Aqui está a segunda parte do capítulo três. (Não reparem o tamanho. É uma parte pequena sim, mas desta vez eu decidi dividir o capítulo em três partes.)
Espero que gostem. (E chega de transição!

)
Capítulo Terceiro - Um Caminho sem Atalhos (Parte 2)
A viagem, a partir daquele momento, tornava-se cada vez mais silenciosa. Fosse pela falta de assunto entre os dois irmãos ou por alguma outra razão, a floresta parecia reagir às suas passadas. Ao invés de responder com barulho, as folhas e galhos silenciavam como se tentassem esconder dos homens que passavam o som secreto das árvores e de seus habitantes – Mal se ouvia o canto dos pássaros.
Era inquietante: cada galho seco que se quebrava ao ser pisado e até mesmo o som da respiração ofegante dos dois parecia sobressair-se ao resto dos ruídos, havia algo de estranho e misterioso no ar – uma solidão, um isolamento. Há dias o único contato humano que tinham era aquela precária relação de irmão para irmão. As árvores não estavam apenas ali, inertes e inofensivas: Eram como seres que estendiam seus braços lentamente em direção aos filhos de Bavras, buscando envolvê-los num mar de sombra verde, vida e silêncio do qual não poderiam escapar enquanto estivessem nos domínios da natureza. Estava quase anoitecendo.
Mas o silêncio foi quebrado, e foi Letur quem percebeu a ruptura:
- Ei, Beril, você ouviu isso?
O outro, surpreendido, pára em silêncio como quem procura prestar atenção ao ambiente. Logo depois, diz:
- Não. Não ouvi nada. O que houve?
- Parecia o barulho de alguma coisa caindo...
- Coisa grande?
- Não, mas parecia perto daqui.
- Ah, não é nada. Vamos, já é quase noite. Um pouco mais e nós paramos pra montar a fogueira.
Voltando a seguir na caminhada, a atenção dos dois volta-se novamente para o quanto ainda precisavam andar. Letur, porém, não satisfeito com o que seu irmão dissera, olha para trás mais uma vez na direção de onde veio o barulho antes de prosseguir. Não vendo nada, achou melhor não dar importância para o barulho que ouvira. “Deve ser um bicho do mato” – Pensou.
Passaram-se mais alguns momentos de lentas passadas e houve novamente um barulho, que dessa vez chamou também a atenção de Beril, agora mais atento. Os irmãos se entreolharam: Ambos, agora alertas, pararam em silêncio e tentaram perceber a origem daquele ruído.
O garoto, curioso, pergunta:
- O que tu acha que pode ser isso?
- Não sei, mas Ulgra me avisou para ter cuidado. Se alguém da invasão souber que eu te busquei, provavelmente vamos ter problemas. Nós vimos a matança que ocorreu em Utol.
Houve então mais um barulho, que era como o movimentar de folhas e pequenos galhos.
Beril, numa rapidez e agilidade súbitas que chegaram a surpreender seu irmão, precipita-se na direção do barulho embrenhando-se na floresta. Letur mal viu a partida do irmão, perplexo e atônito, de boca aberta – Estava agora repentinamente sozinho no meio das árvores – e sentiu medo.
Enquanto isso, o guerreiro corria desviando de troncos e saltando por cima de raízes. Logo após parou, encontrando uma pessoa caída por entre os galhos de um arbusto. Estava escurecendo, e ele não conseguiu ver direito que tipo de homem ou mulher era.
Ele parou ofegante a observar aquele anônimo, mas o outro desvencilhou-se apressadamente dos galhos onde estava preso logo que o viu, e correu. Não houve perseguição, porém, pois logo depois que o estranho correra o outro fora rápido em atirar-se sobre ele e agarrar as suas pernas.
Ao cair bruscamente por ter preso aos membros inferiores todo o peso de Beril, o agarrado bate com violência o rosto no chão e solta um rápido grito agudo, que surpreende o guerreiro: Era uma jovem mulher. Ele solta então as pernas da garota, percebendo que havia machucado uma fêmea e sem saber como reagir a isso – com uma das mãos tapando levemente a boca, pensativo, ele observa a moça que apalpava o rosto dolorido e começava a chorar.
Ela se vira devagar para o guerreiro, seu rosto assustado mostra os olhos bem abertos. Não se podia ver a cor do seu olhar naquela sombra crescente, mas Beril percebe: Ela tinha o rosto e os cabeços cobertos de lama seca. Parecia um bicho selvagem, natural daquela floresta. Ela tinha algo no jeito com que encarava que era intimidador, apesar da sua óbvia fragilidade naquele momento. Ambos permanecem assim por um instante, olho no olho, e seus olhares eram hostis. A mulher parecia ser uma camponesa comum a julgar pelas vestes simples e sujas que vestia – feitas do mesmo tecido que poderia servir para confeccionar sacos de armazenar grãos. Ela levantava-se lentamente e recuava com igual cautela, enquanto o outro observava tudo imóvel, sério e sombrio – não gostara do modo agressivo da outra, e até tinha se esquecido de como a machucara um pouco antes. Naquele momento apenas pensava em quão insolente aquela camponesa deveria ser, e como ela ousava ficar em pé de igualdade com ele, um homem forte com provavelmente o dobro do seu peso – não desviava o olhar, não baixava a cabeça, e ainda sim chorava – para ele, um homem acostumado a ver força e morte apenas na face de outros homens, era uma visão desconcertante.
Quando o homem deu por si, percebeu que não era bem raiva nem ódio o que ele estava sentindo no meio daquela tensão. Era, talvez, uma atração por aquele olhar ameaçador, pelo poder que existia por detrás dos olhos úmidos daquela estranha mulher. Isso o incomodou ainda mais, e ele cedeu – desviou os olhos para o chão. “Se ela quer fugir, que seja”
Nesse momento, entretanto, alguém aparece na meia-sombra: Letur havia chegado para ver o que estava acontecendo, dando pela falta do irmão.
O que se seguiu foi uma surpresa para ambos os filhos de Bavras: A moça, vendo o garoto, atira-se aos seus pés visivelmente surpreendida – segurava com as duas mãos a sua suja túnica monástica e falava rapidamente numa língua tosca e chiada que nenhum dos dois entendia. Ela olhava desesperadamente para o rosto do pequeno monge e em seguida tocava a barra da túnica com a testa, em visível posição de súplica: Era como se aquele garoto fosse naquele instante para ela alguma espécie de salvador, e isso deixava os irmãos abismados.
Letur simplesmente não sabia como agir, olhava atônito para Beril interrogativamente e esperava que o outro fizesse alguma coisa – mas o homem do machado, impotente, limitou-se a observar aquela cena com cara de quem não acredita nos próprios olhos, não entendendo como aquela mulher havia passado de fera a humilde suplicante tão rapidamente – e pior, havia se prostrado aos pés de ninguém menos que o seu irmão caçula, não aos seus. Enquanto isso, a estranha continuava agarrada às vestes do menino.
O garoto foi assaltado por emoção estranha, um misto de desconforto, pudor e surpresa: Nunca havia sentido o toque de uma mulher estranha antes, e acima de tudo não se sentia confortável naquela posição exótica - sendo praticamente venerado por aquela jovem. Estava acostumado a estar em segundo plano, a ser a sombra sempre ao lado de um outro ser de mais importância. Não era o que acontecia naquele momento, porém, e ele percebeu que deveria ser ele o primeiro a tomar a iniciativa, a resolver aquela situação – por mais bizarra e surreal que parecesse.
O jovem então, numa atitude instintiva e quase paternal, coloca suas pequenas mãos trêmulas e hesitantes sobre a cabeça enlameada daquela jovem, um dedo por vez. Aquele gesto brotara de um canto escuro e empoeirado de sua alma que nem ele mesmo conhecia. Essa imposição de mãos, um toque tão simples e ao mesmo tempo tão poderosamente simbólico, fez com que por um instante parecesse para Letur que a sua alma havia sido ligada com a da estranha.
Durante os breves segundos em que aquele contato durou sob a penumbra cinzenta das arvores, ele se sentiu Deus. Era uma sensação inexplicável, única. Mais doce que o elixir de mel, mais sublime que a primeira brisa de uma manhã feliz.
A.E. Melgraon I