Mão de Deus
Ezequiel mais uma vez acendeu um cigarro. Sentiu o gosto amargo descer por sua garganta. Soltou uma baforada de fumaça. Sabia que aquilo poderia comprometer sua missão. Não estava nem um pouco preocupado. Tinha feito um rascunho, em sua casa, de prioridades:
1-Cigarros
2-Pistas
3-Objeto
4-Silêncio
5-Chicletes
6-Inimigos
Como o item 1 poderia comprometer o item 2, ele tinha que ter cuidado dobrado. O item 6 era o mais difícil, e por isso ele tinha o deixado como último - a preguiça sempre reinava.
Uma placa de ''PROIBIDO FUMAR'' se destacava logo à frente do museu. O seu relógio paddle, ainda que digital, era bonito. Azul e prata, apesar de a prata ser apenas pintada. Marcava 7:30 da noite; o guarda balofo na entrada do museu, que cobrava os tíquetes, já estava cansado. Fácil. Tirou o cigarro da boca e gentilmente deixou-o cair, ainda aceso, na lixeira. Aproximou-se do gordo, estampando o melhor sorriso que sua cara permitisse; os olhos verdes - de Ezequiel - por detrás dos óculos meia-lua brilharam ao vislumbrar a lanchonete ao lado da cabine de comprar a entrada.
- Para você comprar alguma coisa para comer - Ezequiel falou, colocando delicadamente uma nota de cinqüenta no bolso do guarda, enquanto dava uma piscadela. Ele liberou a entrada, fazendo uma careta.
Teria sido muito mais fácil comprar o tíquete barato? Sim. Mas isso asseguraria que o guarda não colocaria a língua para fora nas interrogações (já que ninguém era burro o suficiente para entrar em um museu faltando trinta minutos para fechar). Alisou o cabelo oleoso, castanho-claro, antes de colocar a touca vermelha. Passou pela entrada e deu uma olhadela geral, tirando uma foto mental.
Primeiro andar: Esculturas. Sem proteção, porém com uma faixa de segurança delimitando o espaço em que ninguém podia se aproximar. Deveriam ter vários alarmes ali. No centro havia um diamante, mas um vidro de segurança o cobria.
Segundo andar: Pouco dava para ver dele, ali embaixo. Mas sabia que era o setor só de quadros, e isso levava ao...
Terceiro andar: Poucos sabiam da existência de um terceiro andar.
As câmeras de segurança estavam fixadas por todos os cantos. Sorriu apaticamente, desta vez com certeza que tudo daria certo; fechou o zíper da jaqueta volumosa e, portanto, quente.
Ele ficou parado alguns minutos: O relógio marcava 7:40 agora. Os alto-falantes transmitiram: '' Favor, clientes, se prepararem pare se retirar em quinze minutos. Agradecemos a visita, voltem sempre''.
Um domingo de verão frio. A combinação perfeita de coisas ruins. Só poderia ser pior se fosse segunda. Mas não havia nada que pudesse abalar o ânimo de Ezequiel naquele dia.
Andou pelo corredor, os visitantes agora todos se arrumando para ir embora. Subiu a escada, o mais rápido que suas pernas de gazela permitiram; estava no segundo andar em poucos segundos. A entrada estritamente proibida para pessoal não-autorizado estava logo no fim dos quadros dos anos setenta; ela levava para o terceiro andar.
Ficou frente a frente com a porta, deixando que o olho mágico ficasse logo à sua frente. A porta se abriu com um clique.
- Entra, entra. - falou animado o rapaz de cabelos louros e uniforme azul (esta roupa colocada de modo desajeitado por cima de outra vagabunda) do lado de dentro da sala. - Não tem câmeras aqui.
Ezequiel balançou a cabeça afirmativamente, obedecendo-o. Era uma escadaria. Abriu a jaqueta e passou-a para seu primo, que por sua vez livrou-se do traje de funcionário. Ambos trocaram as vestimentas, mas ambos continuaram com suas jeans.
- Não se esquece, Marcelo. Coloca o capuz e a touca. Não podem desconfiar que você não seja eu.
- Sussa - passou o molho de chaves para o homem do relógio paddle, que adentrou na sala; Marcelo saiu correndo.
Ezequiel agradeceu silenciosamente que tudo estava correndo conforme o combinado. Subiu um lance de escadas e adentrou a porta. Pegou a caixinha de chicletes da calça. Comia uma de sabor menta; dava-lhe uma vontade de fumar cigarros, apesar de ter começado a comer chicletes para parar de fumar. Acendeu outro e tragou ali mesmo, no depósito.
Havia caixas e mais caixas de tralhas, quadros, esculturas quebradas, estantes abarrotadas de mais tralhas e caixas, e, no centro da sala, quatro computadores lado a lado. Caminhou até um deles: Vigília. Uma tela gigantesca tinha imagens de todas as câmeras. Não se importou muito com as outras, mas visualizou que uma era dos alarmes, outra ainda com as câmeras e a última estava muito longe para que ele pudesse ver somente sob as luzes fracas do monitor.
Pegou mais um chiclete. Cuspiu o outro na lixeira, junto com o cigarro. Não tossiu porque o vício viera à tona não fazia muito. Sem touca, seu cabelo caía despretensioso por cima dos óculos.
Repassou mentalmente o que faria quando saísse dali: O guarda cairia fora assim que ele estivesse do outro lado do museu, porque era o dia que Marcelo deveria fechar. Ezequiel sairia com algo de valor: Entraria no Civic, trocaria de roupa com Marcelo - já que os vidros faziam com que fosse impossível de se enxergar por fora o que acontecia lá dentro -, e o mesmo iria fechar a loja. Nesse meio tempo, Ezequiel entraria no fusca dirigido por seu irmão, deixando o que fosse que ele teria roubado no Civic.
Começou a abrir os caixotes, fuçar as tralhas e gavetas. Não havia muito mais do que papéis, formulários, peças inutilizadas ao redor. Lá por volta das 8:20 tinha achado um anel de brilhantes que deveria não ser vendido a mais de 20 reais por uma loja de bijuterias. Guardou-o no bolso, e após isso desistiu de procurar naqueles arredores. Estava avançando para a outra estante quando viu, acidentalmente, um par de tênis Nike novíssimos que deveriam ter sido esquecidos por ali. Trocou seus sapatos pela nova descoberta e por via das dúvidas, foi no banheiro da despensa - anunciado por um letreiro de ''banheiro'' - e deu descarga em seus velhos companheiros de caminhada (não tendo certeza qual era seu objetivo ao fazer isso), deixando-os ali.
O que ainda o preocupava não era achar um objeto realmente valioso, e sim conseguir sair tão tarde com as câmeras ligadas e não ser identificado quando estivessem assistindo à tarde. Ezequiel prometeu a si mesmo que nada aconteceria. Ele conseguiria finalmente ter uma vida próspera e de riqueza e conseguiria pagar o tratamento para o câncer do pai.
- Ó, Deus, me dê uma mãozinha. - sussurrou, rezando baixinho como sempre fazia quando precisava. Em horas de que não precisava de nada, era ateu.
Enquanto procurava por mais algo que valesse a dor de cabeça, pensava no que a lista realmente significava para ele. Fora um momento de inspiração, e depois lhe soou como algo escrito por um completo desconhecido. Acontecera a exata mesma coisa no momento em que planejou o assalto. Pôde relembrar claramente do momento:
Marcelo chegou em casa, com aquele sorriso de maníaco que ele usava quando acontecia algo importante - algo muito importante. Ezequiel e seu irmão ficaram chocados ao saberem que o primo havia sido promovido (imagina, um inútil daqueles, agora com um cargo importante!):
- Mano, tu nem sabe das novas. Agora eu não sou mais carregador. Trabalho organizando o estoque e colocando fora as coisas inutilizáveis. E o melhor: Tô ganhando quase dois paus por isso!
Naquele momento, Ezequiel teve um sobressalto e dispôs-se a levantar o traseiro magro do sofá e pegar um bloquinho de anotações: Escreveu tudo de forma que só ele entendesse e pudesse explicar para os dois comparsas depois.
Aquilo explicava muito bem o estado em que o depósito tinha ficado.
O item dois - pistas - era o que ele poderia deixar de identificável. Pensou nos cigarros e nos chicletes - meu Deus!, se fizessem um teste e descobrissem que fora ele o criminoso, pela saliva, estaria arruinado. Para aliviar a tensão, acendeu outro cigarro.
O três obviamente significava o que ele iria roubar. O item quatro deveria significar silenciar o guarda, coisa que Ezequiel já tinha feito. O seis muito provavelmente queria dizer sobre as câmeras.
Levou um tempo até perceber que estava se engasgando com um chiclete. Cuspiu a massa verde em suas mãos, a saliva escorrendo por seu queixo quadrado. Limpou apressadamente e colocou o chiclete mascado no bolso. Aos poucos, uma brilhante idéia pipocou em sua mente. Saltitou por entre os espaços vazios até os computadores enfileirados e deu uma olhada no único que não tinha visto. Abriu um largo sorriso.
Havia uma tela exigindo uma senha. Aquele deveria ser a central que Marcelo tinha falado - poderia controlar todo o museu a partir dali. Só o dono sabia a senha, mas não custava tentar.
Ao mexer o mouse, um espaço em branco exigia a senha. Começou digitando chefe e variações, partindo até a segunda mais famosa seqüência de números: 654321. Teve vontade de rir ao ver que havia dado certo. Após mexer nos programas por um tempo - passavam facilmente das 8:35 naquele momento - descobriu a função de desativar as câmeras. O suor começou a brotar das axilas de Ezequiel. Não podia ser assim tão fácil.
Tinha que haver alguma armadilha.
Havia uma armadilha, ele podia apostar sua vida nisso. Passou agressivamente a fralda da camisa por cima do mouse e do teclado (novamente não tendo certeza se isso iria mudar alguma coisa, mas o fazendo de qualquer jeito). Havia desativado as câmeras e os alarmes.
Resolveu deixar isso de lado, mas permaneceu apreensivo; Saiu do depósito, tropeçando volta e meia na escuridão. Ao achar a saída, a luz forte quase o cegou por um instante, suficiente para ele soltar um grito rouco.
Recuperou a postura e se lembrou do diamante do primeiro andar. Absorto em seus pensamentos, apenas percebeu que estava ao lado do objeto ao dar um encontrão na parede. A preciosidade ficava logo abaixo de um pedaço quadriculado no segundo andar, dando uma visão do teto de lá. Massageou levemente as costelas. Inspirava devagar e expirava rápido demais. Acendeu outro cigarro. Passaram-se mais de cinco minutos até Ezequiel apagá-lo e colocá-lo no bolso. Vislumbrou o diamante branco, brilhante, bonito, com uma forma de quase-triângulo.
Cumprindo a ordem de prioridades, deu uma última respirada, quase tranqüila, serena; tirou o avental de Marcelo que estava usando e o enrolou na própria mão, soqueando o vidro que cobria o diamante logo em seguida. A mão, um pouco ensangüentada, continuou coberta pelo traje de funcionário. Que se fodesse aquilo. Precisava obedecer à ordem, tinha certo padrão que ele deveria cumprir - sentia que deveria ser assim.
Com a esquerda, sã e salva, envolveu a mão coberta de suor na superfície gelada do diamante. Juntou mais um item para sua pequena coleção no bolso da jeans: Anel, chiclete, cigarro, diamante.
O item quatro pronto, sentiu-se obrigado a cumprir o quinto. Pegou a caixinha onde o último chiclete se encontrava, mas estava nervoso demais e a deixou cair. Agachou-se para pegá-la, e viu que o Nike estava desamarrado. Levou quase dois minutos fazendo um nó perfeito (que não ficou tão perfeito assim). Pegou o Trident e estava retirando uma unidade lentamente, com um bocejo na ponta da língua, quando escutou um barulho alto no teto. Instintivamente, olhou para cima, no momento em que calhas e tijolos se desprendiam e caíam em uma espiral estranha, sobrenatural.
De início, Ezequiel ficou estupefato. Mas não teve tempo de ficar ainda mais quando o buraco alargou-se em questão de segundos, um imenso punho surgindo da poeira e cacos do teto. Um pedaço de tijolo desprendido bateu no ombro do assaltante, que começou a gritar; uma fileira de sangue vertia do machucado. Voltou a olhar para o estranho local onde estava seu atacante. Percebeu que ele recuperava forças para dar mais um ataque: Deveria ter acontecido o mesmo no terceiro andar. Que mão estranha poderia estar vindo do céu?!
A segunda investida que Ezequiel presenciou foi ainda mais brutal: O punho se abriu e foi descendo rápido, fechando em cheio no homem (a mão cobria quase todo ele, fora a cabeça que ficara solta). Todo seu corpo doía. Em meio ao caos e ao terror, Ezequiel foi puxado para cima, mais objetos batendo em seu corpo, fazendo-o desmaiar, a poeira cobrindo-lhe o rosto, o museu desabando; a pele do jovem estava tão negra de sujeira quanto a mão gigante. Os óculos quebraram.
E a mão foi puxando, puxando, chegando à mais alta das nuvens, onde desapareceu por completo. Depois de alguns instantes, Ezequiel foi largado dos céus, acabando de acordar do desmaio; a descida vertiginosa resultou que o homem foi espatifado no chão.
E seu último pensamento foi que se tivesse comido menos chicletes, poderia ter uma vida muito melhor, morrendo sufocado com o pulmão em brasas daqui a alguns anos.
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