pra entrar no clima
Anexo 3841
Desde que abandonei a Inquisição, meu sono era raro e quieto. Apesar de dificilmente conseguir adormecer, não era assombrado pelos pesadelos que me acompanhavam antes, assim como também não tinha sonhos positivos. Dormir era uma paz rara e sem gosto para mim, algumas horas em que passava sem dor, sem sentimentos, sem pensamentos. Sem nada.
Mas dessa vez era diferente.
Os demônios prometidos por Zorak estavam atrasados. Passaram-se pelo menos dois dias desde que falei com ele, e nesse meio tempo já havia ido até Thais e voltado, e nada das criaturas darem as caras. Não duvidava de que isso aconteceria, entretanto. Zorak pode até ser um babaca sádico, mas ele cumpre o que fala. E, naquela noite, suas palavras finalmente tomaram forma em meus sonhos.
A princípio, aquela parecia mais uma noite de sono comum, com sonhos escuros e sem forma. Porém, algo estava diferente. A começar por minha consciência, que estava estranhamente lúcida e alerta em meio a escuridão do sono. Aos poucos, outras coisas começaram a perturbar a inércia daquilo, primeiramente com sombras mais negras que as próprias trevas da minha mente, passando por aromas doces e lúgubres que preenchiam minhas narinas e, por fim, vozes. Muitas vozes. Vozes misturadas, um amálgama bizarro e ao mesmo tempo irresistível que parecia cobrir todos os meus sentidos, ofuscando as sombras e inibindo os cheiros. Era impossível distinguir palavras no meio daquilo, mas cada grunhido, cada lamento presente ali carregava consigo angústia, inveja e sede. Dava pra sentir minha própria alma, fragilizada após o episódio com Fardos, sendo desejada e tentada por aquelas coisas, e meu corpo sentindo arrepios e tremores insistentes enquanto as vozes pareciam ficar mais próximas e ensurdecedoras.
Era isso que Zorak queria dizer, então. Ser tentado, manipulado, usado por aqueles demônios... Ou obter poder deles. Era a minha única alternativa, o único caminho que poderia seguir para continuar em frente da maneira que escolhi. Mas não era fácil. Os demônios eram insistentes, teimosos, famintos... Eles pareciam se aproximar da minha essência muitas vezes, mas eram repelidos. Talvez pela minha vontade pura, talvez pelos resquícios de poder divino que havia em minha alma... Não importa. A verdade é que, muito em breve, eles conseguiriam o que desejavam... A menos que eu pudesse superá-los.
A escuridão das sombras, o terror dos aromas... Nada ofuscava as fortes e penetrantes vozes que queriam a alma do homem.
Tentei me concentrar nas vozes. Minha mente estava quase completamente confusa, e a sanidade já começava a me abandonar de vez. Mas eu tentei. Tentei ouvir o que aquelas criaturas diziam, quais os significados seus lamentos traziam. Tentei esquecer a dor e o desespero que aquilo me causava. Tentei me lembrar das palavras de Zorak, de como eu poderia mudar. Tentei me lembrar do que sentia... Do que me aguardava ao fim daquele caminho. Tentei muito e, por fim, pude ouvi-la. Uma voz suave e facilmente imperceptível em meio àquela confusão de sons, mas que soava clara e firme quando eu conseguia me concentrar nela.
- Hey! Aprendeu a me ouvir agora, rapaz? Tava demorando!
- Eu ouço. - Consegui dizer, após alguns segundos tonto pelo esforço que precisei fazer para escutar com clareza.
- Ouve, claro... E quase se matou só pra isso, hein. Já tava ficando puto por ter vindo aqui encontrar só um humano ordinário... Mas enfim, de algum modo você me escutou. Devo te dar créditos por isso. Agora seja breve: o que você quer comigo?
A voz do demônio era clara e firme, mas ele não possuía forma. Ao menos não uma visível. Apenas suas palavras e a tensão em volta dele denunciavam sua existência.
- Eu quero... Poder. Não importa sua natureza, não importa os meios para o obter. Farei tudo o que for preciso.
- Ora... Vamos com calma. Por que você quer poder? Não tinha o suficiente com Fardos?
- É diferente. Devido às... Circunstâncias, o poder que preciso deve vir de outra fonte. Da sua fonte, pra ser mais exato.
- Hahaha. Rapaz, você sabe que não dá pra ter poderes demoníacos sem se matar, né? Querendo ou não, o fedor do Fardos ainda tá aí. É isso que tá mantendo sua alma viva, mesmo que tenha te tirado o poder. Se você quiser, posso até tentar transformar essa energia pra algo diferente, mas é bem certo que você vai morrer. É isso que pretende?
- Não... Mas qual outra escolha eu tenho? Não dá pra seguir em frente sem poder. E esse poder não virá de Fardos. Estou pronto para assumir os riscos.
- Rapaz, rapaz... Você certamente é interessante. Eu poderia simplesmente fazer o que você quer agora, mas seria um desperdício muito grande a sua morte. Ao invés disso, tenho uma proposta.
- Proposta...? Diga.
- Sim, uma proposta. Tá vendo esse negócio aí? - O demônio fez com que o broche em forma de "E", que antes era o símbolo da minha origem divina, caísse das minhas vestes, ficando a mostra. Ele estava acinzentado e sem brilho, mas de alguma forma era visível. - Não dá pra destruir isso, não sei se notou. Isso mostra que sua origem pode até ser negada, mas não vai deixar de existir. É assim com tudo, rapaz: deuses e demônios, humanos e deuses, demônios e humanos, humanos e anjos... Todas são existências separadas, mas cada uma delas traz o equilíbrio, o balanço certo para as coisas. Você não vai se livrar do seu lado divino, por que é isso que traz o seu equilíbrio. Assim como seu lado humano. Entende o que quero dizer?
Apenas assenti com a cabeça, enquanto fechava os olhos e ouvia atentamente cada palavra dita.
- Bom, você precisa achar um jeito de equilibrar algum poder demoníaco nesse meio. Como você faz isso eu não sei, mas sei que você pode descobrir. Viaje o mundo, conheça pessoas, conheça lugares, coisas, sensações... Alguma coisa vai clarear suas ideias. Eu não ficarei por perto, mas deixarei parte da minha essência nesse broche. Considerando que ainda tem um resto de poder divino aqui, você saberá que está no caminho certo quando conseguir equilibrar meu próprio poder com essa coisa repugnante que o Fardos largou aí. O resto é por sua conta... Ah, e saiba que não será fácil. Sacrifícios serão feitos, vidas serão perdidas. Se acha que dá conta, siga em frente.
- Entendo. Foi minha decisão seguir esse caminho, e já disse que não me importo com os meios. - Peguei o broche de volta, já sentindo a energia do demônio circulando timidamente por ele. - Descobrirei como encontrar esse balanço. Conseguirei poder, e nada mais vai me segurar.
- Haha, assim que se fala, rapaz. Enfim, vou indo nessa. Foi interessante... Admito que mais do que eu esperava. Vamos ver se você não decepciona daqui pra frente!
- Não tenho o direito de fazer isso. Aliás, quem é você exatamente?
- Responderei assim que tiver seu equilíbrio, Elyon.
O demônio soltou mais uma gargalhada, e logo depois tudo desapareceu. As sombras, os cheiros, os sons... Tudo voltou à paz e escuridão típicas, e não demorou muito para que eu acordasse novamente, ainda tonto e ofegante pela experiência.
Poderes tão diferentes, uma antítese por natureza... Será que poderiam conviver em harmonia naquele broche? Era a única pista que o homem tinha, e sua jornada em busca de respostas começaria em breve.