Nada a comentar, só desculpe pela demora.
Capítulo 3 - Surpresa
Os ruídos de uma agitação doida lá embaixo lhe deram a certeza de que todo mundo a escutara desta vez. Antes que pudessem chegar ao sótão, Alice May abrira totalmente a tampa. Franziu a testa quando viu o que havia ali dentro. A vida toda ela tinha esperado para abrir aquele baú, com medo e também com esperança de encontra r uma pista para o mistério de seu nascimento e de sua chegada a Denilburg. Papéis, cartas, talvez uma bíblia de família.
Não havia ali nada assim óbvio. Em vez disso, preso ao fundo do baú, havia um rifle com alavanca, bem antigo, com uma coronha de madeira escura polida e um cano octogonal de aço azul-escuro com entalhe de flores prateadas.
Sob o rifle haviam dois revólveres envoltos em coldres. Armas grandes, seus canos também tinham entalhes em prata com o motivo floral que se repetia nos coldres, embora não em prata, e, sim, em linhas negras, sóbrias sobre o couro. Um cinto com espaço para balas estava dobrado e preso entre os coldres. Mais couro negro, mais flores bordadas em preto.
No lado esquerdo do baú, havia uma caixa de teca com a palavra "munição" marcada a ferro na tampa, num elegante trabalho de pirografia.
À direita, havia uma caixa de joias coberta de veludo púrpura.
Embaixo da caixa de munição e da caixinha de joias, no fundo do baú, havia um vestido branco estendido. Alice May fitou a estranha combinação de vestido de noiva com roupa de vaqueira, feito da melhor e mais alva seda furta-cor, com os braços e o colete - tinha um colete! - bordado com fileiras de pérolas pequeninas. Parecia um pouco grande para Alice May, principalmente na região do busto. Além disso, era tão curto que chegava a ser indecente, tanto para um vestido de noiva quanto para uma roupa de vaqueira. É provável que não passasse de seus joelhos.
- Um Winchester 73 - disse Jake atrás delas, apontando para o rifle. Ele não fez menção nem esticou o braço para tocar nas armas. - E dois Colts 44. Pacificadoras, acho eu. Igual à que meu avô tinha no consolo da lareira na velha casa.
- Estranho. - disse Jane, empurrando o pai para que ele mudasse de lugar e deixasse ela e Stella subir.
- O que é que tem na caixinha de joias? - Stella peguntou. Falava num tom de voz abafado, como se estivesse em um templo. Alice May olhou ao redor e viu que Jake, Stella e Jane estavam encolhidos no topo da escada, como se não quisessem se aproximar mais.
Alice May estendeu a mão para dentro do baú e pegou a caixinha de joias. Ao tocar o veludo, sentiu um tremor estranho, elétrico, passar pelo corpo. Não era desagradável, e ela teve a mesma sensação ao abrir a caixinha. Um arrepio de entusiasmo percorreu o seu corpo, dos pés a cabeça.
A caixinha guardava uma estrela de metal. Um distintivo de xerife, ou alguma coisa no mesmo formato, embora não houvesse nada gravado nele. A estrela brilhava mais que qualquer distintivo de policial que Alice May já vira, um prateado cintilante que refletia o brilho vermelho do sol e o intensificava e purificava, até que parecesse que ela estava segurando nas mãos uma luz de gás acetileno, tão ofuscante que a forçava a voltar os olhos para o lado e virar a estrela.
A luz esmaeceu, deixando pontos pretos dançando diante de seus olhos. Alice May notou que havia um alfinete na parte de trás da estrela, mas, de novo, não havia nada gravado no lugar em que esperava ver algum nome.
Alice pôs a estrela de volta na caixinha e fechou-a, soltando o ar que não percebeu estar segurando. Uma exalação alta atrás dela lhe informou que o resto da família também estava segurando o fôlego.
Em seguida, tirou o rifle das alças que o mantinham preso no lugar. Parecia estranhamente natural segurá-lo e, sem qualquer planejamento consciente, ela acionou a alavanca, checou se o cano estava vazio e atirou em seco. Um segundo depois, percebeu que não sabia o que tinha feito, mas que, ao mesmo tempo, poderia repetir o movimento, e ainda mais. Sabia carregar a arma e atirar, sabia como esvaziá-la e limpá-la. Estava tudo na sua mente, embora só tivesse dado um tiro na vida, com a arma de caça de tiro único de seu tio Bill.
Ela pôs o rifle de volta e pegou os revólveres. Eram pesados, mas outra vez ela sabia instintivamente avaliar o peso deles, carregados ou não. Colocou os revólveres, ainda dentro dos coldres, no colo. As flores entalhadas nos canos pareciam se mexer e flutuar enquanto ela os contemplava, e o corte em ziguezague da coronha ficava mudando de lado. As coronhas eram feitas de um tipo de osso - percebeu Alice May - pintado de preto. Ou talvez fossem de ébano e nunca tivessem sido pintadas.
Ela pegou um dos revólveres e de novo suas mãos se moveram sem nenhum planejamento consciente. Ela puxou o tambor para fora, girou-o, certificou-se que estava vazio, colocou-o de volta no lugar, levantou o cano, soltou o cão e guardou a arma no coldre outra vez antes mesmo que sua família tivesse tempo de piscar.
Alice May guardou os revólveres. Nem olhou a caixa com a inscrição "munição" na tampa. Fechou o baú com determinação. A fechadura fez outro clique e ela rapidamente atou as correias. Depois se voltou para a família.
- É melhor a gente não comentar isso por aí... - ela começou a dizer. E então percebeu a maneira como estava olhando para ela. Um olhar em parte confuso, em parte admirado e em parte amedrontado.
- Aquela estrela - disse Jake.
- Tão brilhante - disse Stella.
- Suas mãos... um borrão... - disse Jane.
- Eu não quero isso! - estourou Alice. - Eu não... Isso não sou eu! Eu sou Alice May Susan Hopkins!
Empurrou Jane para o lado e quase caiu da escada, na pressa de sair dali. Os outros a seguiram, mais devagar. Alice May já tinha corrido para o quarto e todos a ouviram soluçar.
Jake voltou à cozinha e à conserva de limão. Stella voltou a costurar. Jane foi até a porta do quarto de Alice May, mas deu meia-volta no último instante e desceu as escadas para escrever uma carta à uma amiga, dizendo que nada, nada acontecia em Denilburg.