-se e transpôs a cerca de arame farpado, momentos antes derrubada. Foi seguido pelos seus subalternos, que gritavam enquanto corriam em direção à outra trincheira. Os gritos morreram quando os obuses explodiram de novo, levantando a providencial fumaça, que encobriria o ataque. Flocos de neve caiam, auxiliando a empreitada.

    O rifle pesava nos ombros de Jacques, seu braço direito tremia de vez em quando. O homem ouvia um estranho zumbido, provocado pelo barulho da artilharia. A boca secou e as entranhas pareciam geléia. O soldado obrigou-se a correr agachado, junto com os outros. Os tiros já não eram ouvidos, os olhos se encheram de lágrimas por causa da fumaça. Só era meio quilômetro, quinhentos metros. O hino francês ecoava pela mente dele.

    Tropeçou numa pedra, que não tinha visto. Caiu de cara na neve pisoteada pelos companheiros. Levantou-se e correu de encontro a eles. Mas, num átimo de segundo, os ouvidos de Jacques voltaram ao normal. Podia ouvir os gritos dos seus amigos. Mas estes já não eram patrióticos, eram gritos de dor. Já não se ouvia os obuses amigos. Um som terrível preenchia o ar. O som da morte. Os tiros da metralhadora não paravam. Todos os soldados franceses foram caindo, um por um. No final, Jacques estava estendido no solo frio de inverno.

    Sua barriga estava aberta, de onde jorrava uma profusão de sangue. Suas mãos tentavam inutilmente estancar o líquido vermelho que vazava. Uma dor dilacerante tomou conta do soldado. Uma lágrima solitária saltou dos seus olhos, caindo pela face suja até a barba cheia de pulgas. Seus lábios já não estavam ressecados, úmidos pelo próprio sangue. Seus olhos fitaram pela última vez o céu francês. A neve caia em flocos brancos.
    Última edição por Emanoel; 31-07-2009 às 08:05.

  3. #3
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    Açougueiros

    Wu Cheng


    Chegou de ônibus naquela pequena cidade do interior, ponto final de uma linha decadente, caindo aos pedaços, disposto a tomar um café e voltar para a estrada. Veria na rodoviária qual era o próximo horário de viagem.

    Não era propriamente uma rodoviária, apenas uma placa e um sujeito sentado num caixote, fumando um cigarro fedorento.

    A cidade cresceu em volta da estrada e tinha apenas uma rua transversal. Se formava pelo posto de gasolina, um botequim para caminhoneiros e uma capela com a imagem de Santa Edwiges, trancada. Alguns barracões completavam a imagem de interior rural.

    Olhou para um lado, depois para o outro, pensando que já tinha visto todas as belezas naturais do vilarejo, ou seja, nenhuma. Agora já podia ir embora dali o mais rápido possível.

    _Uma passagem pra fora daqui, por favor_ falava com o sujeito do caixote. Era mirrado, de pés descalços, pitava seu fumo e cuspia um catarro preto de lado. Não olhou nenhuma vez na direção do viajante.

    _O último ônibus que saiu foi esse agora. Próximo só semana que vem_ Um cachorro magro estava deitado ali do lado, lambendo uma quentinha de comida vazia. Provavelmente o almoço do homem.

    _Foi nesse mesmo que eu vim. Quero saber como faço pra seguir viagem_ indagou sem muita paciência com o bilheteiro.

    O sol de meio-dia estava escaldante, nenhuma sombra por perto, nem viv'alma a vista. Parecia uma conversa entre dois loucos no meio do inferno. Aparentemente o sujeito se divertia com isso e falava cada vez mais arrastado:

    _Não tem parada aqui. A única linha que vem e volta é essa que o senhor chegou_ Roncou e cuspiu no asfalto uma bolota gosmenta, dessa vez meio verde. O cachorro se alegrou, engolindo a guloseima numa lambida.

    _Você pode ficar na beira da estrada e tentar pedir carona pra alguém. Mas normalmente ninguém pára aqui. Cidade pequena, sabe como é_ completou e não se dispôs a responder mais nada.

    _Porra, mas em que buraco eu vim me meter_ pensou o estranho em voz alta, sem se importar se o estavam escutando.

    Foi tomar um café no botequim e saber se alguém poderia lhe dar carona de volta à civilização. Porque aquilo lá era um pouco depois do fim do mundo.

    Só tinha a dona do lugar, uma gorda meio sebosa de suor, e um caipira tomando um caldo de carne ou algo do gênero. Eram uns nacos de carniça boiando em óleo, culinária local, certamente. Café horrível, mas pelo menos conseguiu alguma coisa.

    _Então você faz frete pra capital? Pode me dar uma carona até lá? Ou qualquer outro lugar, parece que estou preso aqui por uma semana_ falava com o caipira, que babava na barba tomando aquela gororoba oleosa. Camiseta suja, boné mais sujo ainda, cabelos e barba sebosos. Com certeza era caminhoneiro.

    _Não vai dar, não tenho mais caminhão. Agora tô me dedicando a criação de porcos e galinhas_ falava e olhava pra dona do balcão. _Minha melhor cliente!

    _Te mato se quiser me cobrar pelos teus porcos bexiguentos e aquelas galinhas doentes_ apontava um facão de cozinha rindo pro cara. _Vai ficar sem janta hoje.

    _Essa bela dona aí é minha esposa_ gracejou o caipira, e o viajante pensou que a beleza havia passado bem longe de toda sua família por muitas gerações. Mas estava enganado.

    A gorda senhora convidou o estranho a dormir na casa deles, por uma módica quantia, claro, apenas o necessário para pagar as suas despesas com água e comida.

    Ficou combinado que os três voltariam depois do expediente, período em que não apareceu ninguém para comprar ou mesmo perguntar qualquer coisa.

    Era uma loja às moscas, literalmente. Dezenas, centenas talvez, em todas as cores e tamanhos. A senhora se divertia jogando um pouco de cerveja no chão de terra batida, olhando uma nuvem negra de insetos se formar em cima da bebida. Em seguida, espantava os bichos e sacudia uma frigideira no ar. Um som de pipoca estourando enchia o ambiente, e dezenas de moscas jaziam no chão.

    Periodicamente a dona fazia isto, mas as moscas eram mais rápidas em se multiplicar. O caminhoneiro sem caminhão tirava uma soneca recostado na cadeira, com o boné no rosto, o barrigão saltando por baixo da camiseta manchada.

    No final do dia, voltaram para casa. Passaram pela estrada, o bilheteiro não estava mais lá, nem o cachorro, nem o caixote. Apenas aquele catarro preto no asfalto, seco do sol, revelava o local exato de onde ficava.

    O carro velho tremia e sacudia na estrada esburacada de barro. O calor acumulado da tarde fazia todos transpirarem, deixando um cheiro azedo no interior do veículo.

    _Vocês moram muito longe da cidade?_ perguntou o novo hóspede. _Penso em sair amanhã bem cedo para pedir carona aqui na rodoviária.

    _Sim, sim. É logo ali, menos de uma légua_ respondeu o motorista. _Só quando chove que não dá pra passar, porque esta estrada miserável não tem conservação nenhuma.

    _Torça para não chover, querido_ a dona gorda já estava cheia de intimidade com o viajante, o que o assustou um pouco. Talvez por isso, resolveu mudar o assunto:

    _Vocês administram sozinhos a fazenda? _falou, sem um pingo de interesse no que o casal de caipiras fazia. O carro pulou de novo.

    _Não, não, coração_ começou a mulher. _Temos nossa filhinha, que é a razão de nossa vida, não é "painho"?_ "Painho" aprovava balançando a cabeçorra e dando um sorriso.

    Como era inútil tentar uma conversa razoável com aqueles dois, desistiu e calou-se até chegarem.

    A fazenda consistia em um barracão maior e outras duas construções pequenas. Nada que lembrasse remotamente uma fazenda. Havia chegado numa espécie de campo de refugiados ou favela de um dono só.

    Os porcos chafurdavam por todo lado, e meia dúzia de galinhas já estavam recolhidas no galinheiro. O cheiro não era dos melhores, mas o viajante pensou que seu cheiro também não estava dos melhores. Conformou-se e foi descobrir onde dormiria.

    Nada funcionava naquele lugar. Maçanetas emperradas que não fechavam, as janelas não tinham vidros ou estavam quebradas, o banheiro era uma casinha nos fundos do quintal, uma fossa séptica de odor pestilento e insuportável. Por sorte à noite o barracão era trancado e tudo que havia para as necessidades noturnas era um penico embaixo da cama.

    O hóspede já pensava em agradecer amavelmente aos seus anfitriões e ir buscar um lugar ao relento para dormir, de preferência bem longe dali, quando viu a figura da menina, um anjo, uma flor que brotara no meio daquela podridão.

    Trajava um vestido puído azul, os cabelos lisos, negros, desgrenhados e os seus olhos azuis eram muito tristes. Não tinha mais do que 16 anos. Ele interessou-se por ela e apenas por este motivo ficou. Notou que mancava da perna esquerda, mas isso não tirava a beleza da moça.

    _Então você é a filha deles. Gosta daqui?_ nenhuma resposta. Tentou de novo.

    _Eu vou passar aqui esta noite, sou hóspede dos seus pais. Perdi minha condução, parto amanhã de manhã.

    _Pode me levar com você?_ esta era uma pergunta que ele não esperava ouvir, e que o fez engasgar e emudecer por algum tempo.

    _Não posso fazer isso, seria considerado seqüestro ou rapto_ respondeu. Não havia nada que pudesse fazer por ela. Além do mais, era louca como os pais, apesar de muito bonita.

    _Então qual é sua utilidade? Não é melhor do que estes porcos que vêm e chafurdam onde há lama e restos para comer.

    Esta era uma verdade incontestável, por isso não respondeu. A bela moça se virou e saiu mancando lindamente da sua perna esquerda.

    Este episódio abalou o viajante solitário. Deitado em sua cama cheia de percevejos, gordos como feijões, não conseguiu dormir pensando nos estranhos acontecimentos do dia.

    Havia movimento na cozinha. Ao que tudo indicava, a gorda senhora mantinha sua forma redonda a custas de pesadas refeições noturnas. O cheiro de banha de porco dominava todo o ambiente. Pensava que, afinal de contas, a garota não estava tão louca assim de querer fugir daquela ratoeira.

    Em seguida, ouviu ganidos e gemidos, parecia um cão tomando uma surra. Primeiro bem fracos, depois cada vez mais freqüentes e mais altos. Foi verificar, violando sua decisão de não se intrometer no cotidiano daquela pequena comunidade rural.

    Os sons vinham do quarto do casal. A dona gorda continuava na cozinha, fritando com banha de porco. Da porta reconheceu os gemidos: eram da garota, tinha certeza disto. Alguns grunhidos de homem interrompiam um soluço e choro contidos.

    _Este filho da puta estupra a própria filha! Por isso ela queria fugir_ pensou. Agora o viajante se arrependia da sua estupidez e covardia.

    Viu uma forma de se redimir: um pé solto de cadeira, que estava encostada no corredor. Retirou o pedaço de pau vagarosamente, sem fazer o menor ruído. Imaginava que salvaria sua princesa e seriam felizes para sempre, ou só queria fazer o que era certo. Sabe-se lá o que passa na cabeça de um homem nessas horas.

    Mas quando abriu a porta, o horror. O vestidinho azul puído da moça levantado até o meio das costas. Ela estava de bruços e dava para ver o enorme buraco que existia em sua nádega esquerda. Uma cicatriz tenebrosa, um sulco enorme que caberia uma laranja.

    Gemia amarrada à cama, mordendo um travesseiro. Seu pai estava com um avental de açougueiro ensangüentado, passando enorme fação em sua coxa direita. Tirava caprichosamente uma fina fatia de cada vez, o que a fazia se retorcer e saltar. O cheiro de sangue dominava o cômodo dando-lhe um aspecto de matadouro.

    Seu estômago se rebelou, regurgitando uma bile amarga que sentiu chegar à garganta. A cabeça rodava, as mãos ficaram moles como manteiga. Pensou que desmaiaria, mas conseguiu voltar para seu quarto tão silenciosamente como viera.

    _Mainha, hoje tem filé mignon_ ouvia risos e gordura fritando a carne. Não quis ouvir mais nada e dormiu.

    Havia bacon frito no café da manhã e a filha do casal não apareceu. Ele não estava com fome. Pagou o que devia e andou por meia hora até o centro da cidade. Ainda bem que não choveu no dia anterior.

    Cuspiu no chão, estava contaminado com aquele lugarejo. O cuspe saiu grosso, pendendo pra fora da boca num fio longo que não se soltava. Precisou da ajuda de uma das mãos.

    O cachorro magro lambia a gosma enquanto a figura cabisbaixa do viajante ia sumindo na estrada.

    _São 60 Km até a próxima vila_ gritou o bilheteiro, ele podia jurar que o homem estava rindo. Não acenou nem respondeu.

    Chegaria a outra cidade nem que fosse a pé.
    Última edição por Emanoel; 31-07-2009 às 07:36.

  4. #4
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    Carta de Nascimento

    Pernalonga


    Não sei dizer com toda a certeza se o interesse é da natureza humana ou se é um defeito humano. De qualquer forma, não diria apenas humano, porque no meu caso, pode se dizer supra-humano. Mas, enfim, acho que seja os dois.


    Deixe-me colocar em linhas mais explicativas, tendo em vista que essas são minhas últimas linhas e que o interesse é o motivo disso tudo.

    Aposto que você, humano ou “pré-pós-humano” – infelizmente, ainda não consegui achar a descrição perfeita para o que sou... –, já se perdeu de vontades em ter alguma coisa, não? Até mesmo maldades pensou em fazer, loucuras para ter aquilo de tão desejado. Você batalha arduamente, pensa somente naquilo durante um bom tempo e, mesmo se houvesse algo semelhante e mais fácil de conseguir, não poderia substituir o que você quer. Até que, um dia, finalmente, você consegue obter o que tanto anseia. A alegria é espetacular. Uma felicidade absurda toma seu ser por algum tempo indeterminado – salvo alguns raros casos, a vida toda – e você gasta toda sua energia para desfrutar daquilo. Porém, tão rápido quanto a duração da euforia, aquela explosão de desinteresse te aflora. Toda aquela vontade perde o sentido e aquilo que você conseguiu torna-se mais uma das coisas do seu cotidiano... Para ser mais simples, é como uma vida sem dias ou noites, apenas com os mais magníficos pores-do-sol. Indubitavelmente, depois de um tempo, estes não serão mais magníficos.

    Voltamos então para o “ser ou não ser” do início. Porque o interesse, consequentemente o desinteresse, é da natureza humana e, simultaneamente, um defeito? Ora, um explica o outro. É natural que tenhamos vontade de ter algo, aliás, é essencial; sem vontades, não batalhamos, não sonhamos, não vivemos. Necessitamos desse interesse, ele vem com a gente desde o nascimento, ele é instintivo, natural. Mas por um lado, o interesse vem grudado com sua antítese, o que nos faz perder e desvalorizar coisas importantes, trazendo-nos sempre arrependimento e tristeza.
    Ou seja, se nos é prejudicial, é uma falha, um defeito.
    De qualquer forma, permanecendo ou não esta indiferença, sempre surgirá outra vontade, completando o ciclo e seguindo a normalidade. Enfim, repetindo o que eu falei, na minha visão, o interesse é ambos: defeito e característica.

    ...

    Agora que já lhe mostrei meus devaneios sobre futilidades e dissertei sobre o interesse, coisa nunca antes feita por alguém como eu, vou direto ao objetivo desta carta de dilema.

    Use sua cabeça e veja se você consegue imaginar um ser perfeito com problemas que não parecem problemas, como o explicado anteriormente? Aposto que não. Aliás, aposto que seu ponto de vista sobre perfeição é a ausência de qualquer tipo de problema. Bom, o dicionário caracteriza isso como “o que não tem defeito físico ou moral”, “o que tem tudo o que lhe pertence ter”... É, sinto decepcioná-los, mas não haverá uma discussão sobre perfeição. Eu concordo com o dicionário, a visão é essa mesma.

    Mas quem sou eu para dar o aval que o dicionário tem a definição perfeita para perfeição?
    Sou o ser ideal para afirmar isto. Sou um ser perfeito...

    Pelo menos aparentemente.

    ...

    Deixe-me situá-lo: imagine uma sociedade utópica. Ninguém passa fome, ninguém é melhor que alguém, ninguém possui qualquer tipo de poder nas mãos, ninguém sofre tristezas ou têm motivos para isso, ou seja, todos são felizes. Todos mesmo.
    Lindo não é? Uma sociedade perfeita com habitantes perfeitos, digno de qualquer conto de fadas.
    Onde vivo, utópico não existe. Utópico é o real. Essa sociedade é a minha sociedade. Vocês, humanos, a chamam de além. Aliás, eu já dei esse nome para ela, mas, de qualquer forma, é de onde faço parte.

    Nota: Desculpe-me, leitor, se fujo muito do assunto ou se constantemente começo a falar besteiras baseado em meus pensamentos ou se o que escrevi até agora não está muito coerente. Mas tente compreender que esta carta deve ser algo que supra as minhas necessidades, que explique tudo que quero explicar e que acabe com minha pressa. Tenha paciência e leia até o final. Grato.

    Já deve estar claro que o ser perfeito com problemas que não parecem problemas sou eu.

    Não fique frustrado se não entender meu motivos. Até meus amigos perfeitos – os que deveriam compreender a situação – não entenderam.

    O fato é: passei minha vida de humano batalhando constantemente pela igualdade e a harmonia. Não irei listar o que fiz, mas tudo que você imaginar do que pode ser feito, eu fiz. Sentia-me horrível ao ver um mendigo na rua, mais triste ainda quando via pessoas desperdiçando comida ou água. Quantas noites chorei com raiva da imperfeição humana, com ódio de como eu era frágil e suscetível à erros.
    Eu realmente sofri na minha vida. Sofri até meus últimos momentos... Lembro-me de quando fui baleado em meio a uma passeata a favor de algum projeto de lei solidário, morrendo logo em seguida. Uma morte rápida e seca. Típica.

    Mas, tirando todo o tabu, a morte é engraçada. Tudo passa muito rápido e devagar ao mesmo tempo. Muito do que você imaginava se confirma e outras, que nem fundindo todos os cérebros humanos, conseguir-se-ia imaginar um dia. Mas isso não vem ao caso, o que importa é que, quando morri, viajei até chegar onde resido atualmente...

    Agora imagine tudo o que eu desejei concreto aos meus olhos e mãos.


    Ah! Foi incrível, estava maravilhado! Tudo era perfeito, tudo funcionava. Não havia burocracia, não havia erros, não havia injustiça, não havia fragilidade. Como era incrível aquela sensação! Sinto resquícios dela até hoje, daquela felicidade, daquela perfeição!

    Deus! Como eu gostaria de continuar sendo perfeito...

    ...

    Você, leitor, já deve ter imaginado o meu problema não?

    Depois de muito tempo vivendo nessa constante felicidade, nesse lugar em que sempre sonhei, meus ideais de humano já não são mais válidos. Eu simplesmente cansei.

    Esse é o meu problema, estou apático à perfeição.

    Não quero mais essa vida de extrema justiça e igualdade, quero voltar a ser humano! Quero as imperfeições e os choros de frustração! Quero estar à mercê de uma sociedade agressiva e destruidora! Quero ser tendencioso! Quero ser influenciado! Quero mudar para uma opinião destrutiva para mim! Droga! Como eu quero estar livre para fazer qualquer male! Quero olhar para um mendigo e sentir pena, somente isso! Deus, eu quero ser um hipócrita! Quero a falsidade de víboras trapaceiras e oportunistas! Quero a doença, a gripe! A preguiça!! Ah! Como eu quero ir embora desta perfeição sem graça e doentia. Não quero mais me sentir feliz por qualquer coisa. Não quero, não quero. Eu quero olhar para o outro e invejar a sua vida. Eu quero poder!

    ...

    Desculpas.

    ...

    É isso, caro leitor, o meu problema é esse. O desinteresse explodiu em mim. Parte de mim comemora por, a cada momento, perder a minha perfeição, e a outra parte luta para se manter ideal. Você deve estar rindo de minha tolice, me achando masoquista em querer tudo de mal que um humano tem, mas acredite, nada é mais caótico do que viver onde vivo no estado em que estou agora. Já cansei de tentar voltar ao que era, agora não há mais nada a se fazer...

    É o que eu quero e é o que vou fazer.

    ...

    Aos meus amigos perfeitos: parabéns a vocês, continuem suas vidas felizes.

    Aos futuros amigos, os que provavelmente, lerão esta carta: já chegarei.


    Eu, ser sem nome, ser que já foi perfeito, ser atualmente perturbado, parto feliz desta para uma vida de imperfeições, problemas e caos. É claro que não deixo heranças, mas parto para o outro lado sem arrependimentos, disposto a viver como um humano.

    Até logo.
    Última edição por Emanoel; 31-07-2009 às 07:39.

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    Encontros

    Dark Psycho


    - Era um dia triste para o velho dragão, meu filho. Não tão velho assim, para falar a verdade, mas esta é uma história que contradiz muitas coisas. Bem... Deixe-me lhe contar algo: Na verdade, a idade não está no seu corpo, mas na sua mente.

    O garoto olhava o velho sentado ao seu lado na cama com bastante atenção. Seus olhos continham uma fagulha de admiração e respeito, e, conforme a voz rouca vibrava no ar, ele demonstrava uma sincera emoção.

    - E naquele dia... O dragão tinha tomado a mais difícil das decisões.

    Por um momento o homem parou. Seus olhos cansados caíram em um canto do quarto e lá ficaram. Lembranças distantes corriam pela sua mente enquanto o garoto apenas o olhava; firme na expectativa dele continuar a falar.

    - Você sabe do que estou falando, Caiman? – O homem surpreendeu a criança com a pergunta. Seus olhos pousaram nela calmamente esperando uma resposta.

    - Não, vô. – Ele finalmente falou.

    - Então, deixe-me contar a você.


    Ele caminhava triste, o dragão, porém, decidido. Seus cabelos brancos realçavam ainda mais sua pele pálida. À sua volta, um suave cheiro de chuva atingia a todos, e o orvalho era renovado com sua passagem. Mais uma vez ele parou, seus olhos levantaram-se para o céu e refletiram o azul em sua íris cristalina. Não era hesitação; ele apenas tomava fôlego. Fôlego para continuar outra vez.

    Logo continuou novamente, e não demorou muito para sentir o cheiro de batatas cozinhando. Pensou em cortar caminho, mas lembrou de sua jornada e seu objetivo, e decidiu continuar. Alguns minutos depois ele deparou-se com um homem sentado a beira da estrada, à sombra de um grande carvalho cortando verduras e fritando carne. Ao que parecia, um pequeno manjar estava sendo preparado na solidão da mata.

    Ele parou e pensou consigo mesmo como eram estranhas aquelas criaturas. Não pareciam se importar com o mundo a sua volta, apenas viviam. Para aquele homem, um galho da árvore poderia cair, e ele apenas agradeceria por não ter sido na sua sopa.

    Não demorou muito e o homem o notou. Eles entreolharam-se sérios demais. O viajante observava como o homem era interessante, enquanto o outro, como ele era clássico.

    Largando tudo o rapaz levantou-se. Ele limpou a terra das mãos nas calças de couro e abriu um grande sorriso indo calmamente até o viajante na beira da estrada. Era o típico homem daquelas terras. Barba mal feita, cabelos castanhos, olhos claros. Mas o seu sorriso era convidativo demais, simpático demais.

    - Espero que não esteja muito cansado. – Ele falou. – Tenho comida aqui para nós. Na verdade... – Hesitou olhando para trás, enquanto o viajante apenas o analisava calmamente – Eu sempre faço comida demais mesmo.

    Houve um momento de silêncio, onde o homem esperava e o viajante apenas observava, mas finalmente, o segundo falou.

    - Não se preocupe comigo, rapaz. Apenas pretendo continuar meu caminho pela estrada.

    - Mas está ficando tarde para se andar aqui sozinho! – O homem parecia surpreso. Era incomum ver um jovem andando por estas terras, ainda mais um como aquele, aparentando grande riqueza.

    O peregrino apenas observou. Seus olhos caíram sobre a comida sendo preparada e ele decidiu ceder para uma última conversa amigável com um mortal.

    Animado, quando o viajante aceitou o convite, o rapaz saltitou até a fogueira e começou a jogar mais verduras na panela. Depois ele se voltou para o jovem, já sentado, e deu-lhe a mão.

    - Meu nome é Domainy. – Disse entusiasmado.

    - Eu sou Godar. – Falou o dragão, cumprimentando o rapaz.

    - Me diga, Godar – Domainy falava com um olhar intrigado, analisando o outro como quem considera muitas possibilidades. – Você é jovem demais, então... Esses seus cabelos são um sinal?

    O dragão pareceu confuso e depois riu. “Ah... Humanos”, Ele pensou. “Apenas estas criaturas para se comportarem assim.”

    - Digamos que seja um sinal, Domainy. – Falou descontraindo-se.

    - Bom, é porque é estranho. – Ele parecia não se preocupar muito em ser discreto. Era o tipo que comentava as coisas apenas por observar, sem maldades. – Você é jovem... E seus cabelos não são brancos de verdade. Eu diria que são... – Ele parou para analisar mais um pouco, enquanto o outro se divertia com o comentário. – Um azul meio prateado?

    - É... – Godar realmente estava divertindo-se, mas em seu íntimo, pensamentos assombravam sua mente com os comentários do rapaz. Foi seu amor pela raça humana que o levou ali. Era o seu amor por eles o responsável pela preocupação e decepção sentida.

    - Mas me diga, rapaz: Para onde você vai?

    - Eu vou para muito longe daqui, homem. – Godar pareceu mais preocupado agora, deixando uma sombra cair sobre sua face. – Não é um lugar que você ou qualquer outro conheça.

    - O que eu conheço são os perigos. Você não pode andar por estas estradas a noite sozinho; mesmo acompanhado ainda não é aconselhável. Afinal, - Continuou após uma pausa. – Não somos todos que temos a leveza dos elfos de marfim.

    Godar pareceu surpreso pelo comentário. Não eram todos que conheciam tais elfos. Na verdade, eles eram apenas uma lenda de fantasmas que habitavam uma densa floresta no caminho para Baiün.

    - Mas me diga, homem: – Continuou Domainy. – De onde você vem?

    - Eu venho de Fris, passei por Ainum, e agora sigo por Hanor. – Falou despercebido, apenas pensando na longa viagem.

    - Nunca ouvi sobre a primeira, mas pelas outras cidades, posso dizer que você vem de longe, meu jovem. Espero que não seja um batedor que anda lucrando pelo mundo afora. Poucos atravessariam o mar para cruzar o continente como você fez.

    Godar apenas pensou no que o homem dizia. Realmente ele viera de longe, e isso era apenas para poder pensar mais durante a viagem. O homem tinha razão. Fris não era conhecida por ninguém senão pelos filhos de Balgon, o grande ancião de prata. Ele pensava no que aquele viajante diria caso soubesse que falava com alguém disfarçado - um dragão na forma humana que ele tanto adorava; despido de asas, escamas, e toda a graça que os humanos viam naqueles seres poderosos e desconhecidos. Poucos sabem disso, mas os dragões podem se disfarçar em tantos seres como eles conhecerem a forma. São muito cuidadosos e muito sofisticados, e não assumem qualquer aspecto, mas o que eles mais amam é o humano, mesmo com todos os defeitos da raça.

    - Tome. – Domainy tinha um prato de sopa em mãos estendido para Godar. – Espero que não tenha problemas com verduras. Alguns loucos não gostam delas. Vou pegar a carne para você em um instante.

    - Desculpe-me, Domainy, mas você parece não ter muitas coisas com o que contar. – Godar olhava para os buracos no chão de onde provavelmente saíram as batatas. – Mas ainda assim é muito feliz e animado.

    - E por que não seria? – Bateu de ombros.

    - Não sei. – Godar ficou pensativo nessa hora, olhando para os ramos farfalhantes das árvores. – Talvez pela humanidade. Pela vida em si. Ou pela sombra da morte.

    - Não seja tolo, rapaz. – Bateu de ombros outra vez. – A humanidade não mudará nunca, apenas ficará mais suja. A vida deve ser vivida como ela nos é dada. E quanto à morte, ela virá para todos. Eu apenas não tenho medo dela e não espero receber sua visita tão sedo que seja.

    - Você é um séptico, então. – Falou desanimado.

    - Claro que não. Apenas não espero as coisas ruins da vida virem me buscar. Eu as deixo atrás de mim que é melhor para elas, rapaz! Por mim, eu viveria a eternidade.

    Neste momento Godar parou de comer e olhou para Domainy. Ele riu, levantou as sobrancelhas e voltou a levar o prato de sopa à boca.

    - Você não sabe o que é a eternidade. – Godar falou desanimado, também voltando a comer.

    - Nem você.

    Houve um silêncio por um momento, quebrado logo depois por Godar.

    - Mas você não conhece nada que está por aí a fora. Você não viu reis começando guerras por tolices como meros cavalos mais bonitos que um outro reino possivelmente teria.

    - Eu vi bandidos matarem por botas e calças, rapaz! – Falou Domainy chateado. – Você é apenas um jovenzinho de estrada. Eu viveria mais... Muito mais do que me é permitido e jamais cansaria da vida que me foi dada. Tolos são os que procuram a morte! Para mim, – continuou irritado. – você é quem é fraco demais para encarar a vida como ela é de verdade.

    - Homem tolo... Pensa conhecer todas as respostas.

    - Não, meu jovem... – Ele falou calmo. – Apenas não deixarei o fracasso de um me levar junto. Se a vida é triste, que seja. Eu quero viver a eternidade em uma vida só. – completou pensativo.

    Godar parou. Ele conhecia os humanos. Conhecia as mentiras, e aquele homem falava a verdade. Logo agora que havia tomado a decisão que tomara, encontrar alguém apaixonado pela vida o fez lamentar.

    - Eu vou morrer. – Falou quase que em um sussurro. Esquecendo-se que não conhecia o homem com quem falava. Falou simplesmente por falar. Talvez, para ele mesmo acreditar na idéia.

    - Não seja tolo. – Domainy bateu de ombros.

    Godar deitou-se calmamente nas folhas que cobriam a terra.

    - Eu irei para o vale da morte, atrás das montanhas geladas. – Falou sonhador, em um tom cheio de melancolia. - Chegarei lá pelo vale dos guardas, através da floresta das almas onde as árvores ainda falam.

    Domainy olhou-o intrigado. Sua face levemente confusa com um ar de incredulidade. Não pode se conter e falou em tom de piada:

    - É, amigo, se você fizer isso realmente você vai definhar.

    Godar virou-se para ele e o olhou com calma. Um ar de riso triste pousou em sua face nesta hora e ele falou para o rapaz:

    - Você não entende, não é? – Ele disse com paciência. – Eu não sou humano, rapaz. Eu sou um dragão; e vou descansar em casa.

    Domainy ficou abismado e depois riu. Riu-se bastante até não poder mais. Depois ele olhou sério para Godar e disse:

    - Você realmente acredita nisso, rapaz?

    Godar pareceu irritado. Levantou-se serio e orgulhoso demais. Olhou para Domainy encolhido ali sentado, temendo o aspecto de poder que ele agora emanava antes mesmo de uma densa névoa cobrir o lugar onde eles estavam, ou até mesmo do suave cheiro de chuva ficar forte, e os ventos soprarem bruscos na mata.

    Domainy apavorou-se. Ele conhecia aquela estrada, e sabia como o clima ali se comportava. Ventos não mudavam rápido demais, névoas não cobriam aquela parte de terra na época em que eles estavam. Foi nessa hora que ele temeu ser tudo verdade, e decidiu acreditar em Godar.

    - Mas você tem a eternidade! – Ele gritou em meio ao vento e sombra da névoa, e tudo parou tão repentino como começara.

    - Eu não tenho nada. – Falou Godar antes de cair novamente deitado sob as árvores.

    - Não seja tolo, rapaz. – Continuou Domainy. – Você é um dragão! Você poderia viver a eternidade.

    - Nunca a eternidade. – Bateu de ombros.

    - Mas muito perto de lá.

    Godar olhou o rapaz. Ansioso, ele o observava de certa forma até animado.

    - Pense comigo...

    - Não! – interrompeu Godar. – Pense comigo você. Meu pai é o ser mais antigo em todas estas terras que a humanidade conhece e sobre ela, nas nuvens, onde você ou outro homem jamais esteve. Ele tem a graça da vida longa, do prazer em viver. – Ele pausou, melancólico. – Mas não eu.

    Um breve momento de silêncio atingiu o lugar. Godar olhando para o movimento do vento nas folhas, e Domainy encarando-o sem sequer notar.

    - Escute, amigo. – Ele falou abaixando-se até o dragão, que agora se virava para olhá-lo. – Eu viveria a eternidade com você, mas não posso lhe acompanhar. – Ele pensou por um momento e continuou a falar. – Mas fique firme como está, e eu prometo lhe acompanhar até o fim dos meus dias. Eu lhe darei uma razão para continuar a viver durante cada momento de nossas vidas. – Ele se levantou animado, enquanto Godar o olhava levemente interessado. – Eu irei lhe ensinar a viver na saúde e na desgraça! – Falou animado, pondo as mãos para cima. – Eu lhe mostrarei como passar as noites nas festas mais animadas que os reis dão para enganar o povo sem pão em casa. Serei seu amigo e guia nesta jornada.

    - Não seja tolo. – Falou o dragão rindo levemente. – Eu já fui conselheiro dos grandes reis desta terra.

    - Mas não soube aproveitar a vida! – Escarrneceu Domainy.

    Godar olhou o homem animado ao seu lado, sorrindo. Pensou em como era difícil continuar com a decisão que tomara. Por um momento ele iludiu-se mais uma vez. Pensou na vida e em tudo o que ela poderia lhe dar. Ele era tão novo, e já pensava em partir para descansar. A vontade do humano o contagiou, e ele levantou-se de seu lugar.

    - Espere aqui, homem. Não importa o quanto eu demore, irei voltar.

    Neste momento Domainy presenciou a coisa mais impressionante da sua vida. Pela primeira vez, de tantas, ele viu o dragão caminhar para o fim da estrada e mostrar suas asas. Sua forma mudou, sua pele virou prata, seu cabelo levantou-se em uma crista de pelos prateados e seu tamanho aumentou em forma e em graça extraordinárias.

    Antes do vôo, a criatura olhou para trás e falou com sua voz calma e pausada:

    - Obrigado, rapaz. – E o dragão voou.


    Domainy não soube o que fazer. Esperar, ou continuar? Mas ele esperou. A expectativa para ver o que o dragão traria o ancorou no lugar onde estava, e foi no amanhecer do outro dia, mais cedo do que imaginava, que o cheiro suave de chuva retornou, junto com um perfume selvagem, desconhecido.

    O dragão retornara em sua forma humana, e com ele caminhava um homem com vestes poderosas. Alto e magro, ele parecia um rei vestido em preto cheio de jóias raras. Seus cabelos desciam até seus ombros, negros, lisos. As peles de sua roupa ondulavam com seu andar altivo. Sua face era decidida e seu olhar aterradoramente calmo impunha um respeito mortal. Atrás do homem uma sombra negra caminhava como duas grandes asas feitas de uma leve fumaça, acompanhando seu movimento conforme ele andava.

    Ao perceber que Godar observava, o homem fez um leve movimento com a cabeça e a sombra sumiu, deixando apenas a figura altiva em frente ao rapaz, que mesmo alto como era, estava bem abaixo do seu olhar.

    - Domainy – Disse Godar animado, porém, sério. – Você disse que viveria a eternidade, então, trago-lhe um desafio. – O homem estava abismado, ainda procurando um modo de resistir ao olhar do ser que o observava. – Jonus lhe dará a eternidade, e você apenas morrerá quando desejar. Quanto a mim, comprometo-me de morrer apenas depois de você, e de levá-lo para meu lugar de descanso comigo, para lá repousarmos, onde jamais um humano repousará.

    Domainy estava perplexo. Olhava para o homem e pensava se ele era o Jonus de quem Godar falava. Olhava para o dragão e pensava se aquilo poderia ser verdade. Enfim, após algum tempo de silêncio, Godar falou:

    - Aceitas o desafio?

    Ao que Domainy apenas pode balbuciar e acenar com a cabeça. Depois, ao ver que ainda esperavam uma resposta, ele disse ainda abobalhado: - Eu não trocaria minha vida por nada... Sim. – E Godar riu.

    - Então Jonus, nosso trato está feito. – Godar virou-se para a figura altiva ao seu lado. – E o nosso também, Domainy, o amigo do dragão. – Disse divertindo-se.

    - Ainda não, criança. – Falou o homem com sua voz penetrante, olhando de Domainy para o dragão.

    Godar rapidamente tirou uma pequena peça do bolso, um pouco impaciente com o homem que aguardava. Ele olhou fixamente a pequena jóia que parecia com um diamante, porém entalhado em forma esférica. “Brilhante como uma estrela que caíra do céu.” Pensou Domainy.

    - É quase isso, mortal. – Falou o homem, olhando rapidamente para ele. – Ou melhor: imortal. – Um leve ar de riso surgiu em seu rosto antes dele virar as costas pondo a jóia cintilante no centro da ombreira de jóias negras que caia sobre seus ombros. – Godar... – Ela parou, e virou-se para falar com o dragão. – Que diria teu pai? Não terá sido o preço alto demais?

    - Doce Beron, a quem chamam de Loham nas lendas antigas, ele apenas diria para seguir meu coração, e dar mais uma chance à vida.

    O homem parou por mais um momento, intrigado, apenas tentando entender. Olhou para Domainy e disse:

    - Aproveite, homem. – E virou as costas mais uma vez.

    Neste momento, Domainy teve sua segunda visão preferida em toda vida. A sombra voltara às costas do homem e tomara forma aos poucos. Logo, duas grandes asas negras saiam de seu corpo e estendiam-se através das árvores, como se ali não houvesse nada, e abriam-se enormes e poderosas. Elas movimentaram-se para voar e o homem sumiu assim que elas bateram, iluminando aquele pedaço perdido de terra mais do que o Sol.

    - É, meu amigo... – Falou Godar. – Agora quero ver-te com o peso da imortalidade nas costas.


    Domainy, ainda bobo, começou a acordar e recuperar seu ar gracioso. Ele olhou para Godar e riu, e o mesmo riu também. O homem olhava suas mãos procurando algo diferente em si mesmo, mas nada encontrou.

    - Não fique assim. Com o tempo você vai perceber que tudo continua do mesmo jeito. Você só não vai envelhecer. – Falou o dragão divertindo-se com ele.

    - Godar... – Disse Domainy finalmente intrigado. – Você é um safado. – E o dragão se sobressaltou. – Fale a verdade comigo. Você nunca pensou em morrer! – Mas o dragão apenas riu e pensou que toda grande jornada tem um benefício.


    O velho parou por um último momento sem sequer perceber que o garoto ainda não dormia. Ele simplesmente levantou-se pensativo e começou a se afastar quando a fina voz da criança falou:

    - Vô...
    - Oi, meu filho. – Respondeu o velho um pouco cansado.

    - Isso realmente aconteceu?

    A emoção na voz do garoto era evidente. Seus olhos espreitavam a imagem esguia no escuro do velho de costas para ele, mas o homem apenas respondeu antes de continuar a andar:

    - Talvez, meu jovem. Talvez...




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    Última edição por Emanoel; 31-07-2009 às 07:41.

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    Gabriela



    Henrique punha-se a andar cabisbaixo e absorto. Isso não era de seu feitio; Sempre fora animado e não costumava pensar muito.
    Estava no auge de sua juventude; chegara aos 20 anos exibindo notória beleza e arrogância. Usava seu cabelo preto arrepiado, trazia consigo um sorriso soberbo e sua altivez era completada por seus olhos azuis e seu porte de atleta.
    “Todas as garotas me adoram”, costumava dizer aos amigos de faculdade. Usava um tom de brincadeira, mas que não escondia a verdade. “Posso ter qualquer uma que escolher”.
    Escolheu Gabriela. Bonita menina de ares graciosos. Não andava, desfilava. Exibia-se com seus negros cabelos compridos e seu corpinho de fada. Seus olhos eram tão penetrantes que enfeitiçavam, era o que Henrique disse aos amigos quando lhes contou do novo namoro.
    “Mais duas semanas e estaríamos a 8 meses juntos”, disse para si mesmo o rapaz que caminhava sozinho pela estrada escura que ligava a sua casa com a de sua garota.
    “Mais duas semanas... por que tivemos que brigar?”. Brigaram. Certo que essa não era a primeira vez, afinal, como numa grande embarcação há problemas, num relacionamento não é diferente. Dessa vez, porém, o problema não podia ser sanado, sentia-se como num naufrágio.
    As palavras enfáticas de sua namorada haviam lhe tirado o chão; lançaram-no nas profundezas de um mar repleto de confusão e dor. Desesperado, tentava alcançar a superfície para poder respirar, porém, o grilhão preso ao seu pé era muito forte: o peso de ter errado.
    Tentou fazer com que a imagem de Gabriela, triste, magoada, saísse de sua cabeça por invocar memórias felizes, como quando a conhecera: Andava distraidamente pelos corredores da instituição de ensino superior quando viu passar uma criaturinha singular. Olharam-se e um terno sorriso brotou em seu coração, saiu de lá e estampou-lhe o rosto.
    Era como se fosse para uma rotina maçante e encontrasse o mais belo dos tesouros, o mais valioso dos corais. È quando não procuramos algo que costumamos achar.
    Essa lembrança fez com que lhe apertasse o coração o laço da forca. Um breve riso melancólico veio a sua face, e o rosto de Gabriela, com os olhinhos vermelhos, apareceu-lhe novamente.
    As palavras da menina maltratavam-lhe os ouvidos:
    - Saia daqui! Não quero mais te ver! Vá embora!
    Fechou os olhos com força, e disse em voz alta:
    - Se ela quer que eu suma, está bem, eu sumo! Não preciso dela!
    As palavras e o tom usado lhe deram ânimo novo. Começou a andar mais rápido e a angústia que sentia foi expulsa de seu peito, mesmo que momentaneamente.
    A estrada escura era agora iluminada pela luz da lanterna de um carro. Henrique fechou um pouco os olhos, pôs a mão sobre o rosto, mas logo pôde reconhecer que era seu velho conhecido Jean. Esse, logo que o viu, estacionou.
    - Hei! O quê anda fazendo aí sozinho? Indagou Jean.
    - Estou indo para casa, respondeu Henrique tentando não demonstrar pela voz seu abatimento.
    - Vamos para o bar assistir ao jogo e beber um pouco.
    - Outra hora talvez... Disse o pobre menino que agora estava visivelmente triste.
    - Ora, o quê foi? Problemas com sua garota de novo?
    - Dessa vez acabamos tudo.
    “Acabamos tudo”. Essas palavras ecoaram em sua cabeça. Gabriela não saberia mais de seus problemas, e ele não poderia mais escutá-la e ajudá-la. Acabamos tudo. Promessas de um futuro juntos agora eram apenas palavras que um dia foram faladas por corações apaixonados. Acabamos tudo. Nunca mais dividiria com sua menina os risos e brincadeiras. Acabamos tudo. Siga seu caminho e eu seguirei o meu, bem longe de ti, se possível.
    A pequena conversação roubou-lhe as últimas mentiras. Não adiantava tentar enganar a si mesmo dizendo que não se importava. “Sim, sentirei sua falta”.
    A dor começou a comer o seu orgulho. Orgulho esse que lhe servira como proteção; uma muralha que ninguém havida conseguido ultrapassar. Muitos tentaram, é verdade, mas a viam tão grande e tão inexpugnável... Pequena e delicada criatura; traspassou seu peito, esmiuçou a grande parede que agora estava em ruínas, assim como seu coração.
    Despediu-se do amigo e continuou o caminho para casa. Não estava mais sozinho, estava consigo mesmo, o que lhe torturava ainda mais.
    Cada pensamento de como tudo poderia ser diferente, de como a perdera, eram como brasas acesas que lhe queimavam o espírito. “Se fossem de verdade, não doeriam tanto”, pensou enquanto mordia os lábios a ponto de fazê-los sangrar.
    “Terminamos... ou não? Por que não correr até a casa dela para lhe falar tudo o quê sinto? E se eu falar com ela e mostrar como estou arrependido, de como podemos esquecer tudo e continuar juntos?”.
    A idéia iluminou o rosto do pobre menino. Fez meia-volta e deu três passos na direção oposta a que ia. Parou. Pensou melhor; agachou-se e começou a brincar com duas pedrinhas.
    “Ora! O que eu estou dizendo? Para que tudo isso? Eu sei que ela vai vir correndo para mim de novo. Há! Eu? Triste por uma menina? Não preciso dela! Posso ter qualquer uma que escolher!”. Levantou-se e pisou no nome de Gabriela que havia escrito na terra ao lado da pista.
    Estava andando há um bom tempo. Enxergou um pouco longe os trilhos de trem, sinal que estava perto de sua casa. Deixou de seguir a estrada e virou para atravessar um caminho não menos escuro. Daqui a pouco estaria em casa. Pensou que talvez não andaria mais por aquela estrada que dava na casa de Gabriela. Pensou que talvez nunca mais a beijaria. Pensou que talvez nada daquilo importasse. Lembrou-se da última vez que estavam bem, de quando a levou para passear e lhe roubou um beijo.
    Evocou todas as lembranças, cada momento, quer triste, quer feliz, e os aprisionou como numa grande caixa. Precisava enterrá-la para que nunca mais se lembrasse de nada, a fim de que aquilo não mais o pudesse ferir.
    Com os olhos vermelhos, continuou Henrique a andar, cabisbaixo, absorto. Seu peito doía. Continuou... Chutou uma pedra, tropeçou em outra... A casa em que morava não estava longe; pôs os pés sobre os trilhos e foi atropelado pelo trem que passava todos os dias naquele horário. Sua angustia e dor cessaram, assim como os pensamentos na doce Gabriela.
    Última edição por Emanoel; 31-07-2009 às 07:44.

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    KIWI



    - Fetiches? - Disse bebendo um curto gole do suco de morango. Léo o olhava fixamente, com cara de paranóico. Não dava pra saber no que estava pensando, mas pelo queixo esborrachado no chão, parecia boquiaberto com a demora do amigo em falar daquilo.
    - Ora essa! - Disse energético, desajeitando-se na cadeira de ferro - Na sala tu sempre fala dessas coisas com a maior cara de pau. Que lerdeza é essa?
    Mauro corou.
    - Bom... - Demorou-se brincando com o canudo do suco. Suspirou e virou a cara na direção do balcão pra ver melhor a mulher do balcão. Estava com uma saia curtinha. Oh aquelas pernas! Grossas e bronzeadas. O movimentar lento era cruel aos olhos de quatorze anos de Mauro.

    - As pernas da Joelma me excitam - Falou baixinho sem tirar os olhos delas. Ela sentou-se. Ah meu pai! Estava sem calcinha. Ah não, ah não! Abrira as pernas discretamente - Despudorada! - e dava pra ver tudo através do vidro do balcão. Léo riu ao notar a nada discreta elevação nas calças do amigo.
    - É - Riu um pouco mais e bebeu outro gole do suco de maçã. Não gostava, mas ouvira falar que Bruna gostava, então precisava se acostumar se pretendia namorar com ela. Mauro repetia sempre aquelas palavras chatas que amigo sempre dá nessas horas. “Todo mundo sabe que ela é uma puta”, “Porra ela meteu chifres do Edu!” e ainda de vez em quando era mais radical: “A vagaba toca uma siririca no intervalo!” Mas Léo nem se estressava. Bruna era popular e bonita. Tinha merda na cabeça, fato comprovado, mas era melhor que muita espertinha naquela oitava série.

    - Mas e ai - Seguiu Léo batendo na mesma tecla de sempre - Quais seus fetiches?
    Mauro terminou o suco de morango e riu de leve, olhando maliciosamente pro outro.
    - Quer saber pra me excitar é? - Riu alto, atraindo uns olhares feios de umas senhoras que estavam passando - Nem adianta, não vou gozar vendo você usar a roupa da Joelma.
    Léo arregalou os olhos e socou o braço de Mauro que indicou o dedo do meio fulminando o colega com os olhos cinzentos. Ficaram em silêncio por uns segundos até Mauro comentar alguma coisa sobre Joelma que Léo não ouviu. Olhava abismado pra rua, de onde um cara alto, de uns vinte anos, saía de um Gol vermelho. Mauro ainda tava hipnotizado pelo bronze excessivo da Joelma, que arrumava seus desgrenhados cabelos negros cacheados e se levantava limpar uma mesa que vagara. Maldita mesa! A visão panorâmica acabara.

    - Porra ela levantou - Comentou baixinho, pousando o copo do suco que ainda tava em suas mãos sobre a mesa, tirando uns pratos com migalhas do pastel que comeu antes e os guardanapos de perto. Derrubou um dos suportes e se apressou em levantar, queimando por dentro quando Joelma virou ver o que tinha acontecido.
    - Ora essa - Disse o homem que saíra do carro - Léo... Ta fazendo o que aqui?
    - Ian, cala essa boca - Falou Léo aborrecido de ver o irmão mais velho por ali - Ta me seguindo agora é?

    - Ta me achando com cara de guarda-costas de Barbie? - Passou a mão na barba mal-feita e puxou uma cadeira de uma mesa do lado e sentou ali, do lado do Mauro. Cumprimentou ele e olhou com nojo pros restos de comida na mesa. Disfarçou. - Vim ver a Helô.
    - Ela deve ter ido dar a bunda por ai.
    - Tu ta com inveja.
    - Por quê?
    - Porque a Helô é gostosa.

    Ela era uma sobrinha de uma das secretárias que trabalhavam no hotel do pai do Léo e do Ian. Era loira, com o cabelo meio “pote” com umas mechas cor de rosa. Andava sempre com umas roupas pretas com caveiras e penduricalhos esquisitos e falava engraçado. Mandava tudo se foder. Era chata pra cacete e mensalmente tinha umas birras com a tia no apartamento delas que dava pra ouvir do apartamento do Léo. Ian saía com ela desde o ensino médio, mas só começaram a namorar uns quatro anos depois. Mesmo assim Ian chifrava ela semanalmente, quando enchia a cara sexta de noite e saía correndo pelado na praia.

    - Ela é uma tábua, fala sério! - Quase berrou Léo com a cara fechada. Mentia, mas odiava admitir que a Helô era uma gostosa e que se masturbava pensando nela. Também não ia contar, mas tinha certeza que Ian sabia disso. Era inevitável. No meio da noite, quando ele ia visitar a família com ela, começavam os sons do quarto dele. Uma meia hora depois levantavam, e dava pra ver os peitos nada generosos dela.
    - Ah Léo cala a boca.

    Mauro se limitou a ir rumo ao balcão falar com Joelma, que lixava as unhas de uma forma tão furiosa que parecia que elas iam estourar. A Joelma era bronzeada, tinha aqueles cabelos encaracolados até a bunda - que era enorme. Os peitos intimidavam até o maior pegador e aqueles lábios carnudos eram desejados por qualquer moleque que ia de tarde matar o tempo ali na lanchonete, comer um pastel de palmito e beber um suco qualquer. Tinha quase uns trinta. Mas Mauro achava que tinha chance.

    - Me vê um suco de kiwi - Disse se apoiando no balcão e não conseguindo disfarçar o nervosismo, apesar de tentar. Desviava o olhar furtivamente, mas só o que via eram umas putas cochichando numa mesa perto da janela e Léo gritando com Ian na mesa deles, lá na calçada da rua. Preferiu encarar os lábios da Joelma. Tentou com todas as forças não baixar os olhos pra vagina. Mas era quase uma tortura.
    - Kiwi? - Respondeu com a voz pasma.

    Léo notou a falta do amigo e direcionou os olhos pro balcão. Passou a mão pelos cabelos negros longos e sussurrou um palavrão.
    - O lesado foi atrás dela - Limitou-se a dizer
    - O Mauro? - Ian virou pra mesma direção e riu da cena. Mauro arrumava o cabelo loiro e a roupa enquanto Joelma estava indo pra cozinha arrumar seja lá o que ele tinha pedido - Esse teu amigo deve ser retardado. Acha mesmo que a Joelma vai dar pra ele?
    - Sei lá, ele fantasia coisas impossíveis.
    - E tu não? Ou o lance com a Bruna com certeza vai realmente existir? - Ian gargalhou ao ver a cara de fúria do irmão, que mandou-o, nada discretamente, ir à merda - Ora, ta nervosinho porque ouviu umas verdades é?
    - Ian cala boca porra. Quem te falou da Bruna? - Não estava surpreso. Era de praxe que Ian ficasse controlando sua vida. Era capaz até de estar subornando seus colegas em busca de informações. Ian era perito na destruição total da adolescência alheia. Só porque seus pais o botavam no cabresto quando tinha dezesseis. Não podia ir a festas, sair de noite, curtir com os amigos. E descontava no irmão.

    - Ninguém precisa falar. Já te vi olhando pra ela com cara de babão - Comentou Ian analisando os restos no prato do Léo - Camarão? Hmm o pastel de camarão daqui é bom mesmo. Vou pedir um.
    - Como assim cara de babão? - Léo estava começando a suar ligeiramente preocupado. Será que era tão discreto assim?
    - Porra cara, ela só não notou se é cega. Qualquer pessoa com meio cérebro saca que tu ta de quatro por ela.
    Mauro voltara com um copo enorme com um líquido verde viscoso com uns negócios pretos em mãos.
    - Que é isso? Suco de meleca? - Indagou Ian, meio rindo da cara que Léo fizera de “vou te esganar”.
    - Kiwi - Limitou-se a falar.
    - Kiwi? - Léo fez uma cara de nojo e desviou o olhar do copo. Ian nada disse e levantou-se, rumando ao balcão. Lá se escorou e falou alguma coisa inaudível pra Joelma, que sorriu maliciosamente e entrou na cozinha.

    - É Kiwi.
    - Pra que isso? Kiwi é nojento.
    - É nada. E também pretendo usar isso no banheiro.
    - Vai tocar punheta olhando pra um copo? Que tosco.
    - Nada disso sua anta - Falou Mauro batendo com a mão na testa - Tudo pra ti termina nisso né?
    - Ora essa, que mais tu faria com isso no banheiro?
    - Vou me lambuzar com isso.

    Léo torceu a face e ficou boquiaberto por uns tempos. Ai começou a rir freneticamente. Quase caiu da cadeira de tanto rir, chegando a ficar vermelho.
    - Vai brincar de incrível Hulk? - Falou ainda rindo muito, fazendo Ian desviar o olhar de uma das garotas da mesa da janela pra ele.
    - Não seu otário. É um fetiche.
    Léo parecia profundamente arrependido de ter tocado no assunto antes. Parou de rir e olhou com a sobrancelha erguida pro amigo.
    - Se lambuzar com suco de Kiwi? E o que isso tem de excitante?
    - Da música - Faliu Mauro com a cara de que aquilo era a coisa mais óbvia do mundo - Lembra?
    - É uma música. Não quer dizer que tu tem que jogar suco de Kiwi em você.
    - Mas e se eu quiser? - Falou ele indiferente ao comentário - Imagine Joelma me lambendo todinho.
    - Vai se lambuzar e sair saltitante por ai gritando “Joelma me lambe”?
    - Tu não tens imaginação - Disse sarcástico.
    - Melhor não ter imaginação que ter demais. Porra depois eu que sou neurótico. A Joelma nunca vai querer nada contigo! Nem pintado de ouro. Ou melhor, lambuzado de suco de kiwi.
    - Assim como a Bruna ta se fodendo pra você. Ela ta mais pro Tiago.

    - O Tiago é um vegetal. Eles nunca vão ter nada.
    - E vocês vão ter?
    Léo se calou. Ian chegou com um pastel de camarão em mãos e sentou-se ao lado do irmão, comendo furiosamente.
    - Vai ficar de encosto por muito tempo?
    - Eu já disse: Tou esperando a Helô.
    - Ela nunca vai chegar.
    - Marcamos às três.
    - São três e vinte.
    - Ela sempre atrasa.
    - Porque ta transando com um bocó qualquer.
    - Foda-se. Chifro-a também.
    - Como vocês mantêm uma relação? - Léo estava com uma cara confusa.
    Ian ignorou e seguiu comendo o pastel.

    - Mauro - Léo olhou feio pro irmão e voltou a falar com o colega, que estava do outro lado da mesa, olhando pra praia do outro lado da rua. Teve a impressão de ver Bruna e Tiago por lá. Apertou os olhos mas não viu nada - Porque Kiwi?
    - Por causa da música - Falou ainda procurando os dois. O Rio era enorme, decididamente haviam outras pessoas parecidas com os dois. Devia estar delirando ou vendo sósias.
    - Isso não é fetiche. É psicose.
    - Pela Joelma eu viro psicótico.
    - Você já é?
    - Qual a história do kiwi? - Disse Ian se metendo na conversa. Estava com a boca cheia e uns camarões caíam de sua boca rumo ao chão imundo.
    - Mauro vai se lambuzar de suco de kiwi pra Joelma lamber ele.
    - Léo!
    - Mauro! - Olhou feio Ian. Não riu, apenas olhou com uma cara de surpresa e ligeiro nojo e uma pitada de compreensão pela psicose do outro. Nunca fora assim, mas um amigo seu, Elias, era. Logo, sabia mais ou menos o que se passava na cabeça do amigo do Léo - Pra que isso? Joelma e você nunca vão ter nada.
    - Por quê?
    - Porque ela tem o dobro da sua idade, porra!
    - E daí? Ela pode muito bem ter algo comigo.
    - Só se quiser ser presa por pedofilia.
    - Não sou criança.
    - Nem adulto.

    Mauro suspirou e voltou a olhar Joelma que falava animada com um rapaz que indiscretamente olhava pros seus peitos. Ela parecia notar. E gostar. Porque não demonstrava felicidade quando Mauro o fazia? Que decepcionante.
    - Mauro... - Ian falou baixo, terminando o pastel de camarão e ignorando os gestos de Léo pra que Mauro não o ouvisse - Olha... Já é difícil que Joelma queira algo com você. E não é se lambuzando com suco de kiwi que ela vai querer!
    - E quer que eu faça o que?
    - Sei lá. Não assisto novela pra saber como lidar com sentimentos.
    - Sentimentos? Não tenho sentimentos. Tenho atração.
    Ian suspirou e repreendeu Mauro com o olhar.
    - Pior ainda. Se tivesse sentimentos podia rolar algo por pena.
    - Rola sexo por pena.
    - Mas não é prazeroso.
    - Mas rola.

    - Eu posso lhe mostrar como conseguir um encontro. Não com Joelma. Com outra garota.
    - Quero com Joelma! - Mauro teimava como uma criança de cinco anos faz.
    - Porque você não é legal comigo? - Léo estava se metendo na conversa, com o olhar severo e a cara mais furiosa possível. Estava apoiado à mesa com os cotovelos, erguendo-se na direção de Ian.
    - Porque você é meu irmão.
    - Mas ai sim você devia ser legal comigo! Ou será que rola aquele lance de eu ter roubado a atenção dos nossos pais?
    - Que atenção? Eles me odeiam.
    - Porra, tu fumava maconha!
    - E tu tinha que conta né! - Ian estava olhando lívido para o irmão, e pela cara que ambos faziam, e as poses em que se encontravam, parecia que iam se levantar e se estapear ali na frente.

    - Ian, como ia dizendo...? - Mauro tentou inutilmente continuar a conversa, crendo veemente que conseguiria ir pra cama com Joelma.
    - Que porra, quer saber da verdade? - Ian se levantara e estava praticamente gritando, atraindo olhares curiosos. A vontade de Mauro era ser laranja para se esconder na parede. Sentiu-se um idiota quando Joelma lançou aquele olhar quente na sua direção - Eu não sou legal contigo porque tu nunca me deu razões pra isso! Feliz agora?
    - Não! - Sempre com uma resposta na ponta da língua. Talvez fosse melhor ele ter calado a boca e matado o assunto.
    Suspiraram. Ian se sentou e ficaram calados por uns instantes.
    - Você me odeia porque sou diferente demais de você - Disse Léo por fim.
    - Que culpa eu tenho se você não sabe pegar ninguém? Ou ainda, não transa com ninguém.
    - Eu tenho quatorze.
    - Nessa idade eu não era mais virgem.
    - Tu trai a Helô, não pode falar nada.
    - O QUE? - Bradou uma voz feminina às costas de Ian. Este se virou. Era Helô.

    - Helô? Que cê ta fazendo aqui? - Ian surpreendeu-se ao ver a namorada parada em pé com aquele olhar reprovador. E diga-se de passagem: ela não tinha o direito de lançar aquele olhar.
    - Eu ouvi o que acho que ouvi? Você está me traindo?
    - Não, você deve estar com problema no ouvido! Eu disse pra não furar tanto as orelhas! - Ian suava excessivamente enquanto tremia levemente pelas extremidades. Léo fuzilou-o com seus olhos e parou em pé.
    - Como assim? Você disse que ela ia vir pra cá! - Gritou indignado. A essa altura todos olhavam para a mesa conferir como ficaria o final daquela situação familiar. Até Joelma parara o serviço e estava sensualmente escorada no balcão.
    - Eu não disse exatamente isso.
    - Você mentiu pra mim? Ah não! Tudo faz sentido, seria coincidência demais vocês dois virem pra esse lugar quase deserto há essa hora! Ian tu ta me seguindo?

    - E-eu... Eu... - Engoliu em seco e sorriu amarelo.
    - Como você pôde? - Disseram os dois “traídos” em coro.
    - Você acha que pode me seguir? Ver minhas companhias e o que faço? Que porra é essa?
    - Acha que eu não tem sentimentos? Acha que sou sua bonequinha de pano?

    Mauro soltou um longo e sonoro suspiro e levantou-se. Ninguém estava nem aí pra ele, mas sim para a briga na mesa. Arrumou o cabelo e pegou o suco de kiwi, entornando-o na boca e soltando o copo indelicadamente sobre a mesa. Saiu andando rumo à praia. Léo notou.
    - Mauro! Espera! Não quero ficar mais nenhum segundo perto desse vil! - Disse isso cuspindo no irmão mais velho. Virou-se na direção da praia e seguiu o amigo, deixando o casal se entender.
    - Está acabado! Tudo acabado! - Bradou Helô, púrpura.
    - Ah não venha dar uma santinha! Eu sei que tu dá o rabo nos banheiros públicos!
    - Então sabia disso e mesmo assim ficou comigo? Nossa, que lindo! - Sarcástica, como de costume.
    - Então! Fique comigo também! Não vamos nos separar por uma coisinha boba dessas, vamos?
    - VAMOS! - Ela estava vermelha a essa altura - E sabe por quê? Porque eu sou pior que você - Disse isso e começou a agredi-lo com sua gigantesca bolsa de mão, arrancando exclamações e onomatopéias não só dele, mas de todos os presentes.

    ***

    Após o espetáculo teatral ali, Joelma soltou uma risadinha e voltou para a cozinha secar a louça. Secava enquanto cantarolava uma certa musiqueta. Sua companheira, Alice, preparava um suco pastoso e nojento para um dos clientes e aumentou o volume do radinho socado sobre uma mesa num canto da cozinha. Joelma começou a rebolar sua bunda gorda.
    - Eu amo essa música! - Exclamou exaltada enquanto tentava acompanhar o ritmo.
    - Fala sério, o cara se lambuza com suco! Que coisa nojenta.
    - Nojento nada! - Joelma protestou sorrindo radiante - Eu acho legal fazer isso. Sabe eu ia gostar de um amante que chegasse a ponto de se lambuzar pra me excitar!
    - Joelma! Eu não conhecia esse seu lado! - Riram as duas.
    - Fazer o que? São fetiches.
    Última edição por Emanoel; 31-07-2009 às 07:46.

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    Mão de Deus



    Ezequiel mais uma vez acendeu um cigarro. Sentiu o gosto amargo descer por sua garganta. Soltou uma baforada de fumaça. Sabia que aquilo poderia comprometer sua missão. Não estava nem um pouco preocupado. Tinha feito um rascunho, em sua casa, de prioridades:
    1-Cigarros
    2-Pistas
    3-Objeto
    4-Silêncio
    5-Chicletes
    6-Inimigos
    Como o item 1 poderia comprometer o item 2, ele tinha que ter cuidado dobrado. O item 6 era o mais difícil, e por isso ele tinha o deixado como último - a preguiça sempre reinava.
    Uma placa de ''PROIBIDO FUMAR'' se destacava logo à frente do museu. O seu relógio paddle, ainda que digital, era bonito. Azul e prata, apesar de a prata ser apenas pintada. Marcava 7:30 da noite; o guarda balofo na entrada do museu, que cobrava os tíquetes, já estava cansado. Fácil. Tirou o cigarro da boca e gentilmente deixou-o cair, ainda aceso, na lixeira. Aproximou-se do gordo, estampando o melhor sorriso que sua cara permitisse; os olhos verdes - de Ezequiel - por detrás dos óculos meia-lua brilharam ao vislumbrar a lanchonete ao lado da cabine de comprar a entrada.
    - Para você comprar alguma coisa para comer - Ezequiel falou, colocando delicadamente uma nota de cinqüenta no bolso do guarda, enquanto dava uma piscadela. Ele liberou a entrada, fazendo uma careta.
    Teria sido muito mais fácil comprar o tíquete barato? Sim. Mas isso asseguraria que o guarda não colocaria a língua para fora nas interrogações (já que ninguém era burro o suficiente para entrar em um museu faltando trinta minutos para fechar). Alisou o cabelo oleoso, castanho-claro, antes de colocar a touca vermelha. Passou pela entrada e deu uma olhadela geral, tirando uma foto mental.
    Primeiro andar: Esculturas. Sem proteção, porém com uma faixa de segurança delimitando o espaço em que ninguém podia se aproximar. Deveriam ter vários alarmes ali. No centro havia um diamante, mas um vidro de segurança o cobria.
    Segundo andar: Pouco dava para ver dele, ali embaixo. Mas sabia que era o setor só de quadros, e isso levava ao...
    Terceiro andar: Poucos sabiam da existência de um terceiro andar.
    As câmeras de segurança estavam fixadas por todos os cantos. Sorriu apaticamente, desta vez com certeza que tudo daria certo; fechou o zíper da jaqueta volumosa e, portanto, quente.
    Ele ficou parado alguns minutos: O relógio marcava 7:40 agora. Os alto-falantes transmitiram: '' Favor, clientes, se prepararem pare se retirar em quinze minutos. Agradecemos a visita, voltem sempre''.
    Um domingo de verão frio. A combinação perfeita de coisas ruins. Só poderia ser pior se fosse segunda. Mas não havia nada que pudesse abalar o ânimo de Ezequiel naquele dia.
    Andou pelo corredor, os visitantes agora todos se arrumando para ir embora. Subiu a escada, o mais rápido que suas pernas de gazela permitiram; estava no segundo andar em poucos segundos. A entrada estritamente proibida para pessoal não-autorizado estava logo no fim dos quadros dos anos setenta; ela levava para o terceiro andar.
    Ficou frente a frente com a porta, deixando que o olho mágico ficasse logo à sua frente. A porta se abriu com um clique.
    - Entra, entra. - falou animado o rapaz de cabelos louros e uniforme azul (esta roupa colocada de modo desajeitado por cima de outra vagabunda) do lado de dentro da sala. - Não tem câmeras aqui.
    Ezequiel balançou a cabeça afirmativamente, obedecendo-o. Era uma escadaria. Abriu a jaqueta e passou-a para seu primo, que por sua vez livrou-se do traje de funcionário. Ambos trocaram as vestimentas, mas ambos continuaram com suas jeans.
    - Não se esquece, Marcelo. Coloca o capuz e a touca. Não podem desconfiar que você não seja eu.
    - Sussa - passou o molho de chaves para o homem do relógio paddle, que adentrou na sala; Marcelo saiu correndo.
    Ezequiel agradeceu silenciosamente que tudo estava correndo conforme o combinado. Subiu um lance de escadas e adentrou a porta. Pegou a caixinha de chicletes da calça. Comia uma de sabor menta; dava-lhe uma vontade de fumar cigarros, apesar de ter começado a comer chicletes para parar de fumar. Acendeu outro e tragou ali mesmo, no depósito.
    Havia caixas e mais caixas de tralhas, quadros, esculturas quebradas, estantes abarrotadas de mais tralhas e caixas, e, no centro da sala, quatro computadores lado a lado. Caminhou até um deles: Vigília. Uma tela gigantesca tinha imagens de todas as câmeras. Não se importou muito com as outras, mas visualizou que uma era dos alarmes, outra ainda com as câmeras e a última estava muito longe para que ele pudesse ver somente sob as luzes fracas do monitor.
    Pegou mais um chiclete. Cuspiu o outro na lixeira, junto com o cigarro. Não tossiu porque o vício viera à tona não fazia muito. Sem touca, seu cabelo caía despretensioso por cima dos óculos.
    Repassou mentalmente o que faria quando saísse dali: O guarda cairia fora assim que ele estivesse do outro lado do museu, porque era o dia que Marcelo deveria fechar. Ezequiel sairia com algo de valor: Entraria no Civic, trocaria de roupa com Marcelo - já que os vidros faziam com que fosse impossível de se enxergar por fora o que acontecia lá dentro -, e o mesmo iria fechar a loja. Nesse meio tempo, Ezequiel entraria no fusca dirigido por seu irmão, deixando o que fosse que ele teria roubado no Civic.
    Começou a abrir os caixotes, fuçar as tralhas e gavetas. Não havia muito mais do que papéis, formulários, peças inutilizadas ao redor. Lá por volta das 8:20 tinha achado um anel de brilhantes que deveria não ser vendido a mais de 20 reais por uma loja de bijuterias. Guardou-o no bolso, e após isso desistiu de procurar naqueles arredores. Estava avançando para a outra estante quando viu, acidentalmente, um par de tênis Nike novíssimos que deveriam ter sido esquecidos por ali. Trocou seus sapatos pela nova descoberta e por via das dúvidas, foi no banheiro da despensa - anunciado por um letreiro de ''banheiro'' - e deu descarga em seus velhos companheiros de caminhada (não tendo certeza qual era seu objetivo ao fazer isso), deixando-os ali.
    O que ainda o preocupava não era achar um objeto realmente valioso, e sim conseguir sair tão tarde com as câmeras ligadas e não ser identificado quando estivessem assistindo à tarde. Ezequiel prometeu a si mesmo que nada aconteceria. Ele conseguiria finalmente ter uma vida próspera e de riqueza e conseguiria pagar o tratamento para o câncer do pai.
    - Ó, Deus, me dê uma mãozinha. - sussurrou, rezando baixinho como sempre fazia quando precisava. Em horas de que não precisava de nada, era ateu.
    Enquanto procurava por mais algo que valesse a dor de cabeça, pensava no que a lista realmente significava para ele. Fora um momento de inspiração, e depois lhe soou como algo escrito por um completo desconhecido. Acontecera a exata mesma coisa no momento em que planejou o assalto. Pôde relembrar claramente do momento:
    Marcelo chegou em casa, com aquele sorriso de maníaco que ele usava quando acontecia algo importante - algo muito importante. Ezequiel e seu irmão ficaram chocados ao saberem que o primo havia sido promovido (imagina, um inútil daqueles, agora com um cargo importante!):
    - Mano, tu nem sabe das novas. Agora eu não sou mais carregador. Trabalho organizando o estoque e colocando fora as coisas inutilizáveis. E o melhor: Tô ganhando quase dois paus por isso!
    Naquele momento, Ezequiel teve um sobressalto e dispôs-se a levantar o traseiro magro do sofá e pegar um bloquinho de anotações: Escreveu tudo de forma que só ele entendesse e pudesse explicar para os dois comparsas depois.
    Aquilo explicava muito bem o estado em que o depósito tinha ficado.
    O item dois - pistas - era o que ele poderia deixar de identificável. Pensou nos cigarros e nos chicletes - meu Deus!, se fizessem um teste e descobrissem que fora ele o criminoso, pela saliva, estaria arruinado. Para aliviar a tensão, acendeu outro cigarro.
    O três obviamente significava o que ele iria roubar. O item quatro deveria significar silenciar o guarda, coisa que Ezequiel já tinha feito. O seis muito provavelmente queria dizer sobre as câmeras.
    Levou um tempo até perceber que estava se engasgando com um chiclete. Cuspiu a massa verde em suas mãos, a saliva escorrendo por seu queixo quadrado. Limpou apressadamente e colocou o chiclete mascado no bolso. Aos poucos, uma brilhante idéia pipocou em sua mente. Saltitou por entre os espaços vazios até os computadores enfileirados e deu uma olhada no único que não tinha visto. Abriu um largo sorriso.
    Havia uma tela exigindo uma senha. Aquele deveria ser a central que Marcelo tinha falado - poderia controlar todo o museu a partir dali. Só o dono sabia a senha, mas não custava tentar.
    Ao mexer o mouse, um espaço em branco exigia a senha. Começou digitando chefe e variações, partindo até a segunda mais famosa seqüência de números: 654321. Teve vontade de rir ao ver que havia dado certo. Após mexer nos programas por um tempo - passavam facilmente das 8:35 naquele momento - descobriu a função de desativar as câmeras. O suor começou a brotar das axilas de Ezequiel. Não podia ser assim tão fácil.
    Tinha que haver alguma armadilha.
    Havia uma armadilha, ele podia apostar sua vida nisso. Passou agressivamente a fralda da camisa por cima do mouse e do teclado (novamente não tendo certeza se isso iria mudar alguma coisa, mas o fazendo de qualquer jeito). Havia desativado as câmeras e os alarmes.
    Resolveu deixar isso de lado, mas permaneceu apreensivo; Saiu do depósito, tropeçando volta e meia na escuridão. Ao achar a saída, a luz forte quase o cegou por um instante, suficiente para ele soltar um grito rouco.
    Recuperou a postura e se lembrou do diamante do primeiro andar. Absorto em seus pensamentos, apenas percebeu que estava ao lado do objeto ao dar um encontrão na parede. A preciosidade ficava logo abaixo de um pedaço quadriculado no segundo andar, dando uma visão do teto de lá. Massageou levemente as costelas. Inspirava devagar e expirava rápido demais. Acendeu outro cigarro. Passaram-se mais de cinco minutos até Ezequiel apagá-lo e colocá-lo no bolso. Vislumbrou o diamante branco, brilhante, bonito, com uma forma de quase-triângulo.
    Cumprindo a ordem de prioridades, deu uma última respirada, quase tranqüila, serena; tirou o avental de Marcelo que estava usando e o enrolou na própria mão, soqueando o vidro que cobria o diamante logo em seguida. A mão, um pouco ensangüentada, continuou coberta pelo traje de funcionário. Que se fodesse aquilo. Precisava obedecer à ordem, tinha certo padrão que ele deveria cumprir - sentia que deveria ser assim.
    Com a esquerda, sã e salva, envolveu a mão coberta de suor na superfície gelada do diamante. Juntou mais um item para sua pequena coleção no bolso da jeans: Anel, chiclete, cigarro, diamante.
    O item quatro pronto, sentiu-se obrigado a cumprir o quinto. Pegou a caixinha onde o último chiclete se encontrava, mas estava nervoso demais e a deixou cair. Agachou-se para pegá-la, e viu que o Nike estava desamarrado. Levou quase dois minutos fazendo um nó perfeito (que não ficou tão perfeito assim). Pegou o Trident e estava retirando uma unidade lentamente, com um bocejo na ponta da língua, quando escutou um barulho alto no teto. Instintivamente, olhou para cima, no momento em que calhas e tijolos se desprendiam e caíam em uma espiral estranha, sobrenatural.
    De início, Ezequiel ficou estupefato. Mas não teve tempo de ficar ainda mais quando o buraco alargou-se em questão de segundos, um imenso punho surgindo da poeira e cacos do teto. Um pedaço de tijolo desprendido bateu no ombro do assaltante, que começou a gritar; uma fileira de sangue vertia do machucado. Voltou a olhar para o estranho local onde estava seu atacante. Percebeu que ele recuperava forças para dar mais um ataque: Deveria ter acontecido o mesmo no terceiro andar. Que mão estranha poderia estar vindo do céu?!
    A segunda investida que Ezequiel presenciou foi ainda mais brutal: O punho se abriu e foi descendo rápido, fechando em cheio no homem (a mão cobria quase todo ele, fora a cabeça que ficara solta). Todo seu corpo doía. Em meio ao caos e ao terror, Ezequiel foi puxado para cima, mais objetos batendo em seu corpo, fazendo-o desmaiar, a poeira cobrindo-lhe o rosto, o museu desabando; a pele do jovem estava tão negra de sujeira quanto a mão gigante. Os óculos quebraram.
    E a mão foi puxando, puxando, chegando à mais alta das nuvens, onde desapareceu por completo. Depois de alguns instantes, Ezequiel foi largado dos céus, acabando de acordar do desmaio; a descida vertiginosa resultou que o homem foi espatifado no chão.
    E seu último pensamento foi que se tivesse comido menos chicletes, poderia ter uma vida muito melhor, morrendo sufocado com o pulmão em brasas daqui a alguns anos.
    Última edição por Emanoel; 31-07-2009 às 21:32.

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    Meia-noite



    - Kenius.
    - Sim?
    - É aquele homem – Afirmou o velho barbudo e careca que estava ao meu lado.
    - Entendido, velho. Encontraremos-nos na taverna em uma hora, agora me deixe sozinho aqui para observar o alvo.

    Desceu. O tempo era meu. Um cavaleiro cinqüentão descansava junto aos outros convidados daquela decadente festa. Aliás, tudo ali era decadente; não só os convidados como o local também. Eu mesmo estava receoso de estar pendurado naquelas paredes podres. Pior, estar sendo segurado por uma merda de corda arranjada pelo velho e esta, amarrada nas velhas armações protegidas pelas telhas igualmente antiquadas. Mas de que me interessava o lugar, afinal? O que realmente me trouxe para aquele casarão discreto era o peculiar evento que lá dentro ocorria, e um convidado em particular.

    - Mas já vai?

    Assim que percebi o movimento do faceiro cavaleiro antes apontado, pus-me a subir pela corda até alcançar o telhado. Saída. Pela trajetória que o vi fazendo, concluí que se dirigia para a porta dos fundos. Tomando cuidado para não quebrar as frágeis telhas por onde andava, consegui chegar do outro lado do teto. A noite conseguiu me surpreender novamente. De onde eu estava, era possível enxergar a porta dos fundos, logo abaixo dos meus pés. Frente a ela, a surpresa: dois soldados que vestiam as roupas da guarda thailense. O que faziam os seventes de Gregor ali, esperando a porta ser aberta?

    Melhor era aguardar para ver o que os subordinados do general de Thais fariam. Não tardou e a porta foi aberta. Discretamente o faceiro apareceu, fez um cumprimento militar, e, discretamente, lhe foi entregue uma caixa. Logo após, o tal fechou a porta voltando para o interior do casarão, e os soldados viraram-se para ir embora. Era a hora de agir.

    - Jim, ouviu algo?
    - Não... Por quê?
    - Juro que ouvi um barulho de folhas em movimento...
    - Se está dizendo, vamos voltar e conferir.

    A certeza do sucesso veio quando os dois guardas ingênuos voltaram-se novamente para o casarão. Na busca de algo em torno do carvalho, ao lado da construção. Aproveitei a brecha para sair de meu esconderijo no alto. Um dos guardas foi o amortecedor de minha queda. Antes que o outro pudesse gritar, passei-lhe o sabre pelo pescoço, fazendo sim um ruído, um gemido, nada que me comprometesse.

    - Bingo.

    Após vestir as roupas do primeiro, pois as vestes do segundo estavam inteiras banhadas e sangue de pescoço, escondi os dois corpos atrás de um arbusto. Só para ter certeza, enfiei um punhal no peito do guarda desacordado, desencargo de consciência. Bati novamente na porta, os segundos que viriam a seguir determinariam a missão.
    Sim, o faceiro novamente abriu a porta:

    - Algum problema, soldado?
    - Você.

    Missão concluída. Aquele loiro vaidoso, com aparência divina, apensar da idade, cuspia sangue enquanto minha arma letal penetrava seu abdômen. Nem uma simples palavra soltou. Pelo cabelo, o levei para junto dos cúmplices, não podia, afinal, manchar-me com sangue de assassinato. Embora tivesse concluído o que me fora mandado, iria além. Pegaria a maldita caixa estranha, me cheirava a problema, sendo que vinha pelas mãos thailenses. Mas creio que isso não seja mais do seu interesse, Senhor Ville.

    - Kenius, não creio que esteja em condições de omitir coisas.
    - Senhor Ville, eu detesto dizer isso mas, tudo que saberá é o que eu falei, afinal de contas o tempo que perdeu me ouvindo garantiu a minha vida.
    - Do que está falando, Beson?

    Jogou seu peso para a esquerda, caindo junto à cadeira onde estava amarrado, quebrando o frágil móvel. Todo o tempo em que contava o que todos já sabiam sobre o que havia acontecido algumas horas atrás Kenius Beson aproveitou para notar as peculiaridades da sala, não só detalhes como a cadeira, mas também o lustre que enfeitava o teto acima de onde estava e a belíssima Katana que, dentro de usa bainha, adornava a parede da saleta. Assim, ao chão com a cadeira despedaçada, persistia amarrado, quando percebeu que o carrasco que o assistia segundos atrás o golpearia com a espada, rolou com o intuito de deixar as cordas à mostra, que foram cortadas, vista a impossibilidade do homem de conter a arma, uma vez impulsionada.

    Livre, mas ainda deitado, girou o corpo dando uma rasteira no interrogador, que caiu deixando a espada ao chão também. Beson levantou-se então, foi até a linda Lâmina oriental da parede, tirou-a de sua bainha harmoniosamente adornada com pedras preciosas, e jogou-a rumo à corda que segurava o lustre ao teto. O magnífico ornamento caiu parcialmente destruído sobre o homem.

    - Foi um prazer conhecê-lo, e, sobretudo enganá-lo, senhor Ville.

    Assim que saiu da bela sala, voltou ao ambiente velho e antiquado do resto do casarão, estava no segundo andar. Correu para a direita, encontrando a escada que levava ao térreo, mais ninguém estava ali. Desceu-as e rumou para a porta dos fundos, alguns metros à frente passando por outro cômodo. Respirou fundo para acalmar o corpo e saiu do local num semblante calmo, discreto. Foi andando até o destino traçado, não demorou a chegar.

    - Demorou, Kenius Beson...
    - Desculpe... Tive um pequeno problema, velho. Agora vamos ao pagamento.
    Última edição por Emanoel; 31-07-2009 às 07:51.

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    Memória Pilchada



    Rua cheia, céu nublado, vento frio – do tipo de brisa leve que, úmida, anuncia a proximidade da chuva...

    Um homem caminha com passos firmes e barulhentos por entre as vendas de quinquilharias e as pessoas absortas em seus próprios afazeres tediosos. Exótico e confortável em suas vestes, contrasta com a multidão de paletós, suéteres e saltos-altos: Seu poncho alegre e multicolor, uma longa manta tradicional de um algodão felpudo – herança deixada por índios peruanos ancestrais - o cobre do pescoço onde pende o lenço até as botas cobertas de lama seca.

    No meio daquele mar de desconforto, gravatas apertadas e pés espremidos em sapatos o homem parecia um bicho estranho, deslocado do seu habitat. O ritmo das suas passadas é lento, sua expressão serena.

    Tudo em volta é frenético, porém: os outros andam como se a própria calçada ou os prédios demandassem pressa, opressores.
    Ele, ao contrário, anda e observa. Nada parece escapar ao seu olhar manso, como se procurasse por algo. Mas não parece haver nada ao redor, nada de vivo para ser achado – apenas fumaça cancerosa das chaminés ambulantes, suor, concreto e ânimos de ódio.

    Enfim, algo digno captura a sua atenção: Um menino pequeno, eufórico, brinca de cavalgar em seu potro imaginário, montado em meio cabo de vassoura. O garoto passa por entre as pessoas dando ordens para seu cavalo, e parece não notar o que se passa ao seu redor – o mundo em sua cabeça é, certamente, muito mais interessante que o real.

    Essa visão o deixa admirado - ele pára de braços cruzados e apenas observa. No seu rosto marcado pelas agruras da meia-idade subitamente se nota um sorriso maroto e juvenil, daqueles que a face de um tolo não poderia exprimir – e também inconcebível para os velhos de espírito.

    Após se aproximar da criança sem tirar os olhos dela, o Xirú se agacha e diz, amigável:

    -Ei guri!

    O garotinho então vira-se para ele, puxando as “rédeas” com força para manobrar o “cavalo” bravo.

    -Mui formoso o teu cavalo, - Ele encara levemente o pequeno, esperando para ver a sua reação, mas o jovenzinho mantém-se calado. Ele era um “estranho” para o pequeno, afinal, em muitos sentidos e aspectos. Meio temerosa, a criança olha interrogativamente para um senhor muito barbudo a poucos metros de distância: Seu pai, que não percebe nada – ocupado demais a comparar os preços de uma vitrine. O olhar da criança permanece sem resposta.

    O Xirú continua a falar, insistindo na conversa:
    -Entonces, o que quieres ser quando crescer?

    O pequeno pensa por um brevíssimo momento apenas, e então olha bem nos olhos do outro como quem olha para um amigo. Resoluto e agora sem consultar ao pai, ele responde com característico entusiasmo infantil, abrindo bem a boca e os olhos – tinha a resposta na ponta da língua:

    -Quero ser um grande herói! Como os da tevê!

    O homem primeiro esboça um largo sorriso, mostrando que gostou da resposta, e em seguida ri às gargalhadas, chamando a atenção de todos ao redor - que olham desconfiados e repreensivos. Nessa cidade, nem mesmo o som da alegria é bem-vindo.

    Após um momento a risada se dissipou no ar como fumaça e, sorrindo de boca aberta de modo a mostrar bem os dentes amarelados, o homem do poncho diz:

    - Um grande herói, sim! Sabe, piá, heróis eu conheço alguns – Novamente o sorriso maroto de antes brota em sua face, tão naturalmente como a água cristalina que brota da terra nas montanhas.

    O homem do poncho, ainda sorrindo e agachado, fica pensativo por alguns segundos a olhar seu interlocutor, que agora já se prepara para puxar as rédeas e sair a galope. Por fim, dá um forte e sonoro tapa no próprio joelho, fazendo o menino pular de susto, e fala feliz:

    Ahá! Pois então, guri, que seja!

    E dizendo essas palavras, sutilmente cobre os olhos da criança com uma das mãos calejadas e ásperas.

    .......


    Por alguns instantes, tudo vira escuridão para o menino - seus olhos nada vêem. Uma emoção profunda toma conta do seu ser, e por um instante ele se torna livre e uno com o universo, enquanto é engolido por um silêncio absoluto. Logo após sente muito frio, como se a própria matéria do seu corpo perdesse quase todo o calor, e seus sentidos ameaçam falhar, indicando a proximidade da morte.

    De repente, justo quando tudo parecia chegar ao fim, ele sente seu próprio corpo novamente. Retornando à vida, respira fundo como quem emerge após um longo tempo sem respirar, desesperado.

    Algo havia mudado. De alguma forma ele percebeu que nada mais seria como era antes, e por um segundo ficou na penumbra, no limiar inalcançável do real que se situa exatamente entre o passado e o futuro. No segundo seguinte, voltou a sentir algo à sua volta, e novamente ficou preso à realidade, separando-se de todo o resto...

    Sente-se um tremor no ar, seguido do estrondoso som de um canhão fazendo fogo. Um instante após, outro som o envolve: Como se fossem o oceano, tomando conta de toda a percepção, muitas vozes masculinas em coro gritam com toda a potência de seus pulmões - era o brado furioso de muitos homens da guerra. Assustado, com o coração na boca batendo muito rápido, o garoto abre os olhos e vê novamente.

    Extasiado e sem acreditar no que seus olhos lhe mostravam, fica boquiaberto: As ruas de pedra morta e as nuvens tristonhas não estavam mais lá. Em seus lugares ficou apenas um gramado verde-acinzentado que, coberto de orvalho, dança com o vento minuano sob um céu vermelho banhado pelas primeiras luzes do sol. Olhando em volta, nota que está montado numa bela égua malhada e inquieta que, nervosa, mexe as patas e ameaça relinchar. Percebe também que é seguido de perto por canhões e homens de todas as cores de pele, entre os quais estavam centenas de outros cavaleiros empunhando lanças e armas de fogo, em formação militar.

    Ele agora já era adulto, suas feições infantis e a pele imaculada deram lugar a barba e bigode malfeitos e um rosto bem marcado, com ossos proeminentes e cicatrizes de muitas batalhas. O sabre pesado na sua cintura estava pronto para ser desembainhado, e parecia ter vida própria, desejoso de ser empunhado.

    Do outro lado do campo vinham outros gritos. Embora não se pudesse ver a sua origem, se aproximavam rápido – eram as tropas inimigas.

    Embora a situação fosse inexplicável e confusa, nada parecia estar errado. Ele tinha lembranças de uma vida inteira, campos verdes e primaveras percorridas em cima do lombo de cavalos. Aquela era a sua vida, e sempre havia sido. Nem em seu coração ou sequer em sua mente havia dúvidas.

    Sem que ele percebesse, todo resquício de memória do seu antigo e barbudo pai, do cabo de vassoura, da cidade agonizante: tudo perdia nitidez e sumia rapidamente, de volta ao pó – quando ainda era palpável aquela realidade era vazia, mas agora nem o vazio restava. Enfim, uma última memória passou pela sua mente, suave e discreta como o vôo do beija-flor: O som de uma gargalhada alegre, um olhar amável e um poncho multicolor.

    – e assim a antiga vida perdeu-se nas sombras eternas para nunca mais ser achada, nem sequer nos pesadelos de noites solitárias e frias sob a lua.

    Não havia o que temer e ir adiante era a única alternativa, afinal, pois todos ao redor esperavam suas ordens.

    – Assim a criança se perdeu, nunca existindo.
    Em seu lugar ficou o homem, o capitão:
    Aquele que - em algum momento - morreria em batalha, e teria seu nome esquecido.
    Aquele, a quem - mais tarde - alguns chamariam “herói”.

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    Última edição por Emanoel; 31-07-2009 às 07:52.



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