Prosa Surpresa
Pernalonga
Certo dia, nem lembro exatamente quando, precisava me locomover para não sei exatamente onde a fim de não sei o quê. Na verdade, não lembro de praticamente nada daquele dia, o que tenho certeza é que eu precisava e iria pegar um ônibus. Porém, algo um pouco mais nobre estava destinado a mim...
_ Porto da Pedra... Shopping! - dizia a voz da buzina, uma gravação tosca e universal por aquelas bandas - Heliogás, Praça do Gradim, Pontal!
Era o transporte dos apressados destemidos. E estava me chamando:
_ Porto da Pedra... Shopping! Heliogás, Praça do Gradim, Pontal!
Pelo menos a Kombi tinha itinerário, o ruim é que eu tinha que descer perto do final da linha. Mas eu acho que não tinha problema, eu sou um cara paciente, tinha que ser.
Entrei no carro dando bom dia e não recebi resposta, no máximo um grunhido do motorista e um ronco da caixa de marcha. Tudo bem, não era problema, convenhamos que trabalhar por várias horas, enfrentando trânsito num carro tremiliquento, debaixo de um sol de verão carioca e ter bom humor para falar com um "playboyzinho" bem arrumado e de cabelo molhado é muito para qualquer um.
O que me impressiona nesse tipo de cara é que, mesmo sem saco para responder, eles tem a paciência para andar a 20 por hora, repetindo loucamente aquela buzina anormal, só para te convencer de que o ônibus vai demorar e que ele é a sua última, e melhor, opção. E se você fizer jogo duro, relutar em entrar, eles percebem. Param a maldita Kombi na sua frente e ainda falam:
_ E ai, Patrão? Shopping?!
De qualquer forma, como eu fui o primeiro a entrar no carro, fiquei fadado a acompanhar o motorista na sua jornada por mais passageiros. Partimos lentamente e, depois de longos minutos, o próximo ponto estava chegando:
_ Porto da Pedra... Shopping! Heliogás, Praça do Gradim, Pontal!
E o motorista se arrastava em direção ao ponto.
_ Porto da Pedra... Shopping! Heliogás, Praça do Gradim, Pontal!
E já tinha gente esperando a Kombi - impaciente por sinal - quando ela finalmente chegou.
_ Porto da Pedra... Shopping! - e uma velinha bunduda sentou do meu lado. - Heliogás, Praça do Gradim, Pontal! - e uma garota com três crianças encheu o banco de trás.
Ainda ficamos uns cinco minutos no segundo ponto, esperando que uma caravana brotasse do chão e enchesse o carro, mas nada ocorreu e o motorista partiu lentamente, como sempre.
_ Moço, as crianças não pagam, né? - perguntou a adolescente depois da Kombi ter se afastado bastante do ponto em que entrara.
_ Quê?! Ah! Não! - gritou o motorista, meio surdo talvez. - Só que se lotar você coloca eles no colo, tá bom, princesa?
_ Tá...
Depois de alguns pontos de ônibus percorridos, a velinha e a menina, com suas crianças, sairam, um casal entrou e logo depois saiu e, no shopping, a Kombi finalmente lotou. Oito pessoas, sem incluir o motorista. Pra completar tinha gente com compra do mês, e eu, para ser educado, ajudei a segurar as sacolas... Maldita boa educação. Segurar sacola plástica debaixo de sol e no aperto de um carro é horrível. A mão sua, o braço fica dormente, as pernas esquentam e não bate nenhuma leve e empoeirada brisa para refrescar.
Continuamos a viagem e a cada cabeçada do vidro, me arrependia mais e mais de achar que seria mais rápido, de ser educado e em ter que aguentar o funk no celular do infeliz atrás de mim. Mas a merda já estava feita e eu já estava em Boa Vista, perto do Heliogás, um bairro onde só passa transporte ilegal.
Andamos por mais um tempo e o chato do funk pediu pra descer. Com ele, os dois garotos que estavam no banco da frente desceram e um sujeito barrigudo entrou na van, sentando ao lado do motorista.
_ E ai, Claudinho?!
_ Ih! Iai Betão, o que tu manda? - replicou o motorista já com um sorriso na cara.
_ Nada de mais não. Normal né, trabalhando. Sabe como é, né. Tem que trabalhar.
_ É, tem que trabalhar.
_ É foda. Eu fico falando com meu filho isso... Sabe meu filho, né?
_ Sei, sei.
_ Então, o moleque já tá grande, mas não quer saber de nada. Esses dias levou uma garota ai lá para casa e ficou reclamando que eu não quis sair de casa...
_ Qual foi, Betão, cortou ele?!
_ O viado nem grana pra onibus tem e quer usar minha casa de motel! Que vá para a rua...
_ Você não era assim... Tem que respeitar essas coisas. E se fosse um marmanjo do lado dele?!
_ Se fosse um marmanjo com dinheiro... – e começaram a rir da piada.
_ Mas sério, - continuou o Betão – tem que ser linha dura com esses moleques de hoje. Mas tirando essas coisas pequenas, eu fico orgulhoso em ver que nenhum filho meu entrou nessa bandidagem ai. Num to certo?!
_ Verdade...
_ Então! Esses dias encontrei Capitão. Lembra do Capitão?
_ Lembro! Claro que lembro!
_ Então, não tratou os filhos dele direito e hoje estão ai, largados. Fiquei sabendo que um foi até preso...
_ Triste né... E pobre ele não era.
_ Quem? Capitão? Capitão tinha dinheiro!
_ Então...
_ Pois é. Por isso sou duro com os de lá de casa. Filho meu tem que ser trabalhador!
_ Certo... E o Rosca? Tem visto ele?
_ Rosca? Rosca tá lá, né.
_ Sei... E o Jurandir?
_ Jurandir casou com Marlice.
_Marlice?
_ É! Aquela morena do Bar do Jorge, a que vivia cantando no karaokê lá.
_ Lembrei, lembrei, Marlice era uma figura... E eles já tão com filho?
_ Não sei, mas quem tá com neto é o Chupeta.
_ Chupeta tá com neto, é?
_ Tá... Ele vive conversando com o João. Lembra de João né?
_ O que vendia carro?
_ É, ele mesmo. Tá sem nada agora. Vive lá no bar bebendo...
_ É mesmo?
_ É... Acho que ele ficou assim quando o Carlinhos morreu. Soube que Carlinhos morreu né?
_ Soube, claro que soube. Rins né?
_ Foi rins não, acho que foi fígado. Só sei que ele tava mal a um bom tempo... Dá pena de João, os dois eram muito juntos.
_ Com certeza. Lembro deles na Praia da Luz. Viviam pescando lá...
_ É... Mas ele melhora.
_ Tem que melhorar, né?
_ É...
A Kombi deu uns tremiliques e terminou uma curva. Numa esquina um vendedor bigodudo de desinfetante caseiro acenou para o carro.
_ Olha o Cueca ai... – comentou o Betão já esticando o pescoço pra gritar. – Olha essa água suja ai, hein!
E um sorriso com alguma frase inaudível de resposta de quem não entendeu nada voltou do tal Cueca.
_ Uma figura esse ai, né.
_ Muito engraçado... – confirmou o motorista, o tal de Claudinho.
_ Claudinho, me deixa ali na farmácia.
_ Vai fazer o que ai na praça?
_ Probleminhas ai... Semana que vem tem churrasco, aparece lá não?
_ Apareco, apareco! Dou um pulo semana que vem pra comer uns lonbinhos.
_ Filha da puta.
A Kombi finalmente parou e o tal do Betão desceu, não antes de falar com todos:
_ Valeu ai, Claudinho! E desculpa pela conversa ai, galera. Boa viagem para vocês!
_ Valeu, Betão! – respondeu o motorista partindo com o carro.
Mais cinco minutos depois, sendo o último ou um dos últimos dos remanescentes daquele carro, pago minha passagem e saiu daquele inferno.
_ Betão... – falo para mim mesmo com um sorriso na cara, pensando numa conversa que nunca mais iria esquecer. – É mole...