O Elefante Púrpura
Esculpir um elefante é coisa fácil: basta encontrar uma pedra grande o suficiente e tirar dela tudo o que não for um elefante.
Minha esperança é aplicar o mesmo princípio neste documento que tenho que parir: apenas 26 letras no alfabeto, o segredo é achar a combinação perfeita para formar as palavras mágicas, e voilà! Desliza uma petição pelos tipos metálicos da heroica Remington 25.
Computador é para os fracotes, além disso a máquina de escrever funciona sem energia e não precisa de impressora. Tudo o que eu bato já sai impresso. Só que a folha branca não recebeu uma letra sequer ainda.
Seria um serviço rápido e tranquilo, se tivesse a formação adequada, ou mesmo alguma formação qualquer. Isso não vem ao caso agora.
Eu sou Bogart, como Humphrey Bogart, despachante e detetive. Mas não tenho uma Ingrid Bergman me esperando em Casablanca. Sempre falo isso no primeiro encontro, impressiona os clientes.
O fato é que estou quebrado, preciso da grana e tenho uma moral flexível, para ser gentil comigo mesmo.
Metade do adiantamento pelo serviço já voou do bolso, aplacando a fúria dos credores. Só existe uma coisa a fazer no momento, e não será esta petição.
Não há tempo para firulas jurídicas, preciso descobrir como arrancar a outra parte do pagamento antes dos cobradores quebrarem minhas pernas.
Onde é que está o telefone do Gouveia:
“Alô, Gouveia... É o Bogart... Sim, o Dr. Bogart, especialista em generalidades jurídicas... Não, ainda não foi resolvido, a petição está saindo... A justiça tarda, mas não falha... Tô ligando sobre o adiantamento... Sim, o adiantamento não foi suficiente para lubrificar as engrenagens da Deusa Têmis... Você sabe, a cega com a balança e a espadinha... Nunca ouviu? Isso não importa, o especialista aqui sou eu... Por isso você paga, eu tenho os contatos, sou seu homem infiltrado... Sabe que pode contar comigo... Mas estou de mãos atadas, o processo só anda com dinheiro... Sei, mas não tem nem 50 aí?... E 30? Ok, mas com 20 já resolveria algumas coisas... Mas nem 10? Gouveia, me adianta 5 e não se fala mais nisso. Um abraço, passa aqui ainda hoje.”
Tomara que o Gouveia venha antes do almoço, senão vai ser pão com mortadela de novo. Mas cinco não vão proteger minhas pernas.
Criei apego pelas minhas pernas, foram muitos anos juntos e elas já me levaram a muitos lugares, bem melhores do que este pardieiro aqui.
Olhando em volta, não há nada que mereça ser salvo nesta sala, em caso de alguma catástrofe natural. Imagino uma Tsunami varrendo tudo como uma imensa descarga sendo acionada, o vaso sanitário de Deus finalmente esvaziado. Infelizmente eu iria junto.
Tenho uma minúscula sala comercial no centro da cidade, apenas uma escrivaninha, um ventilador de teto, um porta-chapéus onde penduro guarda-chuvas, pois não uso chapéu, e uma janelinha que abre para o pátio interno do edifício. A pequena porta no canto vive trancada, porque abrir o banheiro é como abrir os portais do inferno.
Herdei um elefante de porcelana hindu, roxo, quando aluguei o lugar. Clara, minha assistente e namorada nas horas vagas, explicou que ele era importante, mas não prestei atenção. “O que tem demais num bicho gordo e roxo? Não serve nem de cinzeiro.”, argumentei. “É púrpura, seu animal, e é sagrado”, ela reclamou fazendo beicinho. O dia não estava do meu lado e acabei perdendo a assistente e a namorada de uma só vez. Ela volta, já fez isso antes.
Esta sala comercial era um centro ecumênico de atividades holísticas, antes da velha feiticeira morrer e abandonar suas coisas. Aproveitei o preço baixo e o que encontrei pela frente. Ainda tem alguns diplomas na parede e este elefante roxo, ou púrpura, que foi ficando.
Esculpir um elefante não pode ser tão difícil assim, vou precisar fabricar um novo ou arrumar uma boa história. Quebraram o velho bibelô púrpura, avisando que da próxima vez serei eu. Não duvidei um minuto deles, mesmo assim me chateou ter que explicar para Clara que o elefante da sorte tinha tido uma maré de azar.
Na verdade quebraram quase tudo por aqui. Apenas a porta principal aguentou firme de pé. Esta relíquia é digna dos velhos filmes noir de Hollywood, de mogno e com uma bela janela de vidro jateado, onde aparece meu nome. Quase pedi para inscreverem Humphrey Bogart nela.
Não uso meu nome verdadeiro há tanto tempo que poderia mesmo ser Humphrey Bogart. No final fiquei com vergonha e coloquei H. Bogart. É assim que me apresento e ninguém nunca me perguntou nada de Casablanca. Nem quando conto a história da Ingrid. Os clássicos foram todos esquecidos.
Debaixo do nome vem minhas credenciais: detetive particular, despachante e acompanhante de cachorros, um bico emergencial.
Só que matei o último cachorro de fome, sem querer, claro, pois amo os animais. Bingo era o nome dele, não era muito esperto e nunca descobriu onde ficava a vasilha de comida.
Morreu trancado em meu apartamento depois de um mês. Ficaria mais tempo, porque os donos viajam muito, mas os bombeiros tiveram que arrombar a porta quando os vizinhos reclamaram do mau cheiro.
Não havia nada a fazer, estava preso nesta época, acertando as contas com a justiça, e tudo que pude arranjar antes de ser enjaulado foi despejar 50 quilos de ração em um lugar bem visível. Aparentemente, Bingo não tinha boa visão. Do jeito que deixou meu sofá, deve ter morrido engasgado com o estofado.
Apesar das atenuantes, isso me rendeu outro processo e uma queda nos serviços. Quando as coisas ficaram ruins, me mudei para este escritório mais modesto e Clara precisou acumular um emprego de garçonete e dançarina.
Prefiro não saber muitos detalhes do que ela faz, para não interferir no nosso relacionamento. Além do mais, alguém precisa botar comida na mesa.
Essa mulher é realmente impressionante, o que será que uma garota de vinte e poucos, com absolutamente tudo no lugar certo, pronta para pegar o primeiro trouxa e aplicar o golpe da pensão alimentícia, viu num coroa que nem eu? Certamente não foi o dinheiro.
Droga, meu ceticismo é uma doença que acaba com toda a graça das pequenas alegrias da vida... la joie de vivre, é isso que me falta.
E a credulidade humana é desanimadora. Veja esses sujeitos que aparecem por aqui. Jamais emprestaria uma meia furada a mim mesmo, muito menos confiaria um trabalho remunerado.
Pelo menos sou bom para avaliar o caráter das pessoas, por isso virei detetive particular, então digo, com a propriedade de quem se olha no espelho há 40 anos, que nunca vali nada.
Mas ser um canalha é qualidade necessária neste ramo, porque só existem casos de adultério e namorados ciumentos na prospecção privada. Não há esquemas mafiosos, segredos industriais, escutas de famosos ou mistérios criminais. Se alguém está investigando isso, não sou eu.
Apenas a velha e prosaica dor de corno, geralmente de homens casados que estão inseguros em relação às suas amantes. Das esposas gordas só querem saber que limpem a casa e a remela dos rebentos.
Como falta de caráter é minha especialidade, não tiro a razão destes ciumentos, e os agradeço por virem me trazer seu dinheiro. Qualquer uma disposta a sair com esses caras é capaz de dar para o primeiro desconhecido na rua.
Vou lhes contar o caso do Coronel Watanabe, um homenzinho grisalho e ranzinza que entrou batendo a porta, suando e atropelando as palavras. Os três lances de escada, sem elevador, também ajudaram a tirar seu fôlego.
Só o elefante estava entre nós, servindo de peso de papel improvisado, com a tromba quebrada, uma presa de marfim meio solta e a barriga pra cima. Estava mais roxo do que nunca na luz da tarde que batia em cima dele.
Pretendo continuar com a história em episódios esporádicos, se valer a pena.
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