Capítulo V - Ar
Quando deitava-se no gramado, o movimento das nuvens roubava horas de sua atenção. Fossem grandes, pequenas, formando imagens, não importava. As únicas pelas quais tinha um apreço diferenciado eram as carregadas. A calma que elas emanavam, movimentando-se lentamente, sem empecilhos, em um roteiro não por elas definido.
Se possuía uma qualidade - quase um dom - era a paz, o autocontrole. Projetava-se ao céu, sob as nuvens, imaginando ser levada por elas. Conseguia, até mesmo, reproduzir mentalmente a visão que dali teria. - Aquela ali, carregada, está preenchida de amarguras que logo serão despachadas. Essas são as mais bonitas, pois representam um frágil ciclo da vida, seguido da vitória. Parecem tão confortáveis - dizia a si. O hábito de observá-las vinha de sua infância, sadia e pura, de brincadeiras e ótimas lembranças. Bem verdade que lembrar de sua mãe não a fazia feliz.
Talvez a maior guerreira que ali já pisou, reverenciada por todos e eleita popularmente como a protetora do povoado, tudo o que ela desejava àquela altura era paz, convivência em família, poder criar sua filha. Mas houve uma guerra, das grandes. Como um dos últimos suspiros, fora convocada, já pouco mais velha e menos forte, para, acima de guerrear, encorajar os aliados, algo que só pela sua presença se concretizaria. Ainda hoje, encontram-se poemas épicos narrando sua trajetória, rituais venerando-a, estátuas suas pela cidade, até mesmo templos. Sua história se misturou a diversas aventuras fantásticas, colocando-a em situações eventualmente fictícias para demonstrar sua robustez e importância. Sua glória em vida permitiu que sua imagem ficasse eternizada naquele povoado, mas... havia uma filha, e essa filha precisava da mãe. Se inspirava nela, a idolatrava. As vezes a amargura da falta que sua mãe lhe faz emergia dessas nuvens carregadas, e esse era o ponto alto da história.
Nesse tempo, não havia mulher naquele povoado que não fosse uma druida. A vila passara por maus bocados pouco antes de Janice nascer e, com isso, havia uma crescente necessidade de druidas, dada a vocação que os mesmos têm para materializar comida. Contudo, a moça era diferente. Desde cedo, ela mostrava aptidão para armas corporais e para empunhar escudos. Com quatorze anos, já treinava entre os jovens de vinte. Com dezesseis, treinava com a Red Legion.
Houve, nesse tempo, uma extraordinária e mortífera invasão de Orcs. Tal invasão adquirira tamanha fama, que mesmo nos dias de hoje o passado mescla veracidade com fantasia, originando contos envolvidos em misticismo e citando até mesmo os deuses. Ainda hoje, as pinturas mais valiosas são dessa invasão. Como resultado da batalha, o exército do rei fora boa parte dizimado, forçando-o a recuá-los.
Algumas famílias nobres haviam migrado para lá, trazendo consigo a influência de um rei que possuía uma péssima administração. A irmã do mesmo, uma das maiores críticas de seu reinado, estabeleceu-se ali, como vizinha dos pais de Janice, e logo com o recuo da Red Legion por parte de seu irmão proclamou-se rainha, iniciando assim um novo reinado. Apoiada pela nobreza, o pai de Janice - que à época era visto como um líder da localidade - foi obrigado a ceder tal liderança, submetendo-se assim à rainha. Não que o quisesse, mas para aquele povoado a nobreza era necessária, e não poderia correr o risco de tê-los como inimigos - ou ainda, perdê-los. Embora oferecesse proteção com um exército de elite, o rei havia explorado o suficiente daquele povo. Os constantes atritos entre irmãos fortaleciam a provável retirada da Red Legion dali, e então, haveriam inúmeras vagas de trabalho para guerreiros e guardas pessoais da nobreza.
Elorana não era má, apenas impaciente. Muito impaciente. Decidida a prosperar ali, abusou de sua influência para obter o apoio da nobreza e adquirir o controle tático e administrativo da região. Como vossa majestade Rainha Elorana, tratou de compor um exército para defender a cidade das invasões cotidianas. Em resposta à atitude humilde de Karl - o antigo líder, a rainha o convidou para integrar a liderança de sua armada. Um exército se formava, e a vila avançava rapidamente para uma cidade. Algumas expedições pela região eram organizadas, com o intuito de encontrar fortunas ou conhecimentos místicos. Os druidas da região se entendiam muito bem com a rainha, pois eles eram capazes de enxergar a pureza e a benignidade em seu coração. Entretanto, essa relação se limitava a uma troca de favores bem mutualista: troca de informações, experiências e habilidades.
Era manhã quando Janice deu o último beijo em sua filha. Fez, antes de partir, com que seu pai - já idoso - lhe jurasse cuidar da criança caso ela não voltasse. Ela já sabia que não voltaria. A essa altura, a rainha Elorana - também idosa - estava prestes a dar sua última cartada em vida para os Orcs: um plano de invasão à Orc Fortress, numa tentativa inusitada de dizimar o maior número possível de seres vivos dessa raça que tanto havia causado mortes e prejuízos ao seu reino. Elorana costumava dizer, inclusive, que seu reinado só não pôde ser territorialmente maior devido à "uma raça de seres feios, verdes e fortes". Karl, pai de Janice, havia se retirado do exército devido a sua alta idade, com a missão única de proteger sua neta.
Alguns druidas aliados participariam, dando suporte aos nobres guerreiros da linha de frente. A maioria sabia que era uma viagem sem volta, numa tentativa desesperada de finalmente parar as invasões dos Orcs à cidade por eles tão adorada. Todos ali se entregaram a um combate suicida na esperança de garantir a prosperidade de seus descendentes, e agora, ao menos, possuíam a falsa sensação de segurança com a presença da mortífera Janice. A epopeia desses guerreiros corajosos ficou conhecida como "Sangue no Verde" e foi transcrita por Benny, o único sobrevivente.
Não é preciso relatar como uma missão desesperada como essa falhou. O esforço foi reconhecido e seus efeitos foram sentidos, mas nada que impedisse uma nova invasão dali alguns anos. Elorana perdera quase todo o seu exército, e engolia em seco ouvindo os relatos do sobrevivente. A dor e o arrependimento a espancavam todas as noites, e a pressão exercida pelos cidadãos com a iniciativa suicida a fez cair em profunda depressão. Eis que, numa bela manhã, a rainha dispensou a guarda real para dar uma caminhada, e peregrinou arduamente até uma toca secreta de Giant Spider, oferecendo-se à ela e abraçando a morte.
A menina das nuvens, então, cresceu. A amargura por ter perdido a mãe fora minimizada pela criação paternal de seu avô. Passaram-se longos anos desde a missão suicida, e ela agora andava com seus próprios pés. Era uma guerreira - como a mãe - mas ainda melhor. A cidade contava agora com muitos prodígios, o tempo necessário para uma grande evolução foi concedido com o preço do sangue de sua mãe e de vários outros guerreiros. Era agora uma cidade rica, desenvolvida, comerciante. Muitos forasteiros por lá passavam a negócios ou peregrinando para a região dos druidas ao norte. Os Orcs, porém, voltavam gradativamente a incomodar nas fronteiras.
Rainha Eloise herdou o reinado, tendo um enorme acúmulo de rancor por Orcs. Não demoraria para convocar seus guerreiros e invadir novamente a fortaleza dos verdes. Em uma bela manhã de sol, Eloise invocou seu general, ao passo que o mesmo invocou seus subordinados. Numa reunião, as primeiras instruções brilhavam nos olhos daquela jovem que ansiava por vingar sua mãe. Respirando fundo, Bubble disse a si:
-Ótimo. É de ar fresco que eu preciso.
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