Capítulo III
O Banquete
— Mãe, o que aconteceu com Yyavana? Ela disse que contaria o conto do cavaleiro!
— Ela já deve estar vindo, com um pé na terra e outro... devaneio, devaneio.
— Você disse isso há um tempão e ela ainda não veio, ou a terra é movediça ou...
— Deve estar vindo, deve estar vindo, relaxe, meu pequeno cavalheiro.
— E se ela não vier?
— Bom, aí eu posso te contar o conto do cavaleiro; acho que sou tão boa quanto ela, garoto zombeteiro!
— Ah, que bom, então. Sabe que até prefiro você; justiceiro, justiceiro!
Só nos restava uma coisa: encenar estes diálogos uma, duas, três, infinitas vezes; apenas para não perder o costume; o costume de ser humanos; ou de não sê-lo, no nosso caso.
Estávamos naquele inferno há muito tempo; tempo suficiente para ver meu filho crescer e se tornar a peste que se tornou; ele parecia ter uma imunidade contra aquele ambiente — uma fonte de energia inesgotável.
Parecia o mais saudável dentre todos os outros prisioneiros; conservava um aspecto até mesmo bonito; e embora pareça que ele era privado das torturas... Não, não era — embora fossem mais leves.
Vivíamos em constante mudança: tantos quantos aqueles que iam também chegavam; na verdade, eu e Norlyar somos os únicos sobreviventes, dentre aqueles que acompanhavam-nos naquela terrível noite em que sobrevivemos.
O lugar era pútrido, fedia a esterco; embora eu não sentisse mais nada, os recém-chegados vomitavam aos montes — apenas água, é verdade —, exalando até mesmo um perfume; perfume do vômito; perfume da liberdade...
Aprendi, duramente, a não amar ninguém; o amor natural entre os humanos se rompeu como um elo que se partiu e jamais se ligará novamente; como um elo que separa o animal do homem. Maldito seja o cavaleiro que nos manteve vivos naquela noite em que a morte andava a cavalo; engano meu, por sinal: não era a desejada e esperada morte, bela, imaculada, simples — mesmo que dolorosa —, não, algo muito pior acabou sucedendo-a.
Os guardas — embora não fossem guardas — visitavam-nos a cada quatro luas. E não eram guardas, realmente; eram apenas torturadores sedentos por prazer; sedentos por carne; sedentos por sofrimento — todos iguais, todos iguais... Uns mais iguais que os outros?, não havia discernimento, eram apenas homens.
Eu dividia as tarefas em dois tipos: diversão e prazer — sim, coisas distintas. A diversão era realizada com homens, quando os mesmos eram recolhidos e levados aos mais diversos tipos de tortura: os mais leves eram destinados aos mais velhos — como era o caso da castração e ingestão do membro, seguida pelo empalamento e queima; já os mais pesados... Bem, não nos alonguemos neste aspecto. Normalmente não voltavam, embora já tivesse havido casos de homens retornarem vivos; eles eram, em sua maioria, homens dytonianos, embora convivessem com outros prisioneiros de guerras.
Já o prazer era realizado com mulheres — e crianças. Éramos submetidas aos mais diversos tipos de selvageria, envolvendo inclusive a relação com mulheres já mortas; por sinal, era bastante comum matarem e aproveitarem o cadáver enquanto ainda estava quente.
Nossas vidas se resumiam a isso.
E, às vezes, algum evento especial acontecia; como hoje.
Ouviu-se um crescente barulho de vozes; ninguém se mexeu; nunca se mexiam, na verdade. Eram mais rochas do que humanos.
Chegaram em uns vinte guardas; número anormalmente alto.
Um deles se pronunciou:
— Viemos para a colheita.
Como veterana, respondi-lhe:
— Que colheita?, suspeita, suspeita...
— Para a receita.
— É perfeita, esta receita?
— Sim.
— Ótimo, do que precisas?
— De tu, sujeita.
— Sou malfeita.
— E não somos todos?
— De que mais precisam?
— Dessas raparigas.
— De todas?
— De todas.
— São apenas formigas teimosas, estas raparigas.
— Obriga-as, então.
— Obriga-as tu, é o teu trabalho.
— E assim o farei.
E assim o fez; conduziram-nos, todas, a uma espécie de copa; nada de despedidas, nada de emoção, nada de perguntas: apenas obedecer. Como um gesto involuntário, Norlyar acenou para mim; e, instantes depois, como se tivesse se arrependido, baixou a mão rapidamente.
Era diferente do habitual ambiente escuro e fétido, onde suor, sangue e fluidos naturais misturam-se. E lá no canto, reluzente, estava a guilhotina.
Logo em seguida, fomos despidas e lavadas; lavadas como se lavam os legumes antes da refeição; e de fato éramos.
Uma a uma, minhas companheiras foram perdendo os membros: primeiro as pernas, seguidas pelos braços e por último, a cabeça. As partes eram jogadas em recipientes distintos, ainda ensangüentadas.
Chegara a minha vez.
E, embora minha mente fosse assentimental, meu corpo ainda era capaz de sentir dor. Foi então que cuspi todas as palavras carregadas de fúria:
— Woso, amaldiçôo-te por toda a eternidade! Não és digna de minha fé; que teus pupilos queimem ante a minha fúria; que tua mente arda, como meu corpo arde agora; que minha linhagem estenda-se por eras inteiras, para que meu sacrifício não seja em vão; que o sangue derramado agora tinja todos estes guardas profanos; e que todos os seres viventes chorem sangue pela minha maldição!
Finalmente, a lâmina desceu em direção aos meus longos cabelos e um barulho indistinto foi ouvido. O barulho da morte; e, no meu caso, o barulho da salvação.
No salão reluzente, ouvia-se o som de conversas em tom moderado; os convidados, todos bem vestidos, bebericavam em taças de cristal puro que continham um líquido avermelhado com aparência viscosa.
Um som sobrepôs-se a todos os outros: um titilar, chamando a atenção de todos os presentes. Reinou o silêncio por alguns instantes; foi quebrado somente quando o anfitrião pronunciou-se:
— Boa noite a todos. O banquete será servido. Comam, bebam; selem esta aliança; que todos os presentes sintam-se honrados, assim como eu me sinto. Ofereço-lhes apenas os mais seletos tipos de carnes e as mais finas bebidas; e uma grande dose do meu afeto e hospitalidade. Peço que selem este pacto brindando e bebendo do vosso cálice.
Os presentes respeitosamente brindaram e beberam.
O jantar foi servido; há quem diga que se tratou do mais refinado banquete já visto por aquelas terras.