Era noite na cidade de Thais. A miscelânea de sons e aromas que preenchia as ruas do local durante o dia agora se resumia ao silêncio inerte da escuridão; a cidade, iluminada apenas pelas frágeis chamas de velas e tochas, dormia.
Um lugar, porém, acelerava suas atividades justamente nesse horário. Dois lugares, na verdade: a taverna de Frodo também conseguia a maior parte de sua clientela depois que os sóis desapareciam no horizonte. Entretanto, o outro abrigava um tipo de atividade bem diferente das que aconteciam na taverna – ou em qualquer outro local da cidade, também. Localizada em um dos pontos mais meridionais de Thais, a construção de pedra rústica, apesar de discreta, era conhecida (e temida) por quase todos os cidadãos do reino. Alguns metros abaixo do solo, porém facilmente acessível, se encontrava a prisão, sob o comando do Xerife Wyat. Mais profundamente – e nem tão acessível assim, a inquisição mantinha sua base, chefiada por Henricus.
— Você tem certeza absoluta disso, Henricus?
A voz de Wyat transparecia tédio, e sua expressão deixava claro o clima de incerteza no qual sua mente se encontrava.
— Certeza? Nenhuma, senhor Xerife. Sendo um humano, não tenho pretensões de me assemelhar aos deuses, que entendem facilmente o que suas criaturas estão pensando. — Henricus respondeu prontamente, sem alterar sua expressão de concentração.
Wyat deu de ombros. Trabalhava junto ao inquisidor há muito tempo, e já se acostumara com a fé excessiva e as respostas vagas do homem. O Xerife simplesmente voltou à sua posição.
Os homens estavam no segundo andar da construção – uma série de cômodos onde eram guardadas as provisões, além de abrigar os dormitórios. Abaixados discretamente atrás da porta de um dos quartos, eles observavam um homem. A baixa luminosidade que as velas davam ao local, aliada à discrição de Henricus e Wyat, parecia ocultar a presença dos dois.
O homem observado estava sentando em uma cadeira de madeira simples, e apoiava os cotovelos numa mesinha logo a sua frente, com algumas velas novas por cima. Ele aparentava ser jovem, e seu corpo parecia uma estátua; completamente imóvel e com o olhar fixo nas chamas que ardiam nas velas. O fogo que ele encarava contrastava com seus cabelos alaranjados, dando a impressão de que eles queimavam em harmonia. Sua armadura simples de cavaleiro tinha um tom azul pálido com detalhes negros, e parecia ser grande demais para o tamanho do homem.
As velas já estavam pela metade, e o homem não demonstrara nenhuma reação. Depois de alguns protestos silenciosos de Wyat, Henricus decidiu ceder, e deixaram o local rumo ao andar inferior. A sala abaixo servia como uma espécie de recepção, e tinha apenas algumas cadeiras ocupando o espaço entre a porta principal e as escadas que levavam aos outros níveis. Os homens se sentaram, ficando alguns momentos em silêncio.
— Sinceramente, essa atitude não se parece em nada com o que você faz normalmente, Henricus. O que esse homem tem de especial? — Foi Wyat quem falou primeiro, enquanto bocejava longamente.
— Talvez ele seja especial. Talvez não. Por não saber responder isso é que o mantenho por aqui, senhor Xerife. — Henricus respondeu, coçando o queixo. — Além disso, você é testemunha das habilidades dele. Não é fácil achar novatos desse nível para a Inquisição.
— De fato... Mas ainda acho isso muito imprudente. E se ele for um herege?
— Se for o caso, procederemos como de costume. — Henricus disse, já se levantando da cadeira e seguindo para o andar inferior.
— Você não vai me dizer nada mesmo, não é? — Wyat perguntou, quando o inquisidor já descia os primeiros degraus. — Depois não me culpe se esse cara causar problemas... Aliás, qual é mesmo o nome dele?
— Nome...? — O inquisidor parou sua descida, e virou-se para a direção de Wyat. — Acho que podemos chamá-lo de... Fencer. — Completou ele, dando um sorriso quase imperceptível, antes de seguir a descida.
Wyat balançou a cabeça negativamente, mas nada disse; apenas sentou-se em sua mesa e começou a analisar alguns relatórios, calmamente.
...
As velas há muito já haviam se esgotado, e o quarto agora estava imerso na escuridão. O homem, que antes parecia hipnotizado pelas tímidas chamas, agora estava deitado em uma cama no canto do quarto, de olhos abertos. Ele não sabia por que a inquisição se interessou nele. Nem por que aqueles homens o observavam toda noite, assim que ele acendia suas velas. Ele nem sabia se as coisas que ele fez tinham justificativa. Porém, a mente dele era ocupada todas as noites com outra coisa; um som abafado, quase imperceptível, mas que ecoava alto em seus ouvidos. O som de gritos e lamentos daqueles que eram interrogados pela inquisição, alguns andares abaixo dali.
“Será que esse é aquele mendigo que capturamos na entrada da cidade? Talvez essa seja aquela mãe que deixou seus filhos famintos para trás... Ou seria a espiã de Carlin capturada nos esgotos do castelo?”
Esses pensamentos consumiam a mente do homem diariamente enquanto ele ouvia os sons, desde que começou a trabalhar para a inquisição thaiana. Impassível na frente de Henricus, ele não sabia mais o que era certo ou errado. Muito menos se havia justificativa para prender essas pessoas como hereges. Porém, durante o dia, ele simplesmente fazia o que era ordenado, sem questionar ou se interessar por aquelas pessoas. A inquisição o dava uma cama, suas velas e alguma comida; era o suficiente. Entretanto, a escuridão da noite trazia aqueles sons... E os questionamentos de volta para sua cabeça. Alguns minutos depois, os gritos cessaram; provavelmente era o intervalo dos interrogadores. Era nesse momento que o homem sempre adormecia, e os gritos só voltavam a atormentá-lo em seus pesadelos. Fechando os olhos lentamente, o homem segurou um pequeno broche que levava sempre consigo, o qual tinha o formato de uma letra “E” dourada – apesar de bem desgastada, e disse lentamente as palavras que repetia toda noite antes de adormecer completamente:
— Nada importa para o Edge Fencer.