- Era um dia triste para o velho dragão, meu filho. Não tão velho assim, para falar a verdade, mas esta é uma história que contradiz muitas coisas. Bem... Deixe-me lhe contar algo: Na verdade, a idade não está no seu corpo, mas na sua mente.
O garoto olhava o velho sentado ao seu lado na cama com bastante atenção. Seus olhos continham uma fagulha de admiração e respeito, e, conforme a voz rouca vibrava no ar, ele demonstrava uma sincera emoção.
- E naquele dia... O dragão tinha tomado a mais difícil das decisões.
Por um momento o homem parou. Seus olhos cansados caíram em um canto do quarto e lá ficaram. Lembranças distantes corriam pela sua mente enquanto o garoto apenas o olhava; firme na expectativa dele continuar a falar.
- Você sabe do que estou falando, Caiman? – O homem surpreendeu a criança com a pergunta. Seus olhos pousaram nela calmamente esperando uma resposta.
- Não, vô. – Ele finalmente falou.
- Então, deixe-me contar a você.
Ele caminhava triste, o dragão, porém, decidido. Seus cabelos brancos realçavam ainda mais sua pele pálida. À sua volta, um suave cheiro de chuva atingia a todos, e o orvalho era renovado com sua passagem. Mais uma vez ele parou, seus olhos levantaram-se para o céu e refletiram o azul em sua íris cristalina. Não era hesitação; ele apenas tomava fôlego. Fôlego para continuar outra vez.
Logo continuou novamente, e não demorou muito para sentir o cheiro de batatas cozinhando. Pensou em cortar caminho, mas lembrou de sua jornada e seu objetivo, e decidiu continuar. Alguns minutos depois ele deparou-se com um homem sentado a beira da estrada, à sombra de um grande carvalho cortando verduras e fritando carne. Ao que parecia, um pequeno manjar estava sendo preparado na solidão da mata.
Ele parou e pensou consigo mesmo como eram estranhas aquelas criaturas. Não pareciam se importar com o mundo a sua volta, apenas viviam. Para aquele homem, um galho da árvore poderia cair, e ele apenas agradeceria por não ter sido na sua sopa.
Não demorou muito e o homem o notou. Eles entreolharam-se sérios demais. O viajante observava como o homem era interessante, enquanto o outro, como ele era clássico.
Largando tudo o rapaz levantou-se. Ele limpou a terra das mãos nas calças de couro e abriu um grande sorriso indo calmamente até o viajante na beira da estrada. Era o típico homem daquelas terras. Barba mal feita, cabelos castanhos, olhos claros. Mas o seu sorriso era convidativo demais, simpático demais.
- Espero que não esteja muito cansado. – Ele falou. – Tenho comida aqui para nós. Na verdade... – Hesitou olhando para trás, enquanto o viajante apenas o analisava calmamente – Eu sempre faço comida demais mesmo.
Houve um momento de silêncio, onde o homem esperava e o viajante apenas observava, mas finalmente, o segundo falou.
- Não se preocupe comigo, rapaz. Apenas pretendo continuar meu caminho pela estrada.
- Mas está ficando tarde para se andar aqui sozinho! – O homem parecia surpreso. Era incomum ver um jovem andando por estas terras, ainda mais um como aquele, aparentando grande riqueza.
O peregrino apenas observou. Seus olhos caíram sobre a comida sendo preparada e ele decidiu ceder para uma última conversa amigável com um mortal.
Animado, quando o viajante aceitou o convite, o rapaz saltitou até a fogueira e começou a jogar mais verduras na panela. Depois ele se voltou para o jovem, já sentado, e deu-lhe a mão.
- Meu nome é Domainy. – Disse entusiasmado.
- Eu sou Godar. – Falou o dragão, cumprimentando o rapaz.
- Me diga, Godar – Domainy falava com um olhar intrigado, analisando o outro como quem considera muitas possibilidades. – Você é jovem demais, então... Esses seus cabelos são um sinal?
O dragão pareceu confuso e depois riu. “Ah... Humanos”, Ele pensou. “Apenas estas criaturas para se comportarem assim.”
- Digamos que seja um sinal, Domainy. – Falou descontraindo-se.
- Bom, é porque é estranho. – Ele parecia não se preocupar muito em ser discreto. Era o tipo que comentava as coisas apenas por observar, sem maldades. – Você é jovem... E seus cabelos não são brancos de verdade. Eu diria que são... – Ele parou para analisar mais um pouco, enquanto o outro se divertia com o comentário. – Um azul meio prateado?
- É... – Godar realmente estava divertindo-se, mas em seu íntimo, pensamentos assombravam sua mente com os comentários do rapaz. Foi seu amor pela raça humana que o levou ali. Era o seu amor por eles o responsável pela preocupação e decepção sentida.
- Mas me diga, rapaz: Para onde você vai?
- Eu vou para muito longe daqui, homem. – Godar pareceu mais preocupado agora, deixando uma sombra cair sobre sua face. – Não é um lugar que você ou qualquer outro conheça.
- O que eu conheço são os perigos. Você não pode andar por estas estradas a noite sozinho; mesmo acompanhado ainda não é aconselhável. Afinal, - Continuou após uma pausa. – Não somos todos que temos a leveza dos elfos de marfim.
Godar pareceu surpreso pelo comentário. Não eram todos que conheciam tais elfos. Na verdade, eles eram apenas uma lenda de fantasmas que habitavam uma densa floresta no caminho para Baiün.
- Mas me diga, homem: – Continuou Domainy. – De onde você vem?
- Eu venho de Fris, passei por Ainum, e agora sigo por Hanor. – Falou despercebido, apenas pensando na longa viagem.
- Nunca ouvi sobre a primeira, mas pelas outras cidades, posso dizer que você vem de longe, meu jovem. Espero que não seja um batedor que anda lucrando pelo mundo afora. Poucos atravessariam o mar para cruzar o continente como você fez.
Godar apenas pensou no que o homem dizia. Realmente ele viera de longe, e isso era apenas para poder pensar mais durante a viagem. O homem tinha razão. Fris não era conhecida por ninguém senão pelos filhos de Balgon, o grande ancião de prata. Ele pensava no que aquele viajante diria caso soubesse que falava com alguém disfarçado - um dragão na forma humana que ele tanto adorava; despido de asas, escamas, e toda a graça que os humanos viam naqueles seres poderosos e desconhecidos. Poucos sabem disso, mas os dragões podem se disfarçar em tantos seres como eles conhecerem a forma. São muito cuidadosos e muito sofisticados, e não assumem qualquer aspecto, mas o que eles mais amam é o humano, mesmo com todos os defeitos da raça.
- Tome. – Domainy tinha um prato de sopa em mãos estendido para Godar. – Espero que não tenha problemas com verduras. Alguns loucos não gostam delas. Vou pegar a carne para você em um instante.
- Desculpe-me, Domainy, mas você parece não ter muitas coisas com o que contar. – Godar olhava para os buracos no chão de onde provavelmente saíram as batatas. – Mas ainda assim é muito feliz e animado.
- E por que não seria? – Bateu de ombros.
- Não sei. – Godar ficou pensativo nessa hora, olhando para os ramos farfalhantes das árvores. – Talvez pela humanidade. Pela vida em si. Ou pela sombra da morte.
- Não seja tolo, rapaz. – Bateu de ombros outra vez. – A humanidade não mudará nunca, apenas ficará mais suja. A vida deve ser vivida como ela nos é dada. E quanto à morte, ela virá para todos. Eu apenas não tenho medo dela e não espero receber sua visita tão sedo que seja.
- Você é um séptico, então. – Falou desanimado.
- Claro que não. Apenas não espero as coisas ruins da vida virem me buscar. Eu as deixo atrás de mim que é melhor para elas, rapaz! Por mim, eu viveria a eternidade.
Neste momento Godar parou de comer e olhou para Domainy. Ele riu, levantou as sobrancelhas e voltou a levar o prato de sopa à boca.
- Você não sabe o que é a eternidade. – Godar falou desanimado, também voltando a comer.
- Nem você.
Houve um silêncio por um momento, quebrado logo depois por Godar.
- Mas você não conhece nada que está por aí a fora. Você não viu reis começando guerras por tolices como meros cavalos mais bonitos que um outro reino possivelmente teria.
- Eu vi bandidos matarem por botas e calças, rapaz! – Falou Domainy chateado. – Você é apenas um jovenzinho de estrada. Eu viveria mais... Muito mais do que me é permitido e jamais cansaria da vida que me foi dada. Tolos são os que procuram a morte! Para mim, – continuou irritado. – você é quem é fraco demais para encarar a vida como ela é de verdade.
- Homem tolo... Pensa conhecer todas as respostas.
- Não, meu jovem... – Ele falou calmo. – Apenas não deixarei o fracasso de um me levar junto. Se a vida é triste, que seja. Eu quero viver a eternidade em uma vida só. – completou pensativo.
Godar parou. Ele conhecia os humanos. Conhecia as mentiras, e aquele homem falava a verdade. Logo agora que havia tomado a decisão que tomara, encontrar alguém apaixonado pela vida o fez lamentar.
- Eu vou morrer. – Falou quase que em um sussurro. Esquecendo-se que não conhecia o homem com quem falava. Falou simplesmente por falar. Talvez, para ele mesmo acreditar na idéia.
- Não seja tolo. – Domainy bateu de ombros.
Godar deitou-se calmamente nas folhas que cobriam a terra.
- Eu irei para o vale da morte, atrás das montanhas geladas. – Falou sonhador, em um tom cheio de melancolia. - Chegarei lá pelo vale dos guardas, através da floresta das almas onde as árvores ainda falam.
Domainy olhou-o intrigado. Sua face levemente confusa com um ar de incredulidade. Não pode se conter e falou em tom de piada:
- É, amigo, se você fizer isso realmente você vai definhar.
Godar virou-se para ele e o olhou com calma. Um ar de riso triste pousou em sua face nesta hora e ele falou para o rapaz:
- Você não entende, não é? – Ele disse com paciência. – Eu não sou humano, rapaz. Eu sou um dragão; e vou descansar em casa.
Domainy ficou abismado e depois riu. Riu-se bastante até não poder mais. Depois ele olhou sério para Godar e disse:
- Você realmente acredita nisso, rapaz?
Godar pareceu irritado. Levantou-se serio e orgulhoso demais. Olhou para Domainy encolhido ali sentado, temendo o aspecto de poder que ele agora emanava antes mesmo de uma densa névoa cobrir o lugar onde eles estavam, ou até mesmo do suave cheiro de chuva ficar forte, e os ventos soprarem bruscos na mata.
Domainy apavorou-se. Ele conhecia aquela estrada, e sabia como o clima ali se comportava. Ventos não mudavam rápido demais, névoas não cobriam aquela parte de terra na época em que eles estavam. Foi nessa hora que ele temeu ser tudo verdade, e decidiu acreditar em Godar.
- Mas você tem a eternidade! – Ele gritou em meio ao vento e sombra da névoa, e tudo parou tão repentino como começara.
- Eu não tenho nada. – Falou Godar antes de cair novamente deitado sob as árvores.
- Não seja tolo, rapaz. – Continuou Domainy. – Você é um dragão! Você poderia viver a eternidade.
- Nunca a eternidade. – Bateu de ombros.
- Mas muito perto de lá.
Godar olhou o rapaz. Ansioso, ele o observava de certa forma até animado.
- Pense comigo...
- Não! – interrompeu Godar. – Pense comigo você. Meu pai é o ser mais antigo em todas estas terras que a humanidade conhece e sobre ela, nas nuvens, onde você ou outro homem jamais esteve. Ele tem a graça da vida longa, do prazer em viver. – Ele pausou, melancólico. – Mas não eu.
Um breve momento de silêncio atingiu o lugar. Godar olhando para o movimento do vento nas folhas, e Domainy encarando-o sem sequer notar.
- Escute, amigo. – Ele falou abaixando-se até o dragão, que agora se virava para olhá-lo. – Eu viveria a eternidade com você, mas não posso lhe acompanhar. – Ele pensou por um momento e continuou a falar. – Mas fique firme como está, e eu prometo lhe acompanhar até o fim dos meus dias. Eu lhe darei uma razão para continuar a viver durante cada momento de nossas vidas. – Ele se levantou animado, enquanto Godar o olhava levemente interessado. – Eu irei lhe ensinar a viver na saúde e na desgraça! – Falou animado, pondo as mãos para cima. – Eu lhe mostrarei como passar as noites nas festas mais animadas que os reis dão para enganar o povo sem pão em casa. Serei seu amigo e guia nesta jornada.
- Não seja tolo. – Falou o dragão rindo levemente. – Eu já fui conselheiro dos grandes reis desta terra.
- Mas não soube aproveitar a vida! – Escarrneceu Domainy.
Godar olhou o homem animado ao seu lado, sorrindo. Pensou em como era difícil continuar com a decisão que tomara. Por um momento ele iludiu-se mais uma vez. Pensou na vida e em tudo o que ela poderia lhe dar. Ele era tão novo, e já pensava em partir para descansar. A vontade do humano o contagiou, e ele levantou-se de seu lugar.
- Espere aqui, homem. Não importa o quanto eu demore, irei voltar.
Neste momento Domainy presenciou a coisa mais impressionante da sua vida. Pela primeira vez, de tantas, ele viu o dragão caminhar para o fim da estrada e mostrar suas asas. Sua forma mudou, sua pele virou prata, seu cabelo levantou-se em uma crista de pelos prateados e seu tamanho aumentou em forma e em graça extraordinárias.
Antes do vôo, a criatura olhou para trás e falou com sua voz calma e pausada:
- Obrigado, rapaz. – E o dragão voou.
Domainy não soube o que fazer. Esperar, ou continuar? Mas ele esperou. A expectativa para ver o que o dragão traria o ancorou no lugar onde estava, e foi no amanhecer do outro dia, mais cedo do que imaginava, que o cheiro suave de chuva retornou, junto com um perfume selvagem, desconhecido.
O dragão retornara em sua forma humana, e com ele caminhava um homem com vestes poderosas. Alto e magro, ele parecia um rei vestido em preto cheio de jóias raras. Seus cabelos desciam até seus ombros, negros, lisos. As peles de sua roupa ondulavam com seu andar altivo. Sua face era decidida e seu olhar aterradoramente calmo impunha um respeito mortal. Atrás do homem uma sombra negra caminhava como duas grandes asas feitas de uma leve fumaça, acompanhando seu movimento conforme ele andava.
Ao perceber que Godar observava, o homem fez um leve movimento com a cabeça e a sombra sumiu, deixando apenas a figura altiva em frente ao rapaz, que mesmo alto como era, estava bem abaixo do seu olhar.
- Domainy – Disse Godar animado, porém, sério. – Você disse que viveria a eternidade, então, trago-lhe um desafio. – O homem estava abismado, ainda procurando um modo de resistir ao olhar do ser que o observava. – Jonus lhe dará a eternidade, e você apenas morrerá quando desejar. Quanto a mim, comprometo-me de morrer apenas depois de você, e de levá-lo para meu lugar de descanso comigo, para lá repousarmos, onde jamais um humano repousará.
Domainy estava perplexo. Olhava para o homem e pensava se ele era o Jonus de quem Godar falava. Olhava para o dragão e pensava se aquilo poderia ser verdade. Enfim, após algum tempo de silêncio, Godar falou:
- Aceitas o desafio?
Ao que Domainy apenas pode balbuciar e acenar com a cabeça. Depois, ao ver que ainda esperavam uma resposta, ele disse ainda abobalhado: - Eu não trocaria minha vida por nada... Sim. – E Godar riu.
- Então Jonus, nosso trato está feito. – Godar virou-se para a figura altiva ao seu lado. – E o nosso também, Domainy, o amigo do dragão. – Disse divertindo-se.
- Ainda não, criança. – Falou o homem com sua voz penetrante, olhando de Domainy para o dragão.
Godar rapidamente tirou uma pequena peça do bolso, um pouco impaciente com o homem que aguardava. Ele olhou fixamente a pequena jóia que parecia com um diamante, porém entalhado em forma esférica. “Brilhante como uma estrela que caíra do céu.” Pensou Domainy.
- É quase isso, mortal. – Falou o homem, olhando rapidamente para ele. – Ou melhor: imortal. – Um leve ar de riso surgiu em seu rosto antes dele virar as costas pondo a jóia cintilante no centro da ombreira de jóias negras que caia sobre seus ombros. – Godar... – Ela parou, e virou-se para falar com o dragão. – Que diria teu pai? Não terá sido o preço alto demais?
- Doce Beron, a quem chamam de Loham nas lendas antigas, ele apenas diria para seguir meu coração, e dar mais uma chance à vida.
O homem parou por mais um momento, intrigado, apenas tentando entender. Olhou para Domainy e disse:
- Aproveite, homem. – E virou as costas mais uma vez.
Neste momento, Domainy teve sua segunda visão preferida em toda vida. A sombra voltara às costas do homem e tomara forma aos poucos. Logo, duas grandes asas negras saiam de seu corpo e estendiam-se através das árvores, como se ali não houvesse nada, e abriam-se enormes e poderosas. Elas movimentaram-se para voar e o homem sumiu assim que elas bateram, iluminando aquele pedaço perdido de terra mais do que o Sol.
- É, meu amigo... – Falou Godar. – Agora quero ver-te com o peso da imortalidade nas costas.
Domainy, ainda bobo, começou a acordar e recuperar seu ar gracioso. Ele olhou para Godar e riu, e o mesmo riu também. O homem olhava suas mãos procurando algo diferente em si mesmo, mas nada encontrou.
- Não fique assim. Com o tempo você vai perceber que tudo continua do mesmo jeito. Você só não vai envelhecer. – Falou o dragão divertindo-se com ele.
- Godar... – Disse Domainy finalmente intrigado. – Você é um safado. – E o dragão se sobressaltou. – Fale a verdade comigo. Você nunca pensou em morrer! – Mas o dragão apenas riu e pensou que toda grande jornada tem um benefício.
O velho parou por um último momento sem sequer perceber que o garoto ainda não dormia. Ele simplesmente levantou-se pensativo e começou a se afastar quando a fina voz da criança falou:
- Vô...
- Oi, meu filho. – Respondeu o velho um pouco cansado.
- Isso realmente aconteceu?
A emoção na voz do garoto era evidente. Seus olhos espreitavam a imagem esguia no escuro do velho de costas para ele, mas o homem apenas respondeu antes de continuar a andar:
- Talvez, meu jovem. Talvez...