[FÉRIAS DA FACUL= ON] Tarda, mas não falha. Eu disse que a história não pararia por causa do hiato.
Espero comentários, correções e críticas severas, como sempre
É mais uma parte de transição. Mas eu declaro que, com essa primeira parte do capítulo 3, o teor da história começa a mudar, entrando no enredo principal. Aqui a história realmente começa, então fiquem atentos!
Toda informação colocada nesse capítulo é consciente, e importante para o entendimento dos capítulos futuros.
Boa leitura
Capítulo Terceiro – Um Caminho sem Atalhos (Parte 1)
Os dois irmãos caminharam então, seguindo viagem por três longos e cansativos dias. O cenário verde e úmido parecia não mudar enquanto avançavam, tudo ao redor era apenas uma repetição das mesmas árvores e pequenos riachos calmos, os mesmos cheiros, ruídos de animais e, acima de tudo, os mesmos mosquitos irritantes, que mal os deixavam dormir. Isso causava em ambos a sensação de que estavam apenas vagando, quase sem rumo, através das folhas de um mundo paralelo e fictício, onde a realidade e os fatos apenas pairam no ar e não fazem muito sentido – era quase como um sonho longo e ruim, que persiste em retornar toda noite.
A cada passo que davam em direção ao leste, ficava mais difícil respirar e a caminhada tornava-se mais pesada. A fadiga era um dos principais problemas para Letur, principalmente, mas o homem do machado também começava a fraquejar – sua passada estava ficando menos firme, o suor em vários momentos empapava suas roupas. Aparentemente, ambos estavam subindo uma ladeira aos poucos.
Havia também um detalhe em especial que deixava Beril inquieto: Quanto mais se dirigiam em direção à fronteira oriental da floresta, mais aumentava o número de árvores no caminho, exponencialmente. Era como se aquelas plantas tivessem se reunido por vontade própria perto umas das outras, por mais bizarra que parecesse a idéia, e portanto a vegetação se tornava absurdamente densa em alguns pontos. Isso não fazia sentido, pois eles buscavam sair da floresta, e o centro de Utala – o lugar onde a concentração de plantas deveria ser maior por estar mais longe das cidades, estava às suas costas, sendo deixado para trás. Esse fato era um problema prático para aquela viagem: Os dois se viram várias vezes forçados a darem a volta, precisando desviar de trechos onde a passagem era impossível de atravessar. Isso tornava a viagem ainda mais desagradável e fazia os dois se perguntarem se aquilo era normal.
Porém, Beril seguia na frente, agindo com uma confiança quase teatral e fingindo que nada de inesperado estava acontecendo. Ele se esforçava para demonstrar que tinha controle sobre a situação. Letur, por outro lado, se limitava a seguir seu irmão pacientemente, apesar de perceber que algo o incomodava.
Num meio de tarde agradável, após umas poucas e exaustivas horas de caminhada em ziguezague, Letur parou e, não ousando encarar o irmão nos olhos, perguntou hesitante:
- Beril... Eu sei que nós estamos no caminho certo, mas que caminho nós estamos usando?
Beril, concentrado, não ouviu a pergunta do irmão e seguiu caminhando na frente, sem notar que o outro havia parado logo atrás.
Letur então apressadamente tentou alcançá-lo novamente, meio sem jeito e sem saber o que falar. Não estava muito disposto a repetir a pergunta. Quando alcançou novamente o irmão mais velho, tocou o seu ombro para lhe chamar a atenção.
Ao sentir o toque inesperado o guerreiro virou rapidamente o rosto suado para o lado, acordando dos seus próprios devaneios com uma expressão interrogativa levemente séria, mas gentil:
- O que houve? Quer que eu pegue alguma coisa na minha mochila pra ti?
O garoto perguntou novamente:
- Que caminho nós estamos usando?
Como que se sentindo pressionado pela pergunta, aparentemente a gota d’água para o nervosismo daquela situação, o outro responde ríspida e irritadamente, indignado:
- Ora, caminho nenhum! Você está vendo alguma trilha por aqui que não esteja fechada? Se você ver algum caminho limpo, sem essas malditas plantas... – Ele agarra um cipó que se erguia acima da sua cabeça, arranca-o com força e joga-o no chão -... Então pode falar! Nós estamos indo para o leste, o mais rápido que a floresta permitir.
Letur se assusta um pouco com a reação do irmão e, depois de um breve momento de tensão entre os dois, continua:
- Desculpa. Mas por onde você veio quando estava indo me buscar? Achei que tivesse vindo pelo mato...
- Não, vim pelo mar. Do sul, junto com todos os outros do batalhão que invadiu Utol.
Seguiram-se alguns minutos de silêncio. Beril acalmou-se e suspirou de cansaço – lembrou do quanto foi ruim viajar de navio com todos aqueles homens sujos e desbocados. Fezes, urina e às vezes até um pouco de sangue das brigas se acumulavam pelos cantos, os outros guerreiros se coçavam constantemente devido aos piolhos e o fedor de imundice se misturava ao do mar, tornando-se salgado. Só de lembrar ele já sentia asco, fazia caretas e coçava o couro cabeludo, de onde saiam seus cabelos oleosos e escuros. Era como se naquele momento ele mesmo pudesse sentir os piolhos na sua cabeça.
O pequeno monge então continuou, vendo na calma do outro uma oportunidade. Ele não tinha tomado coragem para fazer nenhuma pergunta significativa até aquele momento - os últimos dias haviam se passado num desconforto tal entre os dois, depois do modo quase trágico como foi o seu reencontro, que permaneceram a maior parte do tempo em silêncio:
- E será que falta muito?
-Olha, se não fosse por essa maldita floresta nós já estaríamos bem perto. Mas tem árvores demais no caminho, e por causa das voltas que tivemos que dar não sei com certeza quanto ainda falta. Com um pouco de sorte amanhã mesmo ou depois a gente chega, se caminharmos um pouco de noite.
Sentando em uma pedra gelada e meio molhada, o guerreiro disse enquanto apoiava calmamente seu machado numa árvore:
- Vamos, senta um pouco. Eu quero chegar de uma vez tanto quanto tu, mas não estou afim de caminhar agora.
Sorrindo discretamente de alívio e acariciando de leve as próprias pernas doloridas como se sentisse pena delas, Letur obedeceu. Quase se deixando cair no chão, sentou em uma parte seca e macia coberta de folhas do solo, respirando fundo. Ele fechou os olhos, espichou as pernas e sentiu como se tivesse tirado um fardo pesado das costas - era uma sensação tão boa que ele seria capaz de dormir ali mesmo. Porém, não era um alívio completo: Sua gengiva machucada doía há dias, remanescente das mordidas que ele dera na corda, e não estava calçado adequadamente para uma caminhada longa como a que eles estavam fazendo – seus pés estavam se enchendo de bolhas ardidas e, portanto, cada passo era para ele uma tortura. Letur sofria em silencio, porém, seguindo o exemplo de seu irmão.
Naquela hora, entretanto, um humor tranqüilo tomou conta dos dois - Eles estavam em uma pequena clareira. Lá o sol, embora não fosse forte o suficiente para esquentar, já era agradável só pelo fato de trazer um pouco de iluminação àquela eterna penumbra que era a floresta sob a copa das grandes árvores. Era como se o desconforto desse uma trégua e se abrandasse, embora fosse deveras onipresente. Até mesmo Beril tinha agora um olhar mais sereno enquanto observava o ambiente à sua volta. Nem parecia o mesmo homem que, nos últimos dias, resmungava quase sem parar e falava constantemente sozinho em sussurros, como que a repreender a si mesmo ou ao seu machado – que ele nunca deixava longe de si. Embora fosse mais robusto que um machado normal e tivesse nas duas faces da lâmina o desenho entalhado de um brasão, era uma arma que não tinha nada de especial.
Por fim, ambos pareciam mais propensos à conversa, mas um esperava convenientemente que o outro puxasse assunto, não arriscando ser o primeiro a falar. Foi o ex-aprendiz de monge que começou, tímido e sem parecer muito à vontade:
- Como está o pai?
- Ocupado, como sempre. Mesmo velho e até meio desmemoriado ele ainda continua teimoso como uma mula. Insiste em se meter na política da cidade, no conselho regional e sabe-se lá mais aonde...
Após esse comentário, Beril solta uma breve risada jovial, parecendo tomado por uma súbita alegria. Isso surpreende seu irmão mais novo, que sorri apesar de não entender direito do que ele estava falando – mesmo sem saber o que é o dito conselho regional, pelo nome parecia algo importante.
Porém, mudando de repente a sua expressão e tomando um ar penitente, o homem do machado diz, olhando nos olhos do outro:
- Letur, agora eu vejo que talvez te amarrar foi uma péssima escolha. Olha, naquela noite eu estava exausto e você já estava dormindo – não quis te acordar. Então achei melhor amarrar a corda no seu tornozelo, pra evitar que fugisse caso não me reconhecesse de manhã ao acordar. Eu não poderia imaginar que as coisas iam chegar até o ponto que chegaram...
O pequeno aprendiz acolheu com ternura as palavras do irmão, fazendo sinal com a cabeça que entendeu, e sorrindo timidamente. Ele sabia que aquelas palavras eram o mais perto de um pedido de desculpas sincero que seu irmão poderia falar, e viu que realmente o guerreiro não havia tido culpa.
O garoto tocou seus lábios, sentindo a dor do ferimento que começava a sarar em seus dentes, e falou:
- E como o pai fez pra te mandar até aqui?
- É... Essa pergunta não sei se tenho como responder. Ele simplesmente chegou pra mim e disse: “Seu irmão, que está em Utol, vai ser morto. Quero que você vá até lá e busque-o – Já está tudo preparado para a sua partida, e Ulgra te dirá os detalhes, além de instruir-te sobre como e quando agir.”. Ele me contou apenas o básico... Foi bem direto.
- E ele te mandou sozinho por quê?
- De novo, não sei bem. Mas eu já andei pensando nisso, e acho que o nosso velho anda se metendo onde não devia. Sabe, ele já se afastou faz um tempo do comando das hordas, o homem que sucedeu ele no cargo é íntimo do novo príncipe, e parece que os dois nunca se entenderam...
- Como assim? Não entendi. O que isso tudo tem a ver?
Beril pára por alguns segundos, como que desapontado, mexendo na barba rala e falhada que despontava nas maçãs do seu rosto. Ele percebe que o garoto não entende nada de política, o que não é uma surpresa já que se trata de uma criança que estivera em um mosteiro nos últimos anos, e pensa em como poderia explicar melhor a situação para ele:
- É mais ou menos assim: O pai deveria estar sentado na poltrona dele, se preocupando com os cavalos, com as terras, com os servos e a colheita - coisas de gente comum. Mas provavelmente ele está interferindo nos assuntos da guerra, entende? Ele conhece gente importante, pessoas que devem favores a ele, e talvez use isso pra arranjar algum poder.
Letur ouve atentamente à explicação do irmão, concentrado no que ele diz. O outro continua, agora baixando o tom de voz a um tom de confidência quase a ponto de cochichar:
- Então... Pra piorar, o homem que tomou o lugar de comandante não vê o pai com bons olhos, pelo que eu ouvi falar, e é poderoso... Ou seja, o grandão lá não gostaria de saber que tem gente que deveria estar inativa, mas ainda fica sabendo de informações particulares, por exemplo. Eu acho que fui mandado sozinho aqui pra não chamar a atenção. Se ele enviasse um grupo de capachos ao invés de mim, tinha mais chances de alguém acabar descobrindo que ele sabia de antemão que o ataque à Utol iria acontecer - por ser filho, sou mais confiável. E convenhamos, aquele massacre teve ter sido feito bem às escondidas - o pai não deveria saber nada dele, mas sabe. É isso o que eu acho.
O pequeno monge, agora entendendo melhor o que estava acontecendo, já respondia sozinho algumas outras perguntas que tinha em mente. Estava claro agora que Beril não fazia realmente parte do batalhão que invadiu o monastério, estava lá secretamente. Porém, uma questão permaneceu sem resposta:
- Mas por que você, e não o Irden? Ele é o nosso irmão mais velho, e entende mais sobre lutar.
Foi como um soco no estômago de Beril. Ele, agora visivelmente desconcertado e contrariado, voltou a assumir a postura anterior de seriedade e rispidez. Aquele comentário parecia como que desmerecê-lo, colocando Irden acima dele, e aquilo não o agradava nem um pouco. Respondeu, porém, mas não sem antes acrescentar à voz um tom de amargura e franzir a testa, falando com sarcasmo:
- Irden? Ah, ele não estava disponível.
Infelizmente, ao que parece? É, uma pena o
senhor Irden, tenente de primeira classe, estar mais uma vez em campanha no norte. Longe demais dos domínios e territórios da nossa família para poder ser chamado a tempo de ir
te salvar... E também, provavelmente ele é muito importante, conhecido demais pra poder passar despercebido no meio do povão, no meio dos guerreiros maltrapilhos e piolhentos que vieram de barco, não é? Ele com certeza não abriria mão de usar na sua
belíssima bainha de prata a grã-espadada nossa família, nem muito menos viria sem uma capa bem costurada, cheirando a rosas e canela.
Letur, percebendo como falara sem pensar e o quanto isso havia tido conseqüências desagradáveis, sentiu-se novamente um inseto inconveniente e inútil, um fardo, como muitas vezes sentira durante a viagem. Limitou-se a tentar corrigir o que dissera de algum jeito, gaguejando um pouco pelo nervosismo:
-O...Obrigado por ter vindo, Beril. Se não fosse você...
Antes que pudesse terminar, Beril o interrompe bruscamente, levantando-se. Ele pega o machado e diz com firmeza:
- Vamos! Ainda temos muito o que caminhar. Chega de conversa, que essa floresta está me dando nos nervos, e nós temos que chegar no último rio antes da cidade para encher mais uma vez nossos odres.
E assim, novamente calados, constrangidos e desconfortáveis, os irmãos pegaram suas coisas e seguiram adiante pelos longos caminhos verdes de Utala.
A.E. Melgraon I