-Você sabe se já chegou o livro que eu pedi? O do Richard Ford?
A bibliotecária fez um olhar pensativo e abriu uma pasta, onde se lia na capa “pedidos”. Após alguns instantes, olhou para o rapaz e disse.
- Olha, aqui na pasta não tem nada não, mas eu tenho a impressão de alguém ter falado do seu livro. Você pede tantos livros que ninguém lê que a gente está até pensando em te cobrar mensalidade – disse, brincando.
- Próxima vez eu peço um em português, prometo.
-Aham, sei. De qualquer forma, dá uma olhadinha lá na seção estrangeira. Se estiver lá, não vai ser difícil de notar.
- Hmm, ok. Até logo – Saiu em busca de seu livro. Conhecia bem a biblioteca, assim como os funcionários que ali trabalhavam. Ela não era tão grande como aquelas que tinham dois andares, mas mantinha uma ótima quantidade de livros interessantes. Quando chegou à seção desejada, entrou por entre as prateleiras e começou a passar os dedos pelos livros, procurando seu pedido.
A sensação de examinar os livros era boa; sentia-se passando a mão por entre mentes brilhantes, que usaram do papel para traduzir seus sentimentos e ideias. Um infinito aglomerado de conhecimento esperando para serem lidos.
Lia as capas uma por uma, admirado com a beleza de saber que há letras escondidas por entre elas, e às vezes se perguntava se gostava mais de procura-los do que de fato encontra-los.
Infelizmente, a busca terminou sem resultados. Tirou os dedos da prateleira e caminhou por um largo corredor, a caminho de algum livro mais popular. Talvez um novo do Stephen King, ou até mesmo repetir a leitura de algum outro livro.
Quando quase no início da seção principal, viu um pequeno pôster na parede, onde se podia ler “Terá coragem de competir pelo Pássaro de Ouro? Segundo Concurso Literário da Biblioteca Monteiro Lobato”. Naturalmente intrigado, se aproximou mais, a fim de verificar se ainda poderia participar. Descobriu que o prêmio para o primeiro lugar seria mil reais para compras de livro, mais um troféu em formato de pássaro, e que deveria produzir uma história pequena de tema livre. Viu que teria apenas mais dois dias para escrever, e que o texto poderia ser entregue escrito à mão ou pelo site.
Animado com a ideia, apressou o passo até a bibliotecária novamente. – Quero me inscrever no concurso ali, o do Pássaro de Ouro. O que preciso fazer?
- Só preciso da sua carteirinha da biblioteca, é grátis. Você escreve, é? Que coisa.
- Eu tenho algumas coisas escritas, mas nunca ninguém leu.
- Nada melhor do que isso, né? – Deu um grande sorriso. Às vezes não se sabia se ela era apenas simpática ou era apaixonada pelo rapaz – Bem, deve ter muita qualidade, você lê bastante.
- Vamos ver se é bom o suficiente para ganhar, né. E como será a decisão? Votação aberta?
- Ah, a gente iria fazer votação aberta pra todo mundo, mas achamos que com um prêmio desse tamanho, haveria muita compra de voto. Decidimos deixar a votação apenas para a nossa equipe e para alguns outros professores da faculdade aqui do lado.
- Você vai votar?
- Vou.
- Pelo menos eu já sei de quem eu vou roubar um voto – disse, sorrindo. – Preciso ir agora, não posso deixar o cachorro sozinho muito tempo. Um beijo, até logo. – E assim, se foi. Pegou sua mochila no guarda-volumes, acenou para o segurança, colocou sua jaqueta e enfrentou o clima frio lá de fora. Chegando em seu apartamento, abriu a porta e se deparou com seu pequeno cachorro. Cachorro que apenas foi permitido devido a sua simpatia com a dona do minúsculo prédio.
- Olha só que grande garotão, seu bonitão – disse com voz de criança enquanto colocava-o no colo. Sempre achou ridículo falar com animais e tentava se policiar, mas não conseguia se segurar. Andou até seu quarto sentindo um focinho gelado em seu pescoço, e sentou-se em sua escrivaninha. O notebook e um caderno estavam em sua frente, implorando para serem usados. Mas qual? Sentir o grafite deslizar no papel, ou ouvir as teclas em ritmo constante? No fim, escolheu a rapidez e se rendeu à tecnologia, e, enquanto esperava seu notebook ligar, foi à cozinha fazer café.
Tirou o cachorro do colo e começou a colocar o filtro na cafeteira. Colocou a água e depois o pó. Abriu os armários procurando algo para comer, mas nada lhe dava apetite. Pegou algumas bolachas água e sal apenas pelo ato de comer, sem sentir o gosto, e voltou para o quarto. O computador já estava ligado, e ele começou a escrever.
Com o Word aberto, olhou para o espaço em branco e pensou com o que o preencheria. Algum bandido fugindo da lei no estilo faroeste com um pássaro de ouro nas mãos? Não, pouco conhecia sobre essa época. Talvez alguma história épica de algum guerreiro numa aventura para resgatar a relíquia da família do rei, um pássaro de ouro? Não, já estaria farto dessas narrativas, além de que provavelmente ficaria muito longo e cansaria os juízes. Logo abandonou a ideia de fazer algo relacionado ao nome do concurso, e se tentou se focar em algo novo. Percebeu que todas as ideias que vieram em sua cabeça saiam na mesma velocidade em que vinham, e, pouco a pouco, percebeu que precisava descansar um pouco, desfocar sua mente. Havia lido em algum lugar que o cérebro subconsciente acessa mais informações por vez do que o consciente, e que seria nos descansos onde uma pessoa teria seu momento de epifania.
Decidiu ir ver o café, e ao perceber que já estava frio, se surpreendeu de quanto tempo havia ficado parado sem inspiração alguma. Pensou em esquentar seu café em banho-maria, mas desistiu. Olhou para o seu relógio e viu que já era tarde – onze horas -, e precisava acordar cedo para trabalhar. Estranhamente, nunca conseguiu dormir sem antes beber café; sua mãe sempre dizia que tudo o que fazia era feito ao contrário, e isso lhe dava uma sensação especial, a sensação de ser único. Bebeu o líquido em goles largos, tomou um banho e se deitou.
Ao apagar a luz, repousou sua cabeça sobre o travesseiro. De que escreveria? De que escreveria? Seus olhos lentamente se acostumaram com a escuridão; conseguia ver os móveis do quarto, as janelas, as cadeiras, os livros na parede. Tudo, menos o sono. Colocou seus pés descalços de volta no chão, colocou mais café para fazer e ligou novamente o computador. Precisava escrever, o último dia era hoje.
Desta vez, prestou atenção nos minutos e não deixou seu café esfriar. Ainda estava sem inspiração, mas pelo menos conseguiria um copo quente de café. Caminhando no escuro de volta para cafeteira, pisou sem querer na pata de seu cachorro que dormia. Sentiu desespero assim que sentiu sua bota em cima da frágil pata do cão, ouvindo um grande grito em seguida. Podia ouvir a dor do amigo, e imediatamente se sentiu a pior pessoa do mundo. O cachorro correu para debaixo da cama, apenas com três patas.
Se encostou na parede e ficou parado por alguns momentos, culpando-se. Quando finalmente decidiu adoçar seu café, percebeu que estava frio novamente. – Merda –, disse, batendo na mesa. Estava preocupado com seu amigo -seu único -; adotou-o num centro de animais abandonados, há três anos, sabendo que o mesmo sofria maus tratos dos antigos donos. Lembrava que ele sempre dormia com os olhos abertos, e que toda vez em que tinha que passar por perto, ele se encolhia, com medo de ser agredido. Doía saber que ele tinha esse medo dele, seu próprio dono, e demorou muito até que ele conseguisse se acostumar – e desde então o cão dormia junto com o dono em sua cama. Esse descuido não poderia ter vindo em pior hora.
Encheu um grande copo de café frio e voltou para o quarto, e quando seus pés passarem por do lado da cama, podia notar que ele ainda estava lá embaixo. Abriu o Word e aproveitou as folhas digitais em branco para desabafar. Escreveu sobre seus sentimentos, sua solidão, de sua secreta paixão pela bibliotecária e, com mais destaque, do acidente com seu melhor amigo. Se apenas ele pudesse entender o que ele queria dizer, talvez as coisas fossem diferentes.
Chamou seu texto de “arrependimentos noturnos de uma alma seca”, fez uma revisão básica e estava pronto para enviar. No final das contas, estava bastante orgulhoso do trabalho; sempre soube que havia uma afinidade com a escrita. Talvez essa seja sua maior qualidade, algo que ele sabe que pode, se se esforçasse, fazer um trabalho digno de grandes autores.
Abriu o site e se preparou para enviar seu texto. O site era bastante agradável, bonito, com um grande desenho de um pássaro dourado em volta dos menus. Deu uma olhada por eles, a fim de encontrar o lugar onde poderia se inscrever, e acabou clicando num menu escrito “Veja os vencedores do ano passado”. Intrigado, começou a ler os três primeiros colocados.
“O Mar de Rosas” de uma menina chamada Merília Gaspanhar estava em terceiro lugar, com um conto bastante interessante, sobre o suicídio de uma mulher apaixonada. Apesar de clichê, o desenvolvimento foi bastante interessante, mas acreditava que poderia fazer melhor. “Venenos silenciosos” era o segundo colocado, escrito por outra mulher, chamada Roberta Coelho, e se tratava sobre dois amigos que, por dinheiro, se destruíram. Foi uma ideia ousada, mas não gostou muito do uso de palavras da menina. Era muito refinado, algo não-natural.
O primeiro lugar que era o problema. “Como eu morri ontem”, de um escritor amador chamado Maurício Bonnini, era um conto perfeito, extremamente bem executado. Exprimia a ideia de uma vida destruída por suas pequenas mentiras, muitas vezes consideradas inofensivas, que foram desmoralizando todas as relações pessoas do personagem. Era muito bem construído, com grandes frases de efeito e com uma mensagem impressionante. Envolvente e inteligente. Era melhor em todos os pontos em que achava que era bom; a narração, a escolha de vocabulário, a naturalidade das falas, tudo.
Invejava Maurício, ao mesmo tempo em que sentia certo desprezo. A impressão que tinha era que ele acabara de roubar uma das únicas coisas que se sentia naturalmente bom fazendo; a escrita. Não se sentia especial, não se sentia mais único; havia alguém melhor que ele, muito melhor. Ao invés de sentir orgulho do autor e se sentir agradecido de ele ter escrito um dos melhores contos que já lera – como gostaria que outros sentissem ao ler seu próprio conto -, procurou desculpas para menosprezá-lo. Procurou erros em seu conto apenas para tentar ofuscar seu brilho excessivo, mas não achava. E na medida em que o conto se tornava mais e mais perfeito, o sentimento de desprezo começou a ficar mais forte, e ao ver os comentários positivos acerca de suas qualidades óbvias, se apossou de inveja. Inveja essa que poderia se transformar em inspiração, caso fosse mais maduro.
E numa crise existencial, foi dormir. Sem conto, sem cachorro, e sem café quente.